História Pública: escritas contemporâneas de História / Revista Transversos / 2016
Com muito prazer, entregamos aos nossos leitores mais uma edição da revista de história TransVersos. Desta feita, além dos costumeiros artigos livres, apresentando um variado escopo de trabalhos pertinentes às linhas de pesquisa do LEDDES, propusemos um dossiê que repercutisse a prática e o valor social do ofício d@ historiad@r a partir do debate da complexa noção de história pública, cada vez mais presente entre historiadores e diferenciados movimentos e setores sociais no Brasil.
Nada mais atual, e ao mesmo tempo tradicional, do que a reflexão acerca do significado social da história. Por isso mesmo, as atuais discussões sobre a concepção de história pública no país têm necessariamente soprado ventos revigorantes mesmo entre aqueles que discordam da aplicação da expressão ao campo da história. Desde o evento precursor “Curso de Introdução à História Pública”, desenvolvido em 2011, na Universidade de São Paulo, o conceito e suas diversas aplicações reverberam pelo país, tanto no cenário acadêmico, convocando profissionais da área ao debate, quanto em outros campos e práticas que têm entre seus fazeres a produção de significado para o passado entre audiências não acadêmicas.
Os trabalhos selecionados para o dossiê “História Pública: escritas contemporâneas de História” evidenciam a importância de se pensar a história como uma elaboração que se faz viva em espaços / configurações múltiplos, nem sempre aceitos ou discutidos no ambiente acadêmico. O diálogo da historiografia com searas tão diferenciadas, produtoras e / ou que fazem circular o conhecimento histórico, deu origem a textos que, como veremos, explicitam o caráter polissêmico dessa noção, como afirma Ricardo Santhiago: uns demonstram uma atuação efetiva em história pública, outros refletem um pensar a história pública como problema, enquanto alguns propõem a organização de um campo da história pública, com seus métodos e objetos específicos (SANTHIAGO, 2016, 25).
Para o presente dossiê não importa definir a história pública como práticas que se instituem a partir do compartilhamento da autoridade do fazer história ou como um campo disciplinar. O importante, considerando os princípios que norteiam o LEDDES e a Revista TransVersos, é que os frutos desse debate forneçam, às comunidades e aos sujeitos interessados na consolidação de laços identitários, ferramentas que problematizem a subalternidade ou o empoderamento de determinados grupos / interesses, subsídios básicos para ações políticas, sociais, culturais e, porque não, acadêmicas, que auxiliem a tessitura do exercício da cidadania.
Com essa preocupação, o artigo de Daniel Pinha, Ampliação e veto ao debate público na escola: história pública, ensino de história e o projeto “escola sem partido”, discute a centralidade do espaço escolar, em especial o ensino de história, no fortalecimento do debate público no tocante a demandas sociais por pluralidade e democracia social, em contraponto à proposta apresentada pelo projeto “escola sem partido”. Em seu texto, Pinha desnuda a alegada neutralidade proposta por tal projeto, indicando a necessidade de o espaço escolar servir à sociedade na qual está inserido por meio do debate e do respeito às diferenças.
Em História Pública e Redes Sociais na Internet: elementos iniciais para um debate contemporâneo, o fenômeno social da web é discutido por Bruno Leal. O historiador, criador da rede social Café História, com uma audiência de milhares de pessoas no Brasil e no mundo, reflete sobre sua experiência como historiador público e discute a importância da Internet para os historiadores não apenas por sua capacidade de ampliar potencialmente a divulgação de trabalhos científicos e de ser, como fenômeno histórico da contemporaneidade, um novo objeto de pesquisa desse campo, mas, principalmente, pela aptidão das redes sociais em servir à produção colaborativa do conhecimento, fruto do diálogo e da interlocução que esse meio inclusivo proporciona.
Fenômeno da comunicação atual e digital, os memes com conteúdos históricos têm chamado à atenção e se viralizado na internet. Esta foi a observação que levou as professoras Marcella Albaine e Caroline Mendes realizarem o projeto pedagógico que deu origem ao artigo O sequestro do imaginário e a escrita da história: o caso dos memes históricos e as recepções do nazismo. Em um colégio de ensino médio do Rio de Janeiro propuseram aos estudantes a criação de memes históricos e se surpreenderam com a força persistente do nazismo como tema e problema entre eles. Posteriormente analisada pelos alunos da disciplina Didática Especial de História II ministrada na Faculdade de Educação da UFRJ, a experiência foi discutida à luz das preocupações do Ensino de História, da História Pública e da História Contemporânea. Da análise das tensões entre as narrativas históricas oficiais e a memória subterrânea dos estudantes nasce uma instigante convocação para que professores se coloquem em relação dialógica horizontal com seus alunos possibilitando aprofundar a análise das experiências históricas passadas e, sobretudo, essas mesmas do passado que constantemente se atualizam no tempo presente.
