A atual pandemia, causada pelo vírus da COVID-19 que se espalhou rapidamente pelo mundo, infectando mais de oitenta e duas milhões de pessoas e causando quase duas milhões de mortes em 2020, ilustrou de forma dramática a nossa realidade globalizada. Essa doença nova e altamente contagiosa manifestou-se primeiramente na cidade de Wuhan, na China. Dali disseminou-se por todos os cantos habitados do planeta ao ser transmitida de uma pessoa a outra, acompanhando viajantes que de Wuhan se dirigiram a regiões da Ásia, da Europa, das Américas, da África e da Oceania. O vírus, junto com seus hospedeiros, se moveu ao longo das mesmas rotas que conectam econômica, política, e culturalmente os diferentes continentes do globo.
Mas os surtos piores da doença ocorreram em cidades. A presença de aeroportos, portos, e outras centrais de transporte público, a concentração demográfica e a intensidade de atividades coletivas que caracterizam centros urbanos favoreceram o alto índice de contágio da doença em cidades diversas como Nova York, São Paulo, Madri, Londres e tantas outras. Os esforços feitos por governos municipais, regionais e nacionais para controlar a epidemia produziram imagens de cidades vazias, espaços públicos abandonados, e de uma quietude tão contrária à esperada natureza do espaço urbano, que paramos todos para olhar, admirados, o nosso mundo transformado pelo vírus. A nossa relação com o global se manifestou de forma tragicamente tangível em 2020. E durante um breve momento, as fotografias de espaços urbanos iconoclásticos, subitamente desprovidos de suas multidões e furor típicos, capturaram bem nossa sensação de isolamento e perda coletiva (KIMMELMAN, 2020).
O espectro da cidade transformada pela pandemia remonta à forte conexão que existe entre o urbano e o global. Se hoje o lugar que a cidade ocupa em complexas redes de movimentação e transmissão nos causa certa ansiedade, em outros tempos, quer passados ou recentes, foi exatamente essa função ou propriedade das cidades que moldou suas trajetórias históricas e fez delas lugares célebres. Se hoje vemos governantes, agentes de saúde pública e cidadãos esforçando-se para limitar ou regular melhor a passagem de pessoas, produtos e micro-organismos pelos espaços urbanos, esforços normalmente feitos no sentido oposto, de intensificar essas atividades, ajudaram a produzir o mundo globalmente interconectado no qual vivemos hoje.
A cidade na era da COVID também revela a profundeza das desigualdades e a assimetria de poder entre populações, sociedades e estados que o mundo moderno globalizado produziu. Ao começo da pandemia, houve aqueles que disseram que a nova doença seria o grande equalizador, uma vez que o vírus não diferencia os que infecta de acordo com raça, etnia, situação socioeconômica, gênero etc. Mas assim que a epidemia se tornou pandemia e começou a se espalhar e a matar suas vítimas em cidades mundo afora, essa visão do vírus igualitário precisou ser revisada. Populações urbanas pobres, majoritariamente formadas de minorias raciais e étnicas, se viram mais vulneráveis à contaminação, quer por causa da precariedade de suas condições de vida, quer pela necessidade de continuar trabalhando em funções que as expuseram à doença, quer pela falta de acesso a um sistema público de assistência à saúde (MARASCIULO, 2020). A complexidade do tecido urbano, irregular, segregado e desigual em sua composição social, econômica, política e cultural, se tornou explicitamente evidente. A pandemia revelou também desigualdades num nível transnacional. Um vírus de alcance global, que encorajou cooperação entre comunidades científicas e líderes culturais e políticos de vários países, produziu, no entanto, reações locais diversas, revelando as forças e fraquezas de sistemas políticos, sistemas de saúde, e sistemas de crença em diferentes nações e suas comunidades urbanas (WENG; NI; HO, 2020). A pandemia nos tem oferecido assim um exemplo de como, ao focarmos a cidade, conseguimos visualizar diversidade na forma como eventos e processos globais afetam indivíduos, grupos, localidades, e comunidades, criando muitas vezes hierarquias e realidades discriminadas.
Da mesma forma que podemos observar as complexas redes urbanas que animam trocas globais para entender a origem e progressão da pandemia da COVID-19, podemos também entender processos históricos globais diversos a partir do estudo de cidades. As cidades atuais agiram e agem como pontos de convergência e difusão do vírus. No passado tanto distante como recente, elas similarmente atuaram como pontos de articulação entre localidades, regiões, nações, continentes e oceanos. Enquanto aguardamos a produção em massa e distribuição mundial da vacina contra o COVID-19 – o que certamente se organizará em e a partir de cidades – vale contemplar o papel que as cidades ocupam em processos históricos globais. É essa a proposta do dossiê História Urbana Global.
