História & poesia épica | ArtCultura | 2019

Além de nos oferecer a primeira exposição doutrinária a respeito do gênero épico, Aristóteles, em sua Poética, registrou as diferenças entre poesia e história: a primeira, no seu entendimento, volta-se para ações possíveis, plausíveis e/ou prováveis; a segunda, por sua vez, é concebida como narrativa sobre a alétheia dos acontecimentos, detendo-se no particular. Em suma, a história teria por objeto verdades desprovidas de ornamentos ou floreios linguísticos e a poesia, por ser mais filosófica e, consequentemente, universal, não precisaria se ater à sucessão cronológica dos fatos: quando trata de matérias históricas, ela o faz em detrimento da verossimilhança.1 As distinções sugeridas, no entanto, não devem ofuscar os nexos existentes entre o canto poético do aedo inspirado e as narrativas históricas registradas como fruto de testemunhos (in)diretos. Os trabalhos reunidos neste dossiê levaram em consideração os preceitos aristotélicos e analisaram diferentes epopeias com base em seus códigos linguísticos, concebendo-as como fontes promissoras, e não mais como obras de “ficção” românticas potencialmente ricas em epígrafes, como se integrassem as margens da história.

A leitura de uma epopeia requer paciência, persistência e prudência – virtudes que se manifestam muito timidamente no século XXI: paciência porque a empreitada é vagarosa; persistência para não desistir frente às inúmeras dificuldades que os poemas vão proporcionar; e prudência para encará-los a partir de seus preceitos, e não dos nossos. Uma leitura destituída desses elementos pode até trazer algum deleite decorrente de passagens eloquentes e fórmulas mitológicas, mas, do ponto de vista histórico, trata-se de uma abordagem anacrônica, pois desconsidera o contexto de sua produção/circulação, como se toda prática letrada fosse “literatura” e, portanto, uma invenção do romantismo. Nosso propósito foi conceder ao leitor a oportunidade de singrar pelos mares tempestuosos das empresas heroicas munido de uma bússola teórica capaz de orientá-los durante a travessia.

Quando, nos séculos XIX e XX, arqueólogos investiram recursos e esforços para escavar cidades soterradas do Oriente Médio, acabaram assumindo o protagonismo em descobertas cuja importância não é mensurável. Jacyntho Brandão, no primeiro artigo do dossiê, apresenta-nos um poema babilônico intitulado “Ele que o abismo viu”, também conhecido como “Epopeia de Gilgámesh”, por meio do qual acompanhamos a saga do quinto soberano de Úruk que reinou após o dilúvio. As tabuinhas encontradas permitem supor que o primeiro fragmento dessa jornada remonte a 2.100 a. C., muitos séculos antes da redação dos poemas homéricos, objeto de estudo do texto seguinte, de Ana Tereza Gonçalves e Marcelo Sousa. Valorizando as contribuições provenientes dos achados arqueológicos, da linguística e da filologia, os autores retomam algumas maneiras verossímeis de se estudar a Ilíada e a Odisseia, destacando a importância da decifração do Linear B nessa empreitada.

O artigo de Thiago Mota debruça-se sobre o livro VIII da Eneida, analisando a consagração da urbs por intermédio da figuração dos heróis “fundadores”. Para tanto, ele se concentra naquilo que denominou “arquitetura temporal” do poema, ou seja, tradições plurais erigidas em diferentes circunstâncias, para ressaltar o caráter sacro de determinados sítios romanos, oferecendo aos leitores critérios capazes de conferir sentido à res publica encabeçada por Otávio Augusto. O trabalho de Leni Leite, por sua vez, brindou-nos com uma incursão pela epopeia Farsália, de Lucano, concebida como obra historiográfica na medida em que se aproxima da produção de historiadores como Tito Lívio e Plínio, o Velho, e não tanto de poetas renomados e integrantes do costume (consuetudo) como Virgílio e Ovídio. Para fechar esse segundo bloco, Natan Baptista estuda a Argonáutica, de Valério Flaco. Além de dar conta da maneira como o poeta emulou a tradição do gênero, o autor aborda as descrições corporais para trazer até nós um “novo” herói épico, detentor de virtudes datadas que abrem caminho para a instituição de um éthos afinado ao período flaviano. Um denominador comum irmana as contribuições de Mota, Leite e Baptista: eles consideraram a construção do heroico e os preceitos configuradores das epopeias como constructos datados, ajustados às circunstâncias históricas de seu presente.

Saltando alguns séculos, Cleber Felipe examina analisou um poema épico atribuído a Jerônimo Corte-Real cuja matéria baseia-se numa relação de naufrágio, subgênero da história. Sua intenção foi avaliar de que modo uma matéria histórica trágica pode não apenas inspirar o canto épico, como proporcionar deleite aos leitores. Marcelo Lachat, por fim, pesquisa uma “relação” do século XVII e uma epopeia do XIX, com o objetivo de compreendê-las a partir de seus protocolos retórico-poéticos e de tópicas teológico-políticas dotados do poder de justificar as representações hiperbólicas do Rio das Amazonas, um canal que potencializaria a expansão dos reinos ibéricos e, simultaneamente, a catequese dos nativos.

A diversidade de poemas contemplados pelo dossiê, ao cobrir um intervalo de tempo superior a três milênios, descortina um território multívio; para ser percorrido, as virtudes acima mencionadas serão imprescindíveis. Somente na posse delas, estaremos habilitados para virar as costas ao espetáculo global e vislumbrar os arcaísmos heroicos que os autores tornaram documentos históricos.

Nota

1ARISTÓTELES. Poética (edição bilíngue). São Paulo: Editora 34, 2015, 9.1451ª


Organizador

Cleber Vinicius do Amaral Felipe – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Autor do livro Heroísmo na singradura dos mares: histórias de naufrágios e epopeias nas conquistas ultramarinas portuguesas. São Paulo: Paco, 2018.  E-mail: cleber.ufu@gmail.com


Referências desta apresentação

FELIPE, Cleber Vinicius do Amaral. O multívio gênero épico. ArtCultura. Uberlândia, v. 21, n. 38, p. 7-8, jan./jun. 2019.  Acessar publicação original [DR]

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