História Pública e divulgação da história / Bruno L. P. de Carvalho e Ana Paula T. Teixeira

Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira / Fotos: Comunicação Ages e Café História /

Este livro tem como proposta apresentar as experiências e as reflexões sobre as formas de divulgar o conhecimento histórico acumulado, demonstrando a ampliação dos suportes de circulação da produção historiográfica.

A obra é uma coletânea composta de seis capítulos e três entrevistas produzidas por historiadores, jornalistas e por gente que transita nesses dois campos. São profissionais com perspectivas históricas variadas, com diferentes experiências e inserções distintas como produtores/mediadores de representações da História. O conjunto dos textos deste livro compreende diferentes linguagens e suportes da História Pública, com discussões sobre como ampliar o acesso do conhecimento histórico pesquisado em revistas acadêmicas, livros, vídeos do Youtube, sites, museus e espaços públicos da cidade.

Os coordenadores Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira são investigadores da História Pública no Brasil e contribuíram neste volume para o desenvolvimento da temática ao colocar juntos colegas que trabalham a dimensão pública do conhecimento histórico.

Os avanços tecnológicos e a ampliação do acesso à internet nos anos 2000 produziram formas diferentes de consumir história no país[1], como também a compreensão acerca do passado. A busca por audiências mais ampliadas para as narrativas históricas vem sendo promovida pelo campo da História Pública. A prática da História Pública compreende que o conhecimento histórico deve ultrapassar os espaços formais de ensino e aprendizagem, como convencionalmente vem ocorrendo em escolas e universidades, e ocupar outros espaços como museus, séries de TV, cinemas e mídias sociais.

O fim da ditadura militar e o processo de redemocratização promoveu um contexto de demanda social por memória, realidade motivada também pelo desenvolvimento e diálogo com o campo da História do Tempo Presente, da História Oral e da História Digital.

A História Pública adentra na agenda de pesquisa no Brasil em 2011 [2] quando, pela primeira vez foi ofertado o curso de Introdução à História Pública na Universidade de São Paulo. Simultaneamente a esse processo temos o crescimento dos programas de pós- -graduação formando profissionais da História que vão atuar para além do magistério, em diferentes instituições como arquivos e espaços de memória. Esses profissionais elaboram exposições, organizam acervos, produzem publicações comemorativas, gerenciam blogs e redes sociais, assessoram escolas de samba, produções fílmicas, livrarias e editoras, ou seja, surge junto à institucionalização do campo a figura do historiador público (SCHMIDT, 2018, p. 18). Nesse período, a História Pública brasileira, segundo Santhiago, se torna uma prática expressiva em um momento de conquistas quando determinadas demandas encontraram ressonâncias em políticas públicas federais (SANTHIAGO, 2018, p. 325).

A difusão do conhecimento histórico tem despertado discussões sobre o papel do historiador, o qual vem sendo marcado por embates, tensões e algumas consonâncias. A respeito da divulgação da história para o grande público no Brasil, José Murilo de Carvalho, em 2003, avaliou que os especialistas temiam adotar um estilo mais acessível para não serem acusados de perder o rigor científico. Segundo Carvalho, “chegou-se ao ponto de identificar simplicidade com superficialidade” (CARVALHO; TEIXEIRA, 2019, p. 13). Entretanto, nem sempre os historiadores profissionais estiveram afastados da divulgação da história, mas suas ações eram mais pontuais e seus produtos relacionados ao público intelectualizado. Por bastante tempo a tarefa ficou a cargo de outros profissionais, com destaque para a atuação dos jornalistas. Hoje a realidade é outra: há a compreensão de que a divulgação da história deve, também, ser feita por historiadores profissionais. As competências dos profissionais da história contribuem para melhorar a qualidade do debate no meio social, pois nosso discurso é baseado em documentos, análise de dados, na consulta de estudos fei tos anteriormente, além de ser avalizado por outros investigadores.

Observa-se que há um esforço, por parte dos autores dos capítulos do livro, de produzir um volume imbuído da função pedagógica. Garantindo o entendimento das práticas da História Pública por conta da mostra de experiências.

