Os debates historiográficos sobre História Regional, patrimônio e arquivos nos instigam a repensar várias questões sobre a escrita da história. Para realizar uma brevíssima reflexão sobre as temáticas desta natureza, irei me valer das discussões empreendidas pela micro-história ou microanálise1, enquanto campo metodológico que nos oferece amplas possibilidades a partir do jogo de escalas2.
Jacques Revel observa que a redução de escala e a escolha por uma análise que tem como fio condutor histórias individuais ou de grupos familiares possibilita outra leitura do social3 . Para Giovanni Levi4, uma análise exaustiva da documentação oferece pistas que viabilizam articulações mais amplas, instigando os historiadores a formularem questões que possam transitar neste jogo entre o micro e o macro, não apenas para a construção de uma simples interpretação, mas para formular explicações históricas sobre uma sociedade.
Neste sentido, escreveu Carlo Ginzburg:
[A] análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável, noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula5.Implicando, por sua vez, aguçar nosso olhar para as pequenas ações que uma análise mais ampla poderia não visualizar, bem como para as especificidades que são percebidas ao tomarmos como referência os modelos macroestruturais.
Ao mesmo tempo, é preciso ter clareza dos limites desta metodologia, em função da eventual falta de corpus documental que permita o rastreamento “das pessoas em suas múltiplas relações”6. E é sobretudo aí que a questão documental ganha corpo especial.
Para essas análises a documentação que se encontra nos arquivos é fundamental para reconstituir as dimensões mais amplas dos lugares e das pessoas em uma análise exaustiva da documentação, oferecendo pistas que viabilizam articulações mais amplas7. Afinal, “um documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder”8.
Os arquivos são lócus que se mantém vivo e atuante no meio da sociedade que o teceu, permitindo a externalização e a mediação entre o tempo e os acontecimentos passados9. Assim, as atividades investigativas no interior dos arquivos revestem-se de um grande sentido de colaboração para uma reflexão mais aprofundada e consistente acerca dos acervos 10. Não se pode perder de vista que a documentação existente nos arquivos foram historicamente constituídas enquanto instrumento de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico, como elementos de prova e informação11, sendo, portanto, um patrimônio cultural que guarda os registros de determinados grupos sociais, pessoas, etc.
Finalmente, dando nome a este dossiê, os textos arrolados em História Regional, Patrimônio e Arquivos nos oferecem sete olhares multifacetados sobre esta importante investida da história, mas sobretudo nos lembram que a escrita da história é sempre uma narrativa produzida a partir do lugar que o historiador ocupa 12, com o fito de compor uma escrita e consequente explicação acerca de dada realidade.
Em Discursos sobre a saúde na revista Veja (1968-1974), único artigo que não compõe o dossiê, Lucimar Alberti, a partir dos estudos culturais, faz uma análise das reportagens que têm “a saúde” com a questão central das publicações da Revista Veja. O intuito do autor foi promover uma compreensão de como esse aparelho midiático influenciou a população através de reportagens “que vislumbravam promover uma discussão desde os avanços da saúde no Brasil, bem como, ações preventivas a partir dos interesses do governo militar”.
Já o texto de Ronaldo Manoel da Silva, intitulado Que não se use de misericórdia, mas com todo rigor da Justiça: Manoel de Souza, um bígamo condenado pelo Santo ofício (1741-1745), abre o dossiê, apresentando uma leitura de ações do Tribunal do Santo Oficio no Pernambuco seiscentista, com base em um processo inquisitorial do escravo Manoel de Souza, trazendo uma contribuição sobre a atuação da igreja nos atos que eram considerados “transgressões sociais e religiosas” em face da manutenção de uma moral social.
Aportes e limites da prosopografia para os estudos da História é o título do texto de Thais Fleck Olegário. Nele conhecemos uma rica análise historiográfica sobre o uso e limites do método prosopográfico para o estudo da História regional (ou local), em diálogo com a história social das elites. E com Os discursos preservacionistas do processo de patrimonialização de Mucugê e do cemitério de Santa Isabel, artigo de Carolino Marcelo de Souza Brito, entendemos o discurso de preservação instituído no processo de tombamento do conjunto arquitetônico do Mucugê pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), com destaque para a valorização do cemitério de Santa Isabel, em Chapada Diamantina, Bahia.
Em Histórias das vovós, preciosos acervos: memórias familiares enlaçadas a contextos da Histórias do Brasil, Raquel Borges Salvador faz um relato da experiência de trabalho com fontes histórica com alunos do 5º ano do Ensino Fundamental, em uma escola pública do município de Juiz de Fora/MG. Dentre outros pontos, o artigo compartilha o desafio de se fazer conexões entre a história local e outras histórias de contextos mais amplos, a fim de propiciar aos alunos leituras da História que vão além do que está proposto no livro didático.
O texto A História e a prática arquivistica: reflexões sobre o trabalho com os documentos do acervo “Empresa Bortulozzi” do CEDOC/UNESC, de Nathália Pereira Cabral, orientado por Michele Gonçalves Cardoso, é resultado do projeto intitulado “Fundo Empresa Bortoluzzi: da catalogação às relações trabalhistas”, fomentado pelo PIBIC/CNPQ/UNESC. Dele é possível inferir a importância da organização e catalogação da documentação a ser disponibilizada ao pesquisador, igualmente, pensar temáticas históricas das famílias e funcionários da fábrica, comércio, dentre outros recortes possivelmente mais próprias à região sul de Santa Catariana.
Finalizando esta edição, o professor Roch Ercole Zamba nos brinda com uma importante entrevista sobre o estudo das populações negra e escrava em Buenos Aires, Argentina. Feita por Mauro Henrique Miranda de Alcântara, em perspectiva mais ampla, conhecemos nela importantes considerações acerca das experiências de escravidão na América Latina.
Agradecemos a todos que responderam ao chamado do dossiê e esperamos trazer contribuições para esse debate. Boa leitura.
Notas
1 ALMEIDA, Carla M. C., OLIVEIRA, Mônica R.(orgs.) Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de (Org.). Nomes e números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: UFJF, 2006. LIMA, H. E. A Micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
2 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
3 Idem. p. 7-37.
4 Idem. p. 7-37.
5 GINZBURG, Carlo. O nome e como: troca desigual e mercado historiográfico. IN: ________. A micro-historia e outros ensaios. Lisboa: DIFEL,1989. p. 177-178.
6 FRAGOSO, João. Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica. Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, v. 5, p. 65, 2002.
7 LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.7-37
8 LE GOFF, Jacques. A História nova. 4. ed.São Paulo: Martins Fontes, 1988, p.545
9 BARROS, Dirlene Santos e AMÉLIA, Dulce. Arquivo e memória: uma relação indissociável. Transformação, Campinas, 21(1): p. 55-61, jan./abr., 2009
10 MUNTERAL FILHO, Oswaldo. O Historiador e os Arquivos. IN: MATTOS, Ilmar Rohloff de (org). Ler & Escrever para contar: Documentação, historiografia e formação do historiador. Rio de janeiro, Acess. 1998.p.280
11 Lei 8.159 de 08 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências.
12 Certeau. Michel. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
Organizadora
Vanda da Silva – Historiadora – Superintendência de Arquivo Público de Mato Grosso. Doutora em História pela Universidade Federal da Grande Dourados.
Referências desta apresentação
SILVA, Vanda da. Apresentação. Outras Fronteiras. Cuiabá, v. 4, n. 2, p. 1-4, ago./dez.2017. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.