A confluência entre a narrativa histórica e a ficcional serve de fio condutor para o artigo de Alexandre Barbosa, Eu me lembro dessa história porque eu estava lá: o ensino de história pela narração e poiesis. O autor nos pergunta se é possível “ler a história como literatura, ver na literatura a história se escrevendo”? Encarandoas como duas categorias de expressão humana do mundo através do modelo de enunciação narrativo, Alexandre mergulha tal discussão, tão cara à historiografia, à sua prática como professor de história escolar. Respeitando a especificidade da escrita da história escolar e reconhecendo o potencial da narrativa ficcional como auxiliar em sua produção, o autor compartilha conosco sua crença nas possibilidades que se abrem para o ensino de história quando a prática de ensino se concentra sobre o exercício espontâneo de configuração do enredo pelo educando, permitindo-lhe expressar livremente sua refiguração da realidade histórica estudada.
A ideia de uma história feita com a audiência, tão cara aos historiadores públicos, prevalece no último artigo participante do dossiê. Em O conflito socioambiental no horto florestal: um olhar pela educação ambiental crítica no programa elos de cidadania, Jonas Emanuel nos reporta a proposta e os resultados de um projeto de educação ambiental, no qual a história escolar serviu como polo catalisador de um debate realizado com / por uma comunidade escolar. Localizado no bairro do Jardim Botânico, área nobre da zona sul do Rio de Janeiro, o Colégio Estadual Ignácio Azevedo do Amaral tem entre seus alunos e respectivos responsáveis muitos moradores da região conhecida como Horto Florestal. Esta é uma área marcada por conflitos que relacionam a questão ambiental e o problema de posse da terra em ambiente urbano. Segundo o autor, o programa Elos de cidadania, apoiado nos pressupostos da educação popular e na metodologia de Paulo Freire, estimulou o protagonismo e a participação de diferentes atores sociais na construção de soluções coletivas para as questões socioambientais cotidianas.
Além de artigos, a temática da história pública também mobiliza outras sessões da presente edição. Ricardo Santhiago, um dos fundadores da Rede Brasileira de História Pública, entrevista o historiador americano David Dunaway, pioneiro no campo da história oral, com uma atuação forte em história pública. Na entrevista, Dunaway fala sobre a própria carreira, revisitando sua formação interdisciplinar, descreve seus principais trabalhos, dentre os quais a biografia de Pete Seeger, pela qual ele é bem conhecido no mundo acadêmico. Discute um pouco acerca das transformações pelas quais o campo da história passou nas últimas décadas tanto em termos técnicos quanto teóricos, abarcando questões ligadas à apresentação pública do conhecimento histórico, a problemática da edição e condensação de uma grande quantidade de materiais em um formato acessível para o público. Discorre sobre aspectos ligados à formação do profissional e às habilidades necessárias ao ofício do historiador, problematizando a questão tão atual de fórmulas imprescindíveis para um texto alcançar uma maior audiência. Por fim, apresenta o projeto de história digital que está desenvolvendo.
Esta edição inaugura a sessão Experimentadores que pretende dar espaço a narrativas produtoras de sentido, não necessariamente acadêmicas, mas, que possam auxiliar a reflexão de questões históricas tanto do passado, como contemporâneas. Dois trabalhos apresentaram esse perfil e fazem parte do dossiê. No primeiro, Breno Tommasi e Laura Mineiro, em Mito e memória entre comunidades tradicionais, se dedicam como exploradores / experimentadores à análise da centralidade das entrevistas de história oral como espaços dialógicos de compartilhamento sobre o significado da história no presente (FRISCH, 2016, 60). Na perspectiva de tornar públicas as memórias dos vencidos, os autores mergulham nas narrativas históricas construídas em torno de identidades por representantes de comunidades Quilombolas e Caiçaras da região de Paraty e Angra dos Reis, municípios do estado do Rio de Janeiro. Da exploração das entrevistas destaca-se o papel desempenhado pelos griôs dessas comunidades na formulação, rememoração e instituição de narrativas históricas, assegurando sentidos entre o passado, o presente e o futuro. Emociona no texto a delicada costura entre a experiência e a expertise dos construtores de memória que parecem negociar parágrafo a parágrafo a autoridade de saberes, um diálogo entre os griôs e os jovens estudantes de história.
