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História pública na América Latina: mediações do passado demandas sociais e tempo presente | Estudos Ibero-americanos | 2021

Sobre o discurso vergonhoso de Bolsonaro na OUN | Charge: Laert | Chargeonline.com.br Disponível no Blog da KIKACASTRO

Sob a expressão história pública, reúnem-se múltiplas iniciativas em favor do redimensionamento do saber histórico (produção compartilha­da e ampliação dos públicos da história), observando-se as mediações do passado e as demandas sociais no tempo presente. A história não é aprendida e assimilada somente por meio da educação formal; isto significa que praticá-la requer uma ação problematizadora no debate público, de maneira responsável e integrada, para uma história partici­pativa. A história pública, por meio das discussões sobre os usos e os abusos do passado, abarca questões socialmente vivas que catalisam significações, teóricas e práticas, sobre a memória social em perspectiva transnacional: a diversidade de públicos da história; o impacto social e público da produção acadêmica em história; a interface entre história pública e divulgação científica; os debates públicos sobre patrimônio material e imaterial; o impacto das novas mídias sobre as estratégias de produção e de publicização da história; os procedimentos da história diante de celebrações, comemorações e memoriais; os cruzamentos entre história pública e história oral para uma história participativa; o entrecruzamento da história com áreas de conhecimento aplicado, como o jornalismo, o cinema, as relações públicas, a gestão de organizações, o turismo; a relação entre história e literatura em múltiplos âmbitos de narrativa histórica: as biografias, os testemunhos, a ficção histórica.  Os caminhos da história pública na América Latina, para além de fronteiras físicas e disciplinares, estão sendo traçados. As experiências que transitam entre a documentação, a construção de conhecimentos e sua ampla disse­minação fortalecem, a cada passo, esse movimento. Peça a peça, a história pública se monta em um amplo quebra-cabeças – com interstícios e amplos mapas, na medida em que evidencia os ecos e as entranhas da produção e reprodução da vida cotidiana, social, cultural e política de cada um e de cada comunidade.

A documentação e a historiografia ampliam as inquietações e potencializam os propósitos e percursos da história pública – que tem se em­penhado em não fazer uma tábula rasa de muitos tópicos; ao refazê-los de forma compartilhada e ao difundi-los amplamente permitem retroali­mentações e possibilidades de transformações, que são, em última análise, objetivos principais do trabalho com a memória social na pesquisa histórica. A documentação se diversifica, as vozes se multiplicam, os meios de comunicação se pluralizam e, ao mesmo tempo, há cada vez mais potenciais emissores dessas pesquisas. Emissores que partem das memórias coletivas e individuais para a compreensão de processos que escapam, muitas vezes, dos discursos estagnados em inte­resses oficiais, imobilizando processos urgentes e emergentes da atualidade transnacional.

Os textos que integram este dossiê são um convite para compreender esse movimento da história pública. A partir dos desafios teóricos e metodológicos colocados, é possível associar as demandas por novas formas de abordar a história e os problemas sociais da atualidade; que levam a revisá-la e ressignificá-la, periodicamente, para compreender totalidades fragmentadas. Como repensar, por exemplo, os testemunhos orais diante das potencialidades das novas tecnologias e do ambiente virtual? A diluição das fronteiras físicas, potencializada pela própria pandemia mundial com que iniciamos a terceira década do século, convida a rever as formas de pesquisa, arquivamento e de tratamento documental. Tem­-se a possibilidade, cada vez maior, do questio­namento (dialogado e compartilhado) de forma intersetorial e transversal às diversas disciplinas que envolvem o trabalho com a memória social.

