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História Oral e Patrimônio Cultural: potencialidades e transformações | Letícia B. Bauer e Viviane Trindade Borges

Quando ouvimos o patrimônio cultural, quais vozes são possíveis? As historiadoras Leticia Bauer e Viviane Trindade Borges, organizadoras desta publicação, contribuem nos debates recentes desenvolvidos no campo do patrimônio e da história oral no Brasil, com a seleção de diferentes percepções sobre o tema, ampliando as possibilidades teórico metodológicas de análise do patrimônio cultural a partir do trabalho com fontes orais, e das discussões sobre a história oral na problematização do patrimônio cultural. Este trabalho está inserido na coleção “História oral e dimensões do público”, da Editora Letra e Voz, que é dirigida por Juniele Rabêlo de Almeida, divulgando pesquisas voltadas para o uso das fontes orais e a relação com seus públicos, trazendo outras perspectivas sobre a história oral a partir de temas como migrações, mídia e os movimentos sociais.

Para além de ouvir a potencialidade das vozes nas narrativas sobre o patrimônio, as organizadoras buscam divulgar ações que possibilitem a transformação com a participação cidadã na construção de suas memórias. Esse intuito se relaciona com as trajetórias acadêmicas destas historiadoras, que privilegiaram em suas pesquisas e na sua atuação profissional as experiências com patrimônios não convencionais de maneira colaborativa, em consonância com as discussões desenvolvidas pela História Pública.

No capítulo “Outras memórias, outros patrimônios: desafio do fazer com e para os sujeitos envolvidos”, as autoras tomam como objeto um conceito ampliado de patrimônio com a análise da construção da exposição “Uma Cidade pelas Margens”, realizada em 2016 no Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo; e da experiência desenvolvida a partir da exposição “O tempo abre as portas a quem sabe esperar”, organizada no Memorial da Penitenciaria de Florianópolis no ano de 2012. Os desafios de produzir uma história com o público, em uma ação de coautoria, foi vivenciado em diferentes intensidades nestes processos, mas suscitaram a necessidade da participação ativa desses agentes no processo: “a incursão dos ‘novos’ ou ‘outros patrimônios’ em instituições e/ou espaços de memória é acompanhada pelo incentivo à participação cidadã, colocando novos e importantes desafios ao campo do patrimônio cultural” (BAUER; BORGES, 2018, p. 34).

A exposição “Uma Cidade pelas Margens” foi pensada com o intuito de discutir e visibilizar a memória de grupos voltados para a diversidade sexual (ou LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgênero) de Porto Alegre na perspectiva da curadoria compartilhada com grupos militantes ou relacionados à temática, possibilitando a construção coletiva dos resultados e o confrontamento de interesses diversos. Dirigido por Letícia Bauer, o Museu de Porto Alegre está fomentando a participação de grupos e coletivos locais na elaboração de exposições de curta duração com curadorias compartilhadas, apesar de ser um espaço museológico reconhecido como tradicional. No caso desta exposição, a curadoria compartilhada foi construída em reuniões com os grupos interessados, definindo a expografia e tomando as decisões sobre o uso do espaço coletivamente. A oralidade foi essencial para a consolidação da ação, possibilitando caminhos de pesquisa e a construção de um mapeamento de locais de sociabilidade LGBT, assim como os documentos e entrevistas disponibilizados pelos coletivos, que trouxeram outras questões relativas à história da diversidade sexual da cidade: “as entrevistas realizadas não fizeram parte de um projeto de pesquisa desenvolvido a partir dos pressupostos da história oral. Ainda assim, produziram documentos singulares” (BAUER; BORGES, 2018, p. 41).

Produzida em 2012, no Memorial da Penitenciaria de Florianópolis por iniciativa do projeto de extensão “Arquivos Marginais”, coordenado por Viviane T. Borges, a exposição “O tempo abre as portas a quem sabe esperar”, não consolidou a participação colaborativa daqueles que também seriam retratados, os detentos, devido às tensões que ocorriam naquele ano nas prisões do estado: “nossa intenção era envolve-los no processo de constituição da exposição, contudo, fomos facultados desse contato devido aos conflitos sociais que permeavam a prisão” (BAUER; BORGES, 2018, p. 43). Cinco anos depois, o projeto retornou seu olhar para a exposição, refletindo sua construção com a participação dos detentos através das rodas de memória, um espaço de reflexão voltado para a relação do sujeito com o seu cotidiano, com a sua memória e com a sociedade que o cerca. Organizadas com detentos do regime semiaberto, as rodas de memórias possibilitaram reflexões sobre as percepções desses sujeitos em relação ao patrimônio prisional e as atividades realizadas no Centro de Memória, bem como descortinaram silenciamentos sobre a “realidade” do cotidiano: “observar as ausências dentro do espaço de memória permite ponderar sobre as potencialidades da prisão como espaço de reflexão a respeito do encarceramento e de seus efeitos no social” (BAUER; BORGES, 2018, p. 49). De acordo Bauer e Borges (2018), é necessário pensar esses novos patrimônios e as potencialidades destas vozes com a participação ativa dos sujeitos destas memórias na afirmação de representatividade. Para a concretização da construção coletiva e de reflexão sobre essas exposições, o processo de fala, escuta e dialogo foram essenciais nas ações, consolidando espaços de compartilhamento de histórias e experiencias (BAUER; BORGES, 2018, p. 51), indo além das questões metodológicas da história oral.

