Livro inédito e póstumo, publicado em 2000, um ano após o falecimento do historiador Francisco Iglésias, Historiadores do Brasil: capítulos da historiografia brasileira ainda representa um manual historiográfico a enriquecer, sobremodo, o ensino e a pesquisa de história. Não obstante às análises historiográficas produzidas nas últimas décadas, que alargaram os horizontes da pesquisa e ressignificaram trabalhos clássicos; o estudo da historiografia brasileira é um campo em aberto, que ainda carece de maior produção bibliográfica, et pour cause ávido por incursões capazes de ampliarem cada vez mais as interpretações há muito consagradas.
Longe de se constituir em um catálogo, o livro expressa, por um lado, o compromisso inequívoco do autor em entender a história do Brasil, o que sempre esteve inseparável do desafio do intelectual de transformá-la; e, por outro, a busca incessante para entender todas as dimensões da historiografia, área que o historiador Francisco Iglésias mais cultivou e refletiu ao longo de sua vida.
Parafraseando Bloch, que pôs em evidência a historicidade do conhecimento histórico e do próprio homem, Iglésias foi filho do seu tempo – tempo em que o curso de história se institucionalizou no Brasil, saindo das brumas, tornando o ofício do historiador algo possível. Graduado em 1945, pari passu ao primeiro processo de redemocratização do Brasil em meio à crise e ao desgaste do Estado Novo de Getúlio Vargas, ele pode acompanhar e entender as novas abordagens teórico-metodológicas da história, a partir da École des Annales; ao que internalizou as lições de Lucien Febvre quanto à descoberta/revelação do não-dito e/ou do interdito nas fontes/discursos; e incorporou ao seu repertório de historiador os conhecimentos interdisciplinares advindos das ciências sociais e da geografia.
Não perfazendo uma obra terminada e organizada pessoalmente pelo autor, este livro representa mais os fragmentos da pesquisa de Francisco Iglésias acerca da reconstituição e interpretação da trajetória da “história da história do Brasil” desde os tempos da colônia até algumas contribuições marcantes dos estudos universitários na década de 80. Deixada em manuscrito, a primeira versão começou a ser redigida em 1985 e foi revista em 1987, quase inteiramente concluída2. O projeto foi retomado, mais tarde, por volta dos anos 1997 e 1998, quando ele intentou reescrevê-lo.
Não se trata de uma síntese histórica exaustiva; mas sim de um trabalho que inventaria, no recorte de temporalidades específicas, como a nossa história foi construída pelos historiógrafos. Narrativas que enunciaram visões diversas de Brasil e colimaram por forjar tradições historiográficas, que serviram de fundamento para novas interpretações sob uma perspectiva multidecenal. Cronistas e viajantes voltados à descrição minuciosa da terra, de suas riquezas, de sua gente e, até mesmo, dos seus males, a exemplo de Frei Vicente de Salvador e Antonil. “Biógrafos” da nação brasileira, em busca do entendimento da realidade cultural de um povo e de uma nacionalidade ainda indefinidas, como Adolfo Varnhagen, Sérgio Buarque de Holanda e José Honório. E/ou inquietos diante da realidade social, como Capistrano de Abreu e Caio Prado Júnior. Todos iniciaram, expandiram ou renovaram os estudos históricos em nosso país, se constituindo, até hoje, em referências de pesquisa.
E mais, captando a premissa dos Annales quanto ao diálogo interdisciplinar da história com outras áreas do conhecimento, Francisco Iglésias revê, ao longo do livro, o legado de renomados intelectuais que marcaram o pensamento brasileiro em diversos campos e realizaram obras de alcance historiográfico. O que rompe com aquele estrito conceito de historiografia e, por conseguinte, aponta para uma perspectiva plural e polifônica da escrita da história. Evocam-se aqui: Sílvio Romero, José Veríssimo, Euclides da Cunha, João Ribeiro, Gilberto Freire, Vitor Nunes Leal, Florestan Fernandes, Antônio Candido, Raimundo Faoro e Celso Furtado, dentre outros.
Consciente da articulação do discurso historiográfico com um espaço-tempo socialmente definido, Francisco Iglésias reconhece o lugar re-velado da história para pensar e conhecer o Brasil. A história no Ocidente fundou-se sob o compromisso inarredável com o passado que cumpria legitimar pelo viés da nação no processo de construção e afirmação da modernidade. Enquanto saber constituído, sob o manto do cientificismo, à história destinou-se prover a sociedade de representações globais, explicando as origens do viver humano através dos tempos. Se a história nasce no Ocidente e erege, legitima e consolida relações de poder, justifica-se a ênfase na história política e administrativa; assim como a proeminência concedida ao documento como prova de irrefutabilidade da “verdade histórica”. A par de tais influências, constitui-se de forma relativamente duradoura, no Brasil Oitocentista e nas décadas iniciais do Novecentos, uma historiografia – segundo Iglesias – conservadora, apegada ao “supostamente grandioso”, guardiã do poder, defensora do status quo, “temerosa do povo”; e, por conseguinte, avessa ao social e com traços racistas, nem sempre declarados e tantas vezes sutis e imprecisos.