Da mesma forma, as expressões visuais e au­diovisuais sobre o acontecido se diversificaram há mais de um século e meio, através de instrumen­tos técnicos e tecnológicos que se multiplicaram – ao mesmo tempo em que potencializaram seu impacto público e político, do campo da pesquisa social às ferramentas de uma história cada vez mais pública. A ampla socialização dos movimentos históricos constitui a coluna vertebral das capacidades de transformação permanente, ainda que desafiando as tradições enraizadas na paralisia; o motor básico é a dimensão pública da história, e, nesse processo, as fontes orais e visuais têm um papel fundamental, trazendo para o primeiro plano vozes e olhares que revelam de forma mais transparente e contundente as lentes e os códigos de cada época.

Os artigos que compõem o dossiê contribuem com significativas análises sobre o ato de colocar em público e para diversos públicos as experiências dos atores sociais do passado e do presente por meio de uma pluralidade de enfoques, colocando em evidência reflexões sobre a “instrumentaliza­ção” pública da história e os marcos de confron­tação de distintas memórias. As várias narrativas sobre o passado e o presente, comtempladas nos artigos, demostram, por diferentes análises, que os usos públicos da história articulam-se em espaços de confronto e conflito nos quais são produzidos diferentes usos do passado por meio de veículos midiáticos e informacionais, da literatura, da arte, dos espaços urbanos, dos centros de memória e de associações participativas que provocam e constroem diferentes leituras do passado e, tam­bém, de um presente à luz das interpretações e lembranças de um pretérito.  O dossiê problematiza e compartilha questões que são convergentes na História Pública na Amé­rica Latina: as distintas operações da memória, as ações dos atores sociais em seus espaços de lutas e reivindicações, os contextos de produção da história, os usos do passado, os processos de legitimação do poder e suas contestações e as distintas leituras da história no presente e seus diversos públicos. Questões que passam, nota­damente, pela interface e aproximação entre a escrita da história no âmbito acadêmico com seu “regime de historicidade” e “operação historiográ­fica” e as iniciativas em favor do redimensiona­mento do saber histórico produzido não somente por historiadores. Um redimensionamento que conta com diálogos interdisciplinares e diferentes reflexões epistemológicas.

O dossiê sinaliza para a importância de desta­car como diferentes atores sociais recorrem ao passado para encontrar argumentos e evidências que autorizem ações no pressente, articulan­do-as ou vinculando-as a uma agenda pública contemporânea. Na América Latina, as agendas públicas transitam por histórias narradas que vão das rebeliões aos sistemas repressivos, da estabilidade democrática aos “ciclos” autoritários, da cidadania inclusiva às reformas excludentes.  Este dossiê reúne trabalhos de pesquisadores que analisam as dimensões públicas da His­tória na América Latina – as possibilidades de construção participativa, divulgação, difusão e circularidade do conhecimento histórico. Para tanto, são observados quatro eixos:  a) história pública, memória e narrativa;  b) história pública e ações participativas;  c) história pública e divulgação científica;  d) história pública, demandas sociais, ativismo e tempo presente.

O primeiro eixo – História pública, memória e narrativa – é iniciado com o artigo “Levantando a quarta parede: História oral e entrevistas públicas” de Ricardo Santhiago. O autor discute as práticas de história pública a partir da história oral voltada à realização de entrevistas em espaços compartilha­dos. Ao observar o universo da arte, são problema­tizados os potenciais e os limites metodológicos da chamada “entrevista pública”. Em seguida os autores Marcos Ferreira de Andrade, Silvia Maria Jardim Brügger e Cássia Rita Louro Palha – no texto “Culturas negras, memórias e consciência histórica: experiências de História Pública” – abor­dam as experiências do Laboratório de Imagem e Som (UFSJ) em dois projetos: o Memorial Clara Nunes e a Revolta dos escravos de Carrancas. As dimensões teórica e metodológica das narrativas de memórias e de culturas negras são matizadas a partir de suas conexões com a história pública. Na interface “memória e as novas mídias digitais” são discutidos os sentidos do compartilhamento dos saberes e o desenvolvimento da consciência histórica na história pública. Para finalizar o primeiro eixo, o artigo “The Iguaçu Regional Museum and its Audiences: Institutional and Autobiographical Narratives”, de Michel Kobelinski, analisa as narrati­vas (linguagens discursivas) que o Museu Regional do Iguaçu construiu para si e para seu público, associadas à preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural. São analisadas as narrativas autobiográficas do público do museu nas redes sociais e as formas de interação no campo da história pública planejamento das exposições e das pesquisas sobre a relação entre acervos de museus e públicos.