Começo a apresentar o livro pelo capítulo que trata do suporte mais corriqueiro para propagar o conhecimento histórico acumulado – os livros. O texto da historiadora e jornalista Luciana Pinsky, traz uma discussão sobre o papel do editor de livros de história, voltados para o público em geral e para o acadêmico, frente às novas tecnologias. Segundo a autora, o potencial dos livros de história aumenta com as possibilidades conferidas pelo livro digital. Esse suporte faculta ao leitor uma maior aproximação com as experiências passadas com o auxílio de documentos históricos que podem aparecer em hiperlinks incorporados à obra. Ainda que o número de livros concebidos para o formato digital seja reduzido, tanto para a realidade dos Estados Unidos como a do Brasil [3], é um excelente exemplo da circulação inovadora que deve ganhar espaço e ser aprimorada nos próximos anos.

O texto da sequência foi produzido pela jornalista e historiadora Juliana Sayuri que apresenta um relato de experiência acerca das reflexões do fazer jornalístico associado a assuntos históricos. As reportagens utilizadas no capítulo mostram historiadores atuando fora dos arquivos e dos seus gabinetes, com posicionamentos contundentes na arena pública no tempo presente. A autora pontua que apesar do jornalismo e das narrativas históricas acadêmicas objetivarem informar sua audiência; os dois campos lidam com prazos distintos para coletar dados, produzir seus textos e fazer circular as suas reflexões para uma audiência mais ampliada. Resultando, muitas vezes, em críticas categóricas por parte dos historiadores profissionais às reportagens que tratam de temas de história.

No terceiro capítulo, de autoria da historiadora Roberta Cardoso Cerqueira, são apresentadas as estratégias exitosas de popularização dos artigos/conteúdos acadêmicos da Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos para o grande público. O sucesso da divulgação da revista se deve, também, ao fato de o periódico ter uma equipe de profissionais especializados voltados para impulsionar as suas publicações nas redes sociais. Esse suporte não é comum na maioria das revistas acadêmicas. O mais corriqueiro são os professores divididos entre as aulas na graduação e na pós-graduação, na orientação de estudantes, na produção de pareceres, na gestão das revistas e de todas as demandas advindas dessa última atividade. Entre as estratégias para a popularização dos conteúdos dos artigos da revista optou-se pela criação de blog, de perfis no Facebook e no Twitter, com textos em língua nacional e estrangeira. Nessas redes sociais são visibilizadas entrevistas, verbetes da Wikipédia, blogs e podcasts que tomaram como matéria-prima os artigos da referida revista. Todas as ações de divulgação, segundo a autora, ampliaram os acessos aos textos e imprimiram uma dinâmica de circulação maior e mais diversa e que não se traduz somente em citações semelhantes à do modelo acadêmico.

O quarto capítulo, do historiador Icles Rodrigues, trata de sua atividade de historiador divulgador, inicialmente em um blog e depois em um canal no Youtube, intitulada Leitura ObrigaHISTÓRIA. No texto o autor fala de todos os processos experimentados e as estratégias adotadas para divulgação científica do conhecimento histórico. Além das resenhas foram criados quadros de entrevistas, sobre fontes e conceitos históricos. A maior parte do público do canal faz parte da academia, mas há também uma audiência significativa de gente interessada em história. O autor entende ser importante o engajamento dos colegas de ofício para fazer uso de material audiovisual, produzi-los e disponibilizá-los na internet.

No quinto capítulo, o historiador Paulo César Gomes apresenta o projeto de difusão de obras acadêmicas sobre a ditadura para o público não especializado. A empreitada é coletiva, pois o autor tem a colaboração de outros estudiosos para desenvolver o site “História da Ditadura”. A sistemática adotada para levar o projeto adiante foi a de convidar especialistas para escrever artigos de divulgação de suas pesquisas. Uma constatação inicial foi a de que historiadores, em sua maioria, não estão habilitados para se comunicarem com o grande público. O diminuto número de contribuições não permitiu que o propósito de publicar um conteúdo inédito por semana vingasse. Segundo Paulo César Gomes, isso se deve ao fato desse tipo de produção não contabilizar pontos no currículo Lattes. Além de “dicas” de obras, sites, fotografias, filmes e material didático para escolas, os idealizadores do site passaram a realizar entrevistas com especialistas e com pessoas que viveram a época. Para o autor esse tipo de iniciativa tem por objetivo combater ações políticas mal-intencionadas, que usam memórias distorcidas e por vezes falseadas para construir uma narrativa comprometida com projetos políticos não democráticos.