Preocupado em sumariar, sob uma perspectiva crítica, os caminhos dos estudos históricos brasileiros, Francisco Iglésias propõe uma periodização, embora consciente da relativa arbitrariedade e limites que a envolvem; o que o levou a definir três grandes momentos da nossa historiografia, os quais se encontram organizados em três capítulos.
O primeiro momento está delimitado entre os anos de 1500 e 1838, ou seja, do período colonial, passando pela conquista da autonomia política e se encerrando com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (doravante IHGB). Este momento se caracteriza mais pelas crônicas históricas do que a história per si; mais pelas fontes do que obras elaboradas, sem nenhuma ambição de síntese global. Iglésias destacou os relatos/descrições ufanistas dos viajantes e cronistas sobre a terra, suas riquezas e seu povo, muitos deles publicados em séculos posteriores, tais como: Pero Magalhães Gandavo (A História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil); Fernão Cardim (Tratados da terra e gente do Brasil); Gabriel Soares de Sousa (Tratado descritivo do Brasil); Frei Vicente de Salvador, com a primeira História do Brasil, em 1627, expôs uma crítica pioneira às ações dos colonizadores, e Ambrósio Brandão com Diálogos das grandezas do Brasil, uma fonte notável de informações.
E já no Oitocentos, mais do que Rocha Pita com a História da América Portuguesa, a obra que merece destaque foi a do jesuíta italiano Antonil Cultura e Opulência do Brasil – por suas drogas e minas. Tratando-se da época em que foi escrita, tal obra legou-nos uma visão crítica e atenta à realidade social e econômica da colônia; o que levou Francisco Iglésias a considerá-lo “nome privilegiado para a historiografia brasileira”.
O segundo momento, de 1838 a 1931, é deveras relevante por sua dupla significância: de um lado, pelo fato do século XIX ser “o século da história”, quando esta adquiriu o estatuto de cientificidade e abriu espaço para uma renovação sem precedentes da historiografia do mundo europeu, ao qual o Brasil se vinculava. E, de outro, sob a influência desse quadro, assistiu-se à fundação em 1838 do IHGB que representou uma “virada de páginas da historiografia brasileira”. Este instituto elaborou e difundiu, através da ação pioneira do pesquisador e escritor Francisco Adolfo de Varnhagen, um conceito de história nacional, inspirado no historicismo alemão, tendo em vista a legitimidade da nação e suas conquistas; o que remetia per si ao projeto político de configuração do Estado Nacional brasileiro. Não desvalorizando obras anteriores, como as de Robert Southey, Von Martius e Saint-Hilaire, Iglésias realçou a produção intelectual do historiador Varnhagen – fundador de uma nova historiografia – cuja obra mais notável apareceu, em 1854, no primeiro volume de História Geral do Brasil. Baseado nas referências clássicas da objetividade histórica, na valorização extrema do documento e no eruditismo, ele elaborou uma narrativa da história do Brasil, que se transformou, por decênios, em um “modelo do processo brasileiro”; modelo que privilegiou a cronologia de acontecimentos políticos decisivos, a descrição dos fatos, as ações de personalidades e a defesa da ordem e das prerrogativas dos grupos dominantes.
No item “Além de Varnhagen”, que recobre a virada do século XIX rumo às primeiras décadas do século XX, a despeito de outros nomes da intelligentsia brasileira, como Barão do Rio Branco, Joaquim Caetano, Cândido Mendes, Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, Manoel Bonfim, Pandiá Calógeras e Tobias Monteiro, sobrelevou-se Capistrano de Abreu, por ter sido, segundo Iglésias, “o primeiro patrício com o sentido interdisciplinar da ciência social”. Conjugou à história, os conhecimentos da geografia, economia, sociologia e antropologia, inovando decisivamente a historiografia até então circunscrita à história política. A sua obra mais importante, que dominou incólume por trinta e cinco anos, foi Capítulos de História Colonial, de 1907 – uma poderosa síntese que “foge ao esquema tradicional de uma história só política e administrativa para fazer uma história também social e econômica”. Se Capistrano de Abreu morreu no ano de 1927, a sua fecundidade inovadora nos estudos históricos manteve-se através dos tempos, inclusive com a fundação de uma sociedade que leva o seu nome para fins de divulgação de suas obras.
E, por fim, o terceiro momento, de espaço menor no livro, se inicia no ano de 1931, quando a Reforma de Ensino de Francisco Campos criou o Curso de história. Tal fato se desdobrou em uma nova fase da historiografia brasileira, porquanto passou a existir uma produção elaborada por profissionais especializados para esse fim.
Nesse contexto, merece destaque Gilberto Freire, que, influenciado pela fermentação de idéias e pelas divisas inovadoras do modernismo, escreveu uma vasta obra, dentro da qual se ressalta a tríade: Casa-Grande & Senzala (1933); Sobrados e Mocambos (1936) e Ordem e Progresso (1959). Esse intelectual elaborou, mesmo não sendo historiador, uma interpretação pioneira sobre a vida social brasileira até as primeiras décadas do século XX, com realce à formação, consolidação e desintegração do patriarcalismo pari passu às transformações históricas da Monarquia à República. A obra de Freire representou, à época, um marco na compreensão de aspectos sociais e culturais que ajudaram a construir e formatar o Brasil, abrindo novos caminhos para a interpretação da história.