No segundo eixo – História pública e ações participativas – o texto “UERJ 70: comemorações e histórias de uma universidade pública”, dos autores Carlos Eduardo Pinto de Pinto, Márcia de Almeida Gonçalves e Rui Aniceto Nascimen­to Fernandes, analisa dois projetos propostos e realizados em 2019, por ocasião do início das comemorações dos setenta anos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ): a elaboração do livro 70 anos UERJ: 1950 – 2020 e a montagem de exposição temática ESQUELE7O – 70 anos de UERJ. As conexões dessas experiências com a História Pública foram situadas a partir: do caráter colaborativo da realização do livro e da mostra, que envolveram professores(as), discen­tes bolsistas, técnicos(as) administrativos(as) e, no caso da exposição, artistas, em uma autoria compartilhada. Em seguida, o artigo “Enfrentando a berlinda: usos públicos da História e patrimônio cultural no sertão cearense”, de Mário Martins Viana Júnior, discute a experiência interventiva em comunidades rurais cearenses, a partir do trabalho com a metodologia do Inventário Par­ticipativo e do debate em torno de categorias como memória, patrimônio e identidade – re­flexões sobre os usos presentes do passado na produção de narrativas pelos movimentos sociais. São discutidas as possibilidades de usos públicos da História e suas formas de apresentação que, no caso analisado, auxiliaram nos processos de luta e de resistência das populações do campo: por meio da construção de museu comunitário, da criação de trilhas históricas e arqueológicas e das oficinas de pintura e audiovisual.

Já o terceiro eixo – História pública e divul­gação científica – é iniciado com o texto “Todos podem ser divulgadores? Wikipédia e curadoria digital em Teoria da História”, escrito por Flávia Florentino Varella e Rodrigo Bragio Bonaldo, que discute as práticas de divulgação científica e a curadoria digital no projeto Teoria da História na Wikipédia (que qualifica verbetes para as entradas da enciclopédia on-line no campo da Teoria da História). São sistematizadas a prática de edição de verbetes realizada pelo grupo, bem como as suas mudanças tendo em vista as dificuldades de seus participantes. Os verbetes da categoria Teoria da História, através da noção de curadoria digital, possibilitam pensar a Wikipédia como fonte de difusão do conhecimento. Na sequência o artigo “Projetos editoriais e mediações do passado: a experiência brasileira numa cartografia de revistas de divulgação histórica”, de Fernando Perli, analisa as revistas de divulgação histórica como instru­mentos de difusão de representações do passado para um público mais amplo que o acadêmico. O artigo faz um mapeamento de revistas conside­rando implicações da história de difusão massiva no campo historiográfico e a experiência brasileira de impressos que potencializaram o debate sobre mediações do passado entre historiadores aca­dêmicos e o público não especializado.

Para finalizar a discussão sobre divulgação científica, o texto “História Pública, História em Quarentena e Ditadura”, de Antonio Mauricio Freitas Brito, Iracélli da Cruz Alves e Rafael Rosa da Rocha, explora o acervo do Projeto História em Quarentena” – iniciativa de história pública divulgada através da internet. Praticada durante a pandemia da COVID-19, como parte do repertório da história pública, a experiência disponibilizou um amplo material no Facebook e YouTube. O conteúdo produzido evidenciou o potencial do projeto para o ensino e a pesquisa histórica a res­peito de questões socialmente vivas, em especial a série de vídeos “Mitos da Ditadura” no Brasil. O Projeto História em Quarentena” foi pensado no artigo como um laboratório para reflexão sobre possibilidades e dilemas da divulgação científica e sua conexão com a história pública.