Os nove artigos coletados aqui examinam a trajetória de cidades ao longo do século XX. Questões comuns à área de pesquisa da história urbana – políticas de urbanização, a administração e uso de espaços urbanos, acesso a moradias, e o consumo de arte e entretenimento – são abordadas numa perspectiva atenta ao fluxo global de ideias, práticas e produtos. Por outro lado, processos globais variados, desde a emergência do comércio internacional de marchands da arte até o impacto da economia da soja – perpassando ainda por políticas transnacionais de habitação, desenvolvimento econômico, e produção de petróleo – são examinados e ancorados em estudos de casos de cidades específicas. Conjuntamente, os trabalhos selecionados revelam a cidade ora como produto de forças globalizantes, ora como agentes e promotores de tendências globalizadoras. Sobretudo, eles distinguem a cidade como importante lente de análise do global. Populações, dinâmicas e espaços urbanos refratam e ampliam, assim como às vezes obscurecem ou ignoram, eventos e desenvolvimentos externos, revelando as múltiplas e complexas formas com que contexto, experiências, ideias, e ações tanto globais quanto locais interagem historicamente.
O interesse pela interseção histórica e historiográfica entre o global e o urbano tem crescido rapidamente desde a virada do século XXI. Essa tendência surgiu em parte em resposta a trabalhos produzidos no final do século XX por estudiosos da cidade. Sociólogos e geógrafos em particular nos chamaram a atenção para o fenômeno que eles cunharam de cidade global (SASSEN, 2013; CASTELLS, 1996; FRIEDMANN, 2002; BRENNER, 2004). Segundo eles, a cidade global, enquanto objeto de estudo, permite situar investigações sobre a globalidade de fenômenos e eventos da sociedade contemporânea em localidades específicas, ancorando-os em espaços físicos e atores sociais distintos para assim evitar narrativas abstratas e generalizadoras e facilitar uma análise crítica de suas causas e impacto. Essa literatura deu, portanto, continuidade ao importante trabalho intelectual de geógrafos como David Harvey (1973, 2003). Harvey investigou a cidade enquanto produto do capitalismo moderno e promoveu um engajamento crítico de urbanistas com a realidade urbana com o intuito de impedir a reprodução das desigualdades e assimetrias de poder que este criou. Esse debate acabou inspirando historiadores a questionar se a cidade global, essa entidade que se definiu a partir do diálogo entre espaço urbano local e das forças capitalistas e liberais globais recentes, não tinha suas origens ou seus homólogos em épocas anteriores (SAUNIER; EWEN, 2008; CLARK, 2013).
A emergência da História Urbana Global enquanto campo de investigação também deve muito aos esforços da história global que surgiu na segunda metade do século XX. Num momento político bastante influenciado pela virada teórica anti- e pós-colonial, historiadores buscaram examinar o passado de sociedades humanas numa perspectiva mais abrangente, que excedesse os limites da história nacional ou colonial. A história global enquanto abordagem desafiou narrativas históricas dominantes que tendiam a excluir ou silenciar experiências humanas e processos que não condiziam com o projeto civilizatório europeu ou seus agentes históricos (CONRAD, 2016; SANTOS JÚNIOR; SOCHACZEWSKI, 2018).
Ao oferecer a possibilidade de conceber outros recortes geográficos e temáticos, quer fosse o enfoque em regiões mundiais, quer oceanos ou redes comerciais em vez de nações ou impérios, quer fosse ainda o enfoque em estudo de gênero, raça, ou etnias, histórias globais permitiram a “provincialização da Europa”, como propôs Dipesh Chakrabarty (2000). Essa perspectiva elucidou a centralidade de regiões e populações não europeias às origens, dinâmicas, e impacto de eventos e desenvolvimentos históricos que marcaram o passado de sociedades humanas de forma ampla e abrangente. A cidade e o urbano se tornaram um outro possível recorte geográfico e temático para a abordagem global. O passado de redes urbanas que se estendeu pelo globo elucida, afinal de contas, complexas conexões e intercâmbios transnacionais que alimentaram sistemas econômicos, políticos e culturais em diferentes épocas históricas (KENNY; MADGIN, 2015). Práticas e políticas urbanísticas, assim como populações e espaços urbanos, fomentaram a troca e difusão de ideias e atitudes numa escala transnacional e mundial (KWAK; SANDOVAL-STRAUSZ, 2018). No trabalho de historiadores do urbano global, a cidade surge, portanto, como o sítio onde o efeito de transações econômicas, movimentos migratórios, ideologias políticas, e o investimento e busca de capital financeiro se traduzem da escala global à experiência local e onde realidades locais informam a natureza de trocas, fluxos, e práticas globais.