A memória LGBT também é discutida pelo historiador Jean Baptista e pelo museólogo Tony Boita, professores da Universidade Federal de Goiás, no capítulo “História Oral e Comunidades LGBT: Museologia comunitária no Museu de Favela”. Utilizando a história oral como ferramenta e relacionando-a com a museologia comunitária, os autores discutem as possibilidades de escuta dessas outras vozes da favela, ressignificando identidades e valorizando a luta e a resistência de sujeitos presentes nestas comunidades, a partir da experiência do projeto “Memória LGBT no MUF”, desenvolvida em parceria entre o Museu da Favela e a Revista Memória LGBT. Os autores apresentam as especificidades de uma pesquisa com a comunidade LGBT em um espaço de violência, onde o lugar de fala do pesquisador e do indivíduo devem ser respeitados, onde há características próprias na oralidade, na necessidade do engajamento da pesquisa e como esse público que enfrentava o medo em se retirar do anonimato em seus depoimentos, encontra-se como agentes de suas narrativas e de suas histórias nas revistas Memória LGBT editadas a partir dos resultados obtidos com as propostas nas rodas de memória.

O uso de fontes orais conquistou espaço dentre a historiografia brasileira após conviver durante décadas com críticas que tangenciavam a fragilidade da memória como documento. A produção de entrevistas para as pesquisas ou para a preservação de memórias acompanhou a renovação historiográfica e o interesse crescente pela história do tempo presente, como argumentam Luciana Heymann e Verena Alberti no texto “Acervos de História Oral: um patrimônio silencioso”. Segundo as autoras, a não retomada de entrevistas gravadas por outros pesquisadores ocorre por um processo de monumentalização da fonte, e por isso a consulta aos acervos de história oral, a recuperação dessas vozes e seu reuso como fonte de outras pesquisas e novas abordagens analíticas ainda é muito pequeno. Elas apontam a necessidade de inverter o processo de leitura do documento como monumento para a patrimonialização, entendendo o registro como expressão de seu tempo: “quando tomamos acervos de história oral como ‘patrimônios’ cuja a produção cabe investigar, ampliamos as possibilidades de reuso das entrevistas, tornando-as documentos para estudos dedicados a história da memória” (HEYMANN, ALBERTI, 2018, p. 20).

Vale salientar na transformação dos usos da memória no presente estão relacionados à episódios traumáticos, a um passado que não passa por não estar resolvido, por estar pendente de reconhecimento por parte do Estado e da sociedade de sua profundidade histórica. No texto “Narrativas documentárias em asilos colônias paulistas: patrimonialização e memória”, a historiadora Gabriela Lopes Batista retoma fontes orais registradas em documentários para discutir um passado doloroso, voltado para o cotidiano dos espaços de isolamento compulsório dos portadores de hanseníase, contrapondo em seu trabalho o discurso de vídeos institucionais produzidos pelo Estado aos documentários construídos com as narrativas dos internos. A autora também discute os processos de patrimonialização dos asilos colônias paulistas que utilizaram esses testemunhos, demonstrando a contribuição das narrativas documentárias nos processos de tombamento e na ampliação do debate e do reconhecimento sobre a ação do Estado nos asilos: “A narrativa documentária, configura-se nesse sentido como instrumento relevante em um processo de patrimonialização” (BATISTA, 2018, p. 76).

A presença e ausência das narrativas de si e o testemunho de sofrimento também é discutida pelas autoras Maria Letícia Mazzucchi Ferreira e Juliane Conceição Primon Serres tendo como objetos de estudo o Museo de la Memória da cidade de Rosário, na Argentina, e o Memorial Hospital Colônia Itapuã, no Rio Grande do Sul. Em uma comparação entre os dois espaços de memória, as autoras buscam a relevância dos testemunhos nos projetos expográficos para a compreensão das experiências individuais do sofrimento, sem banalizar essas memórias.