O último eixo – História pública, demandas sociais, ativismo e tempo presente – traz a con­tinuidade das discussões do artigo anterior sobre o projeto “História em Quarentena: propostas para uma história pública em tempos de pan­demia”, dos autores Paulo César Gomes e Carlos Benítez Trinidad. O texto discute o processo de elaboração desta ação de história pública a partir das incertezas geradas pela crise sanitária de­correntes da pandemia da COVID-19, propondo refletir sobre temas ligados à divulgação do co­nhecimento histórico. É observada a importância da história pública como ferramenta para ampliar a inserção do conhecimento histórico na esfera pública em momentos de crise e, também, os desafios do tempo presente diante das dificul­dades criadas pela pandemia. Na sequência, o artigo “Entre a revolução, a instabilidade política e ruptura democrática: um olhar sobre a História do Tempo Presente boliviana entre 2006 e 2019”, redigido por Rafael Pinheiro de Araújo, proble­matiza a história recente boliviana – entre 2006 e 2019. Discute uma questão socialmente viva: os quase 14 anos de gestão de Evo Morales e as motivações para o golpe de Estado que finalizou, segundo o autor, com a “revolução democrática e cultural boliviana”. O texto discute a instabilidade política após a eleição presidencial e os debates públicos nos meios universitário e na imprensa – ao observar as análises realizadas por pesqui­sadores dedicados à história latino-americana.  Os dois últimos textos perpassam os con­textos chileno e argentino. Em “Nicanor Parra: poesia de praça pública & protesto social”, Se­bastião Vargas explora os caminhos e os papéis assumidos pela antipoesia nas arenas culturais chilenas e latino-americanas. O autor, utilizando vários suportes documentais (produção literária, discursos, entrevistas e testemunhos), busca relacionar a obra de Nicanor Parra com certos meios catalisadores de demandas políticas e sociais do tempo presente. Na interface “poesia e protesto social” é observada uma tentativa de vitalizar e subverter os meios e modos do debate público sobre a política, a história, a arte e a vida através da expressão poética, mesmo que essatenha de se tornar antipoética. Finalmente, o texto “Contextos ideacionales y redes de activistas en procesos de difusión institucional: El caso de la Reforma Universitaria de 1918”, de Adolfo Garcé e Alejandro Milanesi, estimula o debate público atual sobre ativismo, movimento estu­dantil e políticas públicas educacionais. Analisa o processo de transformação das universidades latino-americanas – o movimento de reforma que transformou a Universidade de Córdoba, na Argentina, durante 1918. Os princípios dessa reforma inspiraram mudanças institucionais e continuam a ser, no tempo presente, uma história que evoca discussões sobre educação superior. Ao estudar a disseminação da Reforma de Córdo­ba, é possível compreender a circulação de ideias para os debates educacionais contemporâneos.

Para o encerramento desse número é apre­sentada uma instigante entrevista/conversação com Richard Cándida Smith – professor emérito do Departamento de História da University of California (UC Berkeley). Foram discutidas, a partir da trajetória intelectual do professor Richard, as “Dimensões públicas da história e as relações culturais em perspectiva transnacional”.

Agradecemos as colaborações dos autores com o dossiê e esperamos que a leitura dos artigos possibilite novas reflexões e significados sobre a História Pública na América Latina.


Organizadores

Adriane Vidal Costa – Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Minas Gerais, MG, Brasil; professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, MG, Brasil.

Juniele Rabêlo de Almeida – Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil; professora da Univer­sidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, RJ, Brasil.

Lourdes Roca – Doutora em Antropologia pela Escuela Nacional de Antropología e Historia (ENA), em Cidade do México, DF, México; professora do Instituto de Investigaciones Dr. José María Luis Mora (Instituto Mora), em Cidade do México, DF, México.


Referências desta apresentação

COSTA, Adriane Vidal; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROCA, Lourdes. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v.47, n.2, p.1-5, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [IF]

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Itamar Freitas

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