A promissora combinação do global e do urbano cria um novo campo de pesquisa temática, metodologia e abordagem historiográfica que traz, contudo, sua parcela de desafios. Tradicionalmente, a história urbana caracteriza-se por estudos densos, focados em localidades específicas e solidamente sustentados por pesquisas em arquivos urbanos. A história global, por sua vez, tende a traçar sínteses sobre processos históricos homólogos, passíveis de serem comparados em localidades distintas, ou evidentes ao longo de redes ou fluxos que conectam lugares, comunidades, atores históricos diversos. A tarefa de combinar a densidade analítica da história urbana com a abordagem ampla da história global pode parecer inviável. Um único historiador poderá se ver diante de imensos obstáculos: pesquisa em diferentes idiomas, tradições arquivísticas e historiográficas distintas, a dificuldade de acessar recursos de pesquisa e financiamento necessários. É nesse sentido que proponentes da História Urbana Global têm formado projetos colaborativos e redes de pesquisa internacionais, apoiando-se em suas diferentes áreas de conhecimento e compartilhando seu trabalho para promover um melhor entendimento da cidade enquanto possível objeto de estudo do global. Vale notar em particular os esforços do Global Urban History Project (GUHP), uma organização de historiadores dedicada à investigação de cidades enquanto criações e criadoras de fenômenos históricos de escala global (www.globalurbanhistory.org). Colaborações como o GUHP têm organizado conferências e facilitado publicações que reúnem historiadores de diferentes partes do mundo, trabalhando em tópicos e localidades diversas, para cultivarem juntos o potencial explicativo do urbano, a fim de entender o global e vice-versa.
Com esse dossiê, a Esboços: histórias em contextos globais se torna também uma plataforma colaborativa para a promoção desse diálogo produtivo entre a história urbana e global. Os textos aqui incluídos refletem a rica diversidade temática e metodológica possível dentro desse diálogo. Os episódios e casos explorados nesse volume revelam cidades que servem de nódulos coordenando e comandando forças históricas globais, espaços urbanos de fluxo de pessoas e produtos, e sítios de trocas, negociações e conflitos. Os artigos também ilustram possíveis usos de abordagens da história global no estudo do urbano: a abordagem comparativa, a introdução de diferentes modelos de difusão não centrados no eixo Europa−Estados Unidos, a inserção do local em contextos transnacionais e globais, e o papel do local no processo de mediação de forças e tendências globais. Em sua história geral do mundo moderno, Fernand Braudel se referiu a cidades como “transformadores elétricos”, intensificando ou moderando correntes externas, acelerando e orientando ritmos de vida coletiva e individual, e “incessantemente incitando” e realidade diária de sociedades humanas (BRAUDEL, 1973, p. 382). A metáfora de Braudel é traduzida em exemplos e exposições históricas tangíveis e reveladoras pelos autores do dossiê.
Em seu artigo “De la ciudad a la metrópole. Un enfoque desde México sobre um pasado global”, Carlos Riojas e Alejandro Arjona (2021) examinam o processo de metropolização que desde o início do século XX manifesta-se em centros urbanos mundiais. Produto da evolução demográfica que caracterizou o século passado – o acentuado crescimento da populacional em grandes cidades e a progressiva redução da população rural – este desenvolvimento urbano global não respeitou perspectivas eurocêntricas do conhecimento. A emergência da metrópole deu-se em diversos espaços sociais, políticos e econômicos que englobam países asiáticos, africanos e latino-americanos. O processo de metropolização, como mostram os autores, trouxe consigo inúmeros desafios que, por sua vez, reorientaram o nosso modo de pensar a cidade. Dentre estes, incluem-se o crescimento desordenado que agrava problemas habitacionais; desafios de logística de abastecimento; diferenças sociais; o aumento de contingentes populacionais vivendo à miséria; a precarização do transporte público; e problemas de saúde pública coletiva, como a atual crise global de COVID-19. Ao questionarem se a atual complexidade dessas metrópoles cria a necessidade de pensarmos uma forma alternativa de organizar atividades e trocas humanas, Riojas e Arjonas nos remetem ao trabalho da geógrafa Jennifer Robinson (2002). Em seu importante artigo “Global and World Cities: a view from off the map”, Robinson argumenta que o futuro das questões e soluções urbanas não mais se encontra nos modelos urbanísticos europeus. Riojas e Arjonas ilustram bem a necessidade de direcionarmos o nosso olhar a cidades como a Cidade do México.