Márcia Paula Migliacci nos escreve de um outro ponto aquilo que Frisch tem chamado de “cozinha digital”. Em seu texto analisa o papel da história na estratégia de marketing criada pelos órgãos públicos de turismo do Rio de Janeiro, nos anos 1990, como tentativa de contrapor-se simbolicamente à crescente imagem negativa da cidade a partir do ascenso da violência urbana. Os folhetos, guias, panfletos de divulgação da cidade são suas fontes centrais e, dentro deles, observa-se a presença de outras fontes históricas clássicas. Relatos de viajantes da colônia, cronistas, documentos oficiais são acessados e dão o “gosto e o cheiro” do passado em narrativas produzidas por agentes de turismo que ressignificam a história da cidade e produzem uma narrativa própria, de encantamento e convite à experiência histórica. Em particular, a autora explora o caso do Porto Maravilha e desvenda os caminhos da construção de um passado histórico interessante aos objetivos do presente.
Não poderia haver um melhor fecho para o dossiê História Pública: escritas contemporâneas de História do que a apresentação da resenha da obra, recém publicada, História pública no Brasil: Sentidos e itinerários, desenvolvida por Luiz Otávio Corrêa. Esta publicação, organizada brilhantemente por Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago, reúne textos de alguns dos principais pensadores sobre o assunto no Brasil e no exterior. O livro passa a ser uma referência imprescindível por ser plural e apresentar várias perspectivas sobre o tema, demonstrando o amadurecimento teórico e metodológico da história pública.
Como sempre, a Revista TransVersos se abre a artigos livres que dialoguem com as linhas de pesquisa do LEDDES, privilegiando pesquisas e práticas que reflitam acerca de traços historicamente produzidos que constituem diferenciações e desigualdades. O número atual traz três textos que, seguindo caminhos teórico-metodológicos diversos, comprometem-se com estas premissas.
No artigo Em meio à chegança, cadê o rio? A etnicidade à margem do lugar, as mestrandas Emily Alves Cruz Moy e Flavia Querino da Silva, do Programa de Pós Graduação em Relações Étnicas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, e Angélica Leal Barbosa, doutora em Ciências Biológicas da UFPR, orientadora de ambas, traçam etnograficamente o percurso sócio histórico de relações estabelecidas entre sujeitos de um povoado do interior da Bahia, demonstrando como memória e categorias étnicas são acionadas como marcadores de fronteiras dessas relações.
Em Guerra colonial e independência de Angola: O fim da guerra não é o fim da guerra, Zoraide Portela Silva, discorre sobre o processo de independência de Angola, privilegiando os eventos que levaram ao colapso do colonialismo português, para tecer uma reflexão bastante atual e apurada do significado desses eventos diante de uma agenda marcada pelas disputas internas da ex-colônia portuguesa e a guerra civil que se seguiu.
Por fim, o delicioso texto de Lucia Garcia, A coleção de cardápios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: impressos efêmeros como fontes para os estudos sobre história, política e sociabilidade, ilumina fontes pouco visitadas pelo historiador, mas, que demonstram a força da cultura material como produtora de significado para a pesquisa histórica. A historiadora resgata os chamados impressos efêmeros, no caso coleções de cardápios de almoços e jantares pertencentes ao IHGB, e com eles desvela aspectos inusitados da história política brasileira na passagem do século XIX para o XX.
Agora, deixaremos falar aqueles que conosco compartilharam o desejo de ver a ideia de esse dossiê frutificar. Agradecemos as colaborações e esperamos que também vocês, nossos leitores, possam ser parceiros na inebriante e esclarecedora viagem da história que é elaborada a tantas mãos. Boa leitura!
Referências
FRISCH, Michael. A história pública não é uma via de mão única, ou, De A Shared Authority à cozinha digital, e vice-versa. In MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, p. 57-70.
SANTHIAGO, Ricardo. Duas palavras, muitos significados: alguns comentários sobre a história pública no Brasil. In op.cit, p. 23-35.
Claudia Affonso
Sonia Wanderley
Rio de Janeiro, 20 de setembro de 2016.
AFFONSO, Claudia; WANDERLEY, Sonia. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 7, n.7, set., 2016. Acessar publicação original [DR]