O último capítulo do livro enfoca as mudanças de plataforma e de projeto editorial do site Café História. O referido site e o texto são de autoria de um dos organizadores da coletânea, o historiador Bruno Leal Pastor de Carvalho. O Café História é o maior portal de divulgação científica em língua portuguesa especializado em história na internet. O portal chegou à marca do alcance de meio milhão de pessoas em suas publicações. O autor do capítulo verificou que textos voltados para audiências ampliadas foram acessados e citados por historiadores profissionais. Ou seja, não existe apenas o movimento de incorporação das narrativas históricas acadêmicas por intelectuais predispostos a divulgar o conhecimento científico para o grande público. Já é possível observar que as práticas da História Pública têm ganhado reforço de gente oriunda da academia. De acordo com Bruno Carvalho, para resguardar a autoridade e a legitimidade do ofício, como também promover uma historiografia cidadã e emancipadora, os historiadores de vem tornar a prática da divulgação algo inerente ao nosso métier profissional.

Nas entrevistas feitas com Keila Grinberg, Luiz Paulo Ferraz, Rodrigo Bione e Paulo Knauss é possível saber um pouco mais sobre como melhorar a comunicação com o grande público e quais as possibilidades de fazê-lo. Cabe destacar que as entrevistas são realizadas com historiadores de diferentes gerações, campos de pesquisa e, o mais importante, praticantes de formas distintas de divulgação científica do conhecimento histórico. As atividades de História Pública destacadas ocorrem em colunas de revista, museus, placas de turismo, aplicativos de celular ou ao ar livre em espaços públicos da cidade do Recife. As experiências relatadas são tão entusiasmantes que anotei alguns insights no meu caderninho, para tentar pôr em prática algumas ações de História Pública relacionadas às minhas atividades de pesquisa acadêmica. Um entendimento compartilhado por todos os entrevistados é de que a divulgação científica implica comungar rigor acadêmico e comunicação envolvente. Além disso, é preciso escutar atentamente o público interessado, pois é para ele que as narrativas históricas são produzidas.

Entre os “produtos históricos” mais consumidos temos os podcasts, documentários, jogos, blogs, filmes, programas de televisão, novelas, verbetes da Wikipédia, vídeos no Youtube, aplicativos, palestras, livros paradidáticos, biografias, comemorações e mais uma infinidade de objetos que permitem acessar o passado pesquisado de formas diversas e por uma audiência mais ampliada.

O grande desafio para os historiadores é o domínio das novas linguagens. Na grande maioria, os currículos dos cursos de graduação em História não contemplam disciplinas voltadas para o uso e produção de recursos no meio digital. São necessários saberes ligados à escrita criativa, roteirização, edição de vídeos, programação, design gráfico, captação de recursos por meio de editais culturais e leis de incentivo, direitos autorais e ainda habilidade para manipular equipamentos tecnológicos.

Os textos têm densidades analíticas distintas e em todos eles senti falta de uma reflexão mais sistemática acerca das implicações e desdobramentos epistemológicos, éticos e profissionais da divulgação do conhecimento histórico para audiências ampliadas. Na maioria das vezes, o público acessa as narrativas históricas em suportes digitais e audiovisuais sem outros elementos para relativizá-las. Isso tem impacto na difusão de determinadas interpretações e estabelecimento de sentidos sobre os passados presentes.

Os projetos compartilhados ao longo do livro servem de inspiração e estímulo para estudantes e profissionais de diversas áreas, como historiadores, jornalistas, cientistas sociais, produtores culturais e professores da educação básica dispostos a desenvolver atividades de divulgação do conhecimento histórico. Em outras palavras, o livro é uma leitura importante para os estudantes e profissionais interessados em realizar uma apresentação do passado em diferentes linguagens e suportes mais adequados à circulação do conhecimento do século XXI.