Os problemas habitacionais derivados do crescimento urbano informam a discussão que Samuel Oliveira e Gabriela Gomes desenvolvem em seu artigo, onde eles comparam as políticas habitacionais das ditaduras brasileira e argentina na segunda metade do século XX. Ambos os governos elaboraram grandiosos projetos habitacionais para minimizar o impacto das habitações irregulares nos grandes centros urbanos, as favelas, no Brasil, e as villas misérias, na Argentina. Os programas imaginavam ser possível higienizar os centros urbanos levando essas populações para bairros mais afastados com a construção de moradias populares em bairros planejados.
Em sua análise, Oliveira e Gomes prestam a devida atenção às diferenças em formas de investimento que sustentaram os dois projetos. Mas eles também enfatizam o conservadorismo comum a políticas habitacionais moldadas pelo contexto político global da Guerra Fria, quando o enfoque em habitações populares era confundido com a suposta agenda comunista de governos populistas. O resultado foi o beneficiamento dos setores médios urbanos, os quais puderam acessar formas de financiamento da casa própria em números significativamente maiores do que membros dos setores populares, os alvos iniciais desses programas. Fica evidente, portanto, que as políticas habitacionais das ditaduras brasileira e argentina colaboraram para o aumento da segregação – racial e socioeconômica – do espaço urbano, reforçando a tese já apontada por Carl Nightingale (2012) sobre o papel segregacionista do setor imobiliário.
A segregação também pode ser vista na longa duração, como nos mostra Nancy Kwak (2021) em seu excelente estudo sobre a informalidade urbana a partir do caso da cidade de Los Angeles. Em seu artigo, a autora explora aspectos cruciais das políticas habitacionais na capital californiana a partir de três períodos históricos. No período colonial, são destacadas as disputas pela posse e domínio territorial entre indígenas, mexicanos e os primeiros colonizadores norte-americanos, onde questões raciais importavam mais para determinar os direitos sobre às terras do que a própria lei. Essas tendências permaneceriam como regra ao longo do século XIX e primeiras décadas do século seguinte. Somente após a Segunda Guerra Mundial as políticas governamentais iriam prestar mais atenção para a presença da informalidade em determinadas regiões, como Chaves Ravine, espaço onde centenas de famílias residiam há décadas. Independentemente dos direitos de posse da terra, a legislação contra favelas (slums) foi acionada para intervir e remover essas populações de onde viria a ser construído o estádio de baseball dos Dodgers. O terceiro período analisado é o atual crescimento dos moradores de ruas no centro de Los Angeles, especialmente na área conhecida como Skid Row, que abriga milhares de pessoas morando em estruturas completamente improvisadas que desvalorizam uma região central da cidade. As atuais políticas governamentais parecem reproduzir as práticas segregacionistas de longa duração, a partir de princípios raciais e econômicos de exclusão que reforçam estigmas sociais. E o exemplo de Los Angeles nos lembra que a informalidade urbana, produto da forma com que populações locais se adaptam às forças excludentes do capitalismo e práticas imobiliárias globais, não é um fenômeno restrito ao suposto sul global.
O artigo de Katharina Schembs (2021) também propõe um questionamento da diferenciação entre o norte e o sul globais em estudos sobre o processo de urbanização. A partir de uma análise minuciosa de dezenas de revistas de arquitetura publicadas na América Latina entre as décadas de 1960 e 1970, Schembs analisa como o movimento desenvolvimentista latino-americano criou uma visão específica e dominante de cidade, distinta das compreensões francesas e norte-americanas de planejamento urbano que dominaram as décadas precedentes. A euforia desenvolvimentista, baseada apenas nos investimentos estatais, logo cedeu espaço para interpretações baseadas na teoria da dependência que explicavam o crescimento das desigualdades nos grandes centros urbanos ao inclui-las como elementos periféricos do sistema capitalista internacional. As noções típicas de cidades do “Terceiro Mundo” passaram a predominar nas publicações de revistas latino-americanas, o que não deixou de criar oportunidades para circular casos de projetos de desenvolvimento urbano originais na região, inclusive com práticas de cooperação Sul-Sul. No entanto, com a ascensão de governos autoritários na região a partir da década de 1960, essas práticas foram logo substituídas pelos princípios neoliberais que marcariam as políticas de planejamento urbano subsequentes.