A relação entre a pesquisa sobre patrimônio cultural imaterial e a história oral se estreita no trabalho da historiadora Isabel Cristina Martins Guillen, relacionando diretamente sua reflexão com sua vivência com o maracatu-nação em Recife, no artigo “Entre bordados, costuras e tambores: a oralidade nos Maracatu-Nação do Recife, Pernambuco”. A autora entende que a sua relação próxima com os grupos ampliou as possibilidades de sua pesquisa, permitindo outras leituras sobre esse patrimônio: “a oralidade é uma dimensão da vida cotidiana importantíssima para essas pessoas, e por oralidade estou entendendo as dimensões que se entrecruzam no contar histórias, na reprodução do saber-fazer e na transmissão do conhecimento, essencialmente” (GUILLEN, 2018, p. 117). Essa oralidade se faz elemento essencial nas políticas de preservação do patrimônio imaterial e na construção de uma história dos bens e de sua patrimonialização pelo historiador, contribuindo com uma densidade temporal ao intangível.

O último artigo apresentado é do historiador Durval Muniz Albuquerque Junior, “A melancolia dos objetos: algumas reflexões em torno do tema patrimônio histórico e cultural”. Como contraponto das discussões centradas na oralidade, Muniz busca ouvir a voz melancólica do patrimônio, apresentado como despojo dos vencidos no Museu Britânico, para contribuir na discussão sobre a formação da ideia de patrimônio cultural no mundo ocidental:

Fazer a história da constituição dos acervos e das práticas regulares das instituições de guarda pode ajudar os historiadores no seu papel de dessacralização das memórias oficiais, das memórias e tradições naturalizadas que tendem a se fazer presentes e a constituírem mesmo o campo de práticas e instituições recobertas pelos conceitos de patrimônio histórico e cultural (JUNIOR, 2018, p. 138).

De acordo com Durval Muniz, a anulação da alteridade é o primeiro passo na constituição de um patrimônio histórico ocidentalizado, tomando os signos da cultura dominado como símbolos da centralidade de sua cultura. As peças ali apresentadas são fruto de uma seleção violenta realizada no saque e que, mutiladas de seu espaço e fragmentadas, são desterritorializadas de sua cultura: “arrancados dos territórios e lugares, das culturas em que possuíam significados específicos, essas matérias e formas de expressão restam livres para adquirirem novos sentidos e significados” (JUNIOR, 2018, p. 146). Esses patrimônios culturais, agora, são símbolos de uma grandeza, são provas testemunhos da constante vitória dos vencedores, reafirmando as desigualdades, as dominações e as hierarquias presentes no mundo.

Os textos apresentados salientam que a comunicação das memórias através da oralidade é produto do cotidiano e de seus agentes, não se encerrando nos documentos produzidos pela história oral ou na produção de entrevistas para desenvolver suas análises. Entendo que este trabalho é uma intervenção crítica a partir das relações entre os públicos e seus passados, refletindo sobre o papel social da história e dos historiadores, e é uma colaboração valiosa para a discussão sobre esses “outros patrimônios”, sobre as “bordas” do patrimônio cultural a partir das vozes, do diálogo e da escuta desses agentes, por tanto tempo não considerados prioritários nos estudos da memória.

Para além de propor respostas, a publicação impõe questões sobre o processo de patrimonialização, a oralidade e a inserção dos agentes de memória na produção desses espaços, ampliando o debate sobre as interações entre história oral e patrimônio e as ações decorrentes dessa aproximação. Ao final da leitura deste primoroso trabalho, a escuta possível para essas vozes entrelaçadas no patrimônio nos faz refletir sobre qual patrimônio cultural desejamos construir e de qual forma ele irá se operar, se não em conjunto com seus agentes.

Referência

BAUER, Letícia B.; BORGES, Viviane T (orgs). História Oral e Patrimônio Cultural: potencialidades e transformações. São Paulo: Letra e Voz, 2018.


Resenhista

Luciana Mendes dos Santos – Doutoranda pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) no Programa de Pós-graduação em História e bolsista CAPES-DS. E-mail: lucianadsmendes@gmail.com


Referências desta Resenha

BAUER, Letícia B.; BORGES, Viviane Trindade (Orgs). História Oral e Patrimônio Cultural: potencialidades e transformações. São Paulo: Letra e Voz, 2018. Resenha de: SANTOS, Luciana Mendes dos. Vozes do patrimônio: a memória tecida na oralidade. Memória em Rede. Pelotas, v.11, n.21, p. 197-203, jul./dez.2019. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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