Ainda na década de 30, movidos pelo afã de explicar as origens do Brasil, mormente de (re)definir a identidade nacional, merecem ênfase aqueles que Francisco Iglesias considera os dois maiores historiadores de sua geração, a saber: Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Eles nos ofertaram contribuições definitivas para melhor conhecer e explicar o Brasil em uma relevante conjuntura histórica de mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais advindas da quebra do regime republicano oligárquico. Caio Prado Júnior, dentro da abordagem teórico-metodológica oferecida pelo marxismo, analisou o processo histórico brasileiro, estreando em 1933 com Evolução Política do Brasil; e, depois, lançando, em 1942, Formação do Brasil Contemporâneo, que representou pela compreensão da totalidade em sua dinâmica social uma das obras-primas da historiografia à época; o que a transformou em referência de pesquisa sobre Colônia e destronou, após trinta e cinco anos, a relevante obra de Capistrano de Abreu. Sérgio Buarque, por sua vez, vivenciou a efervescência do movimento modernista e a ele se identificou pelo anseio em compreender e aprofundar o que o país tinha de autêntico, genuíno, em meio às pesadas heranças do colonialismo europeu. Disso resultou a publicação de Raízes do Brasil, em 1936, quando formulou uma identidade do ser brasileiro, partindo, dentre outros temas, da noção de “homem cordial”.
Embora não se inserindo nesse quadro da historiografia brasileira moderna, Iglésias mencionou ainda Oliveira Viana, por ter sido ele um dos formuladores do pensamento autoritário no Brasil. Deixou uma obra digna de referência, na qual se destaca Instituições políticas brasileiras (1949), mesmo que sustentada por uma postura autoritária e racista.
José Honório Rodrigues – historiador comprometido, segundo Iglésias, “com as grandes causas nacionais” – teve bastante significância pela extrema dedicação à pesquisa e à historiografia; pela renovação dos arquivos; pelas denúncias que fez contra os dirigentes em nosso país vis-à-vis à exaltação da superioridade do povo brasileiro e, enfim, pelo vanguardismo quanto ao ensino da história, por meio de programas renovadores que denunciavam práticas obsoletas dentro das universidades e defendiam um Instituto Nacional de Pesquisa Histórica. A par da amplitude de sua produção, mencionamos à guisa de ilustração: A pesquisa histórica no Brasil; História da história do Brasil, a historiografia colonial; História e historiadores do Brasil; Vida e história; História e historiografia, e Teoria, pesquisa, historiografia; este foi um texto decisivo sobre o ensino de história.
Francisco Iglésias elaborou, por fim, um breve balanço sobre a contribuição da universidade no que tange ao avanço dos estudos históricos brasileiros. Enfatizou os trabalhos pioneiros de Alice Canabrava, Fernando Novais e Jacob Gorender no desvendamento da realidade social brasileira; transitou pela publicação da chamada História Nova, em março de 1964, com a participação de vários intelectuais, dentre os quais destacou Nelson Werneck Sodré. E alcançou as audaciosas sínteses históricas, em voga, até a década de 80, dentro das quais recortou as interpretações de Edgar Carone e Hélio Silva, ambas voltadas à República; a obra de Manoel Maurício com a Pequena História da Formação Social Brasileira, e a importante coleção História Geral da Civilização Brasileira, organizada, a princípio, pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda e, a posteriori, por Boris Fausto. Vivia-se um momento em que a crença na história total embasava os estudos históricos, ainda sob forte influência dos Annales.
A análise mais ampla e completa desse “último momento” da historiografia brasileira ficara por fazer. Isso não obscurece a validade do livro de Francisco Iglésias para estudantes e professores-pesquisadores, mesmo quando sabemos que há sempre um longo e rico caminho a percorrer.
Notas
1 O texto apresentado é uma resenha do livro: Francisco Iglesias. Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro/Belo Horizonte, Nova Fronteira-UFMG/IPEA, 2000, 251 páginas.
2 Referimo-nos ao capítulo III sobre o ensino da história que foi inicialmente proposto pelo autor; porém, o mesmo não chegou a ser plenamente desenvolvido.
Resenhista
Ana Maria Ribas Cardoso – Professora e Coordenadora de História da Unidade Escolar Humaitá II do Colégio Pedro II. Doutoranda pelo PPGHUERJ sob orientação da Profª. Dra. Tânia Bessone. Mestre em História do Brasil pelo PPGH- UFRJ; Licenciada Plena e Bacharel em História pela PUC-Rio.
Referências desta Resenha
IGLESIAS, Francisco. Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Nova Fronteira; UFMG; IPEA, 2000. Resenha de: CARDOSO, Ana Maria Ribas. Revisitando a Historiografia Brasileira com o intelectual Francisco Iglésias1. Intellèctus. Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, 2009. Acessar publicação original [DR]
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