O trabalho de Daniele Herbele Viegas (2021) dá continuidade, de certa forma, ao texto de Schembs com o estudo de caso sobre a transnacionalidade de políticas de planejamento e desenvolvimento das regiões metropolitana de Porto Alegre e do Vale do Rio dos Sinos. Viegas discute as influências tecnopolíticas em projetos envolvendo o Brasil e a República Federal da Alemanha (RFA) nos anos 1970. Partindo de um exame detalhado de relatórios empresariais, documentos estatais, entrevistas e uma variedade de referências bibliográficas, a autora explora as assimetrias nas circulações de tecnocratas e engenheiros de diferentes expertises. Esses profissionais ofereceram análises detalhadas de intervenções urbanas e ambientais para melhorar o desenvolvimento industrial, higienizar bairros e garantir a complementariedade entre espaços rurais e urbano. Viegas insere sua análise da estrutura de cooperação entre os dois países, e da negociação do significado e do valor da expertise alemã, em uma dinâmica de áreas de influências derivadas da Guerra Fria. Sua contextualização desses projetos revela elementos conceituais tributários de uma visão eurocêntrica que enxerga esses espaços urbanos de maneiras desiguais. Noções como “transferência de conhecimento”, desenvolvimento no “Terceiro Mundo” ou promoção de “Cidades Secundárias” são algumas dessas ideias e conceitos que pressupõem relações hierárquicas entre os espaços urbanos dos chamados norte e sul globais.
Enquanto Viegas adota uma abordagem transnacional para examinar a circulação e aplicação de concepções e práticas urbanísticas, Bruno Biasetto (2021) emprega uma perspectiva comparativa para estudar o fenômeno de boom towns ligadas à economia do petróleo. Nesse estudo de cidades outrora periféricas que assistiram um intenso crescimento populacional com o estabelecimento de complexas estruturas de extração petrolífera em suas regiões, Biasetto examina a relação entre pressões econômicas globais, interesses privados e políticas públicas no desenvolvimento de espaços urbanos. Durante a crise do petróleo nos anos 1970, cidades pequenas da província de Alberta e dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro tornaram-se peças centrais nas companhias estatais de petróleo dos dois países. No entanto, este desenvolvimento trouxe consigo diversos problemas sociais, habitacionais e, sobretudo, ambientais. Por mais que o Canadá tivesse órgãos públicos de controle e uma rigorosa legislação, as técnicas de extração e os problemas de longo prazo dos dejetos causaram diversos impactos ambientais, como poluição e chuva ácida. No caso brasileiro, a falta de transparência ditatorial somada à falta de controle regulador e a uma legislação omissa levaram a diversos casos de vazamentos de petróleo e a uma intensa poluição do ar, colocando diversas espécies do bioma em risco. A comparação entre Brasil e Canadá oferece um interessante paralelo de atuação governamental, independentemente da inclinação política deles. Se de um lado está um país desenvolvido com uma política liberal, do outro encontra-se um país em vias de desenvolvimento em meio a uma ditadura militar. Ambos, porém, não hesitaram em encontrar meios de sobreviver à crise petrolífera mundial a partir de uma ótica nacionalista, sem se preocuparem com os diversos impactos sociais, turísticos e ambientais nas regiões.
A cidade no século XX se tornou assim projeto, âncora, e palco para a realização das ambições de estados neoliberais e indústrias globais. Mas ali também se manifestaram as ambições de consumidores, artistas, e trabalhadores tanto urbanos quanto rurais. O papel do urbano no fluxo global de produtos culturais, práticas de lazer e debates políticos fez com que indivíduos e grupos que buscavam assegurar o seu lugar e direitos na sociedade contemporânea recorressem ao espaço urbano para reivindicá-los. Em seu artigo, Letícia Falabella Leme (2021) examina a centralidade de núcleos urbanos no processo de circulação de pessoas e produtos que favoreceu o mercado global da arte nas primeiras décadas do século XX. Focando uma época de ascensão dos fluxos de produção e consumo de obras de artes, a autora analisa a popularização da pintora francesa e expoente da tradição cubista Marie Laurentin nos grandes centros urbanos da França, da Alemanha, dos Estados Unidos e do Brasil. Destacada por sua inserção na vanguarda cubista, ao lado de nomes como Picasso, Braques e Gleizes, como também por uma persistente caracterização feminina da sua produção, Laurentin valeu-se de uma intrincada rede de críticos de arte e mercadores de diferentes nacionalidades, que favoreceram o reconhecimento de suas obras e a inserção das mesmas no mercado internacional de arte. Foi a partir dessa estratégia que suas obras figuraram entre importantes exposições em museus e galerias de cidades cosmopolitas que se afirmavam como grandes consumidoras de arte, tais como Paris, Berlim, Nova York, São Paulo e Rio de Janeiro.