Nossa contemporaneidade está marcada, não somente no Brasil, por uma postura anticientífica e anti-intelectual e, por conseguinte, de perseguição ao conhecimento histórico produzido mediante as regras acadêmicas. Os revisionismos ideológicos [4], os negacionismos [5] e as fake news, que amparam projetos políticos que não respeitam a diversidade e tampouco orientações de mundo mais inclusivos, têm obrigado os historiadores a assumirem as linhas de frente na batalha contra os retrocessos na experiência cidadã. Algumas narrativas têm buscado deslegitimar a autoridade e o trabalho do historiador, o que tem provocado a História Pública e os historiadores a se compromissarem em oferecer respostas às questões de maior interesse social no presente. Tais respostas devem estar ligadas, notadamente, a um saber-fazer assentado na crítica documental, na utilização de métodos e em aportes teórico-conceituais. Para além de ampliar a audiência, a História Pública brasileira objetiva promover formas mais efetivas de diálogo social, democrático e eticamente responsável, que acionem a consciência histórica como fundamentação para a ação política no mundo.

Notas

1. No Brasil, a estabilidade política e econômica experimentada nos últimos 20 anos propiciou aos pobres o acesso aos computadores de mesa, tablets e smartphones. Essa realidade permitiu um aumento da população do país conectada ao celular.

2. O curso de Introdução à História Pública em 2011 é identificado como marco inicial do debate sobre o tema no Brasil. Esse curso possibilitou a organização do I Simpósio Internacional de História Pública, ocorrido no ano seguinte na Universidade de São Paulo.

3. Vale destacar que para o caso brasileiro temos a coleção Históri@ Illustrada da Editora da Unicamp idealizada pelos historiadores membros do Cecult. Ver títulos no site do Centro de Pesquisa em História Social da Cultura – Cecult/Unicamp disponíveis em: https://www.cecult.ifch.unicamp.br/publicacoes/ colecao-histori-illustrada.

4. O revisionismo é uma prática dentro de uma disciplina. As análises devem ser revistas a partir de novas fontes ou de contribuições teóricas e metodológicas. Contudo, há uma diferença entre o revisionismo crítico e o apologético. Este último revisionismo tenta reabilitar determinados sujeitos, instituições e legitimar práticas. O revisionismo apologético não nega os acontecimentos, mas produz narrativas que têm a intenção de reatualizar as interpretações sobre determinados eventos/períodos.

5. Um dos casos mais conhecidos é o do negacionismo do Holocausto judeu, em que autores buscaram legitimação historiográfica para produzir discursos distorcidos sobre o passado com fins políticos. Mas, diferentemente das produções acadêmicas pautadas pelos princípios científicos, esse tipo de narrativa recusa evidências e indícios que a contradizem.

Referências

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de; TEIXEIRA, Ana Paula Tavares. História Pública e divulgação da história. São Paulo: Letra e Voz, 2019.

SANTHIAGO, Ricardo. Pode-se falar de uma História Pública brasileira? In: MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade (orgs.).

Que História Pública queremos? São Paulo: Letra & Voz, 2018.

SCHMIDT, Benito Bisso. Qual a relação entre História Pública e a profissionalização do historiador? In: MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade (orgs.). Que História Pública queremos? São Paulo: Letra & Voz, 2018.

Maria Emilia Vasconcelos dos Santos – Professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco / Departamento de História, Recife/PE – Brasil. E-mail: mariaemiliavas@hotmail.com.


CARVALHO, Bruno Leal Pastor de; TEIXEIRA, Ana Paula Tavares. História Pública e divulgação da história. São Paulo: Letra e Voz, 2019, 157p. Resenha de: SANTOS, Maria Emília Vasconcelos dos. Historiadores divulgadores: divulgação científica do conhecimento histórico de forma envolvente, inclusiva e didática. Topoi. Rio de Janeiro, v.22, n.46, p.275-280, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

Itamar Freitas

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