Igualmente importante é pensar as cidades consumidoras de arte de formas integradas – para utilizar o conceito de Sebastian Conrad (2016) – explorando a sincronia de fenômenos globais em diferentes espacialidades. Em “Músicos e Orquestras do Primeiro Cinema em Greve”, Michel Mesalira (2021) discute movimentos grevistas no Rio de Janeiro, São Paulo e Chicago que se manifestaram concomitantemente nas primeiras décadas do século XX. Ele mostra que esses eventos sincrônicos precisam ser situados no contexto global do surgimento e da popularização do cinema, quando músicos e orquestras se tornaram peças essenciais a essa experiência urbana de lazer e entretenimento, mas foram excluídos dos lucros e do prestígio que a indústria criara. As estratégias de resistência, os recorrentes conflitos com empresários e proprietários dos cinematógrafos e as organizações sindicais dos músicos são algumas questões exploradas por Mesalira para ressaltar as semelhanças e diferenças no desenrolar de eventos em cada cidade. No entanto, o que chama atenção são os indícios de que essas práticas, conflitos, e negociações não se restringiram apenas às cidades analisadas, mas ocorreram também em outros lugares no mesmo período, configurando um potencial objeto de estudo da História Urbana Global.
O uso do espaço urbano para reivindicações trabalhistas e de direitos econômicos por grupos adversamente afetados por tendências e forças globais é também tema do artigo de Maira Eveline Schmitz (2021), “Fotografia e espaço público visual”. Schmitz desenvolve sua análise a partir de uma discussão de fotografias publicadas em jornais do Rio Grande do Sul que retratam manifestações de agricultores da soja contra políticas tarifárias do governo brasileiro que, em 1980, visaram desincentivar a exportação da safra local para garantir a oferta nacional do produto. Ao verem sua participação no comércio global da soja restringida e sua margem de lucro negada, trabalhadores rurais ocuparam espaços públicos em cidades como Santa Rosa para demandarem o fim dessa política que classificaram de confisco. A transformação da cidade em espaço de protesto, como mostra Schmitz, se concretizou mais plenamente com a circulação de fotografias registrando esses eventos. As imagens de espaços urbanos invadidos por manifestantes rurais, de ruas ocupadas por máquinas e passeatas, ordenaram a sequência de eventos e deram significado político ao ato de protesto. Imagens de agricultores e trabalhadores rurais tomando a cidade com o intuito de desafiar o estado, reconfigurou ainda narrativas sobre a relação entre populações rurais e urbanas e estruturas de poder. As fotografias analisadas por Schmitz criaram um espaço e acontecimento visual público onde a ligação entre o macro e o micro, o global e o local se manifesta e se resolve. Assim como as imagens fotográficas de cidades esvaziadas pelo isolamento social imposto pela pandemia atual do COVID-19, essas imagens de espaços urbanos ocupados em protesto refletem a confluência de fatores e agentes históricos diversos que em e a partir de cidades animaram, incessantemente, sociedades humanas passadas e presentes.
O diálogo entre a História Urbana e a História Global, na configuração desse campo da História Urbana Global está, ainda, no seu início. Mas alguns temas, métodos de pesquisa e análise, e teorias já vêm se estabelecendo, reforçados pelo seu potencial de elucidar o passado humano e produzir narrativas mais inclusivas e completas. Estes seriam o enfoque na cidade como lente analítica refratora de forças históricas transnacionais e globais; a preocupação em descolonizar a história e desafiar a diferenciação entre norte e sul global; a atenção aos vetores multidirecionais e a variações nas escalas de análises, do global ao local e vice-versa; e a colaboração entre pesquisadores para assegurar um melhor acesso a recursos linguísticos, arquivísticos e acervos historiográficos (DANTAS, 2018). Oferecemos esse dossiê, portanto, como recurso para os pesquisadores interessados em aprofundar esse diálogo, cada vez mais necessário, de “pensar as cidades como objetos que são formados e, ao mesmo tempo, formadores de fenômenos históricos globais em larga escala” (GUHP, 2021).
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