História oral e envelhecimento | História Oral | 2021
Este dossiê contempla estudos sobre os processos de envelhecimento utilizando, na interface memória social e trajetórias de vida, a metodologia de história oral. Reune textos que contribuem para os debates públicos sobre a temática – implicações científicas, sociais, políticas, históricas e culturais – ao considerar as mudanças ocorridas no curso da vida que caracterizam a experiência contemporânea. A preocupação com o envelhecimento e com a melhoria da qualidade de vida na sociedade brasileira muda a sensibilidade investida na velhice e a reflexão para o reconhecimento da pluralidade de experiências. O livro Memória e sociedade: lembranças de velhos, publicado por Ecléa Bosi no final dos anos 1970, é uma das principais referências para a história oral no Brasil. Seu tema e sua abordagem continuam relevantes e são inspirações para o presente dossiê. Paul Thompson (1972) e Luisa Passerini (2011) refletiram sobre a importância dos trabalhos de história oral atentarem para as experiências da velhice, pois muitas vezes o processo de envelhecimento não é abordado, ou não se compreende adequadamente as ressonâncias de “tornar-se e ser velho/a”.
Observamos nas últimas décadas o crescente envelhecimento da população brasileira, que atualmente representa cerca de 14% da população. No debate sobre políticas públicas, em momentos eleitorais e até mesmo na definição de novos mercados de consumo e novas formas de lazer, o idoso é um sujeito que não está mais ausente do conjunto dos discursos produzidos. A visibilidade conquistada pela velhice se traduziu em uma série de iniciativas por parte de agências governamentais e de organizações privadas visando um envelhecimento adequado. Esse envelhecimento ressignifica os lugares da velhice e produz novas demandas sociais, políticas e econômicas, seja sobre o indivíduo que envelhece como também sobre a sua família, o Estado e a sociedade em diferentes formas e desafios do envelhecer.
Nesse novo cenário, a preocupação com o envelhecimento e com a melhoria da qualidade de vida na sociedade brasileira muda a sensibilidade investida na velhice e propõe outras reflexões para o reconhecimento da pluralidade de experiências nessa fase da vida. A pessoa idosa é o agente social protagonista do processo de envelhecimento populacional e deve ser considerada a partir de sua inserção em um mundo por ela conquistado. Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que a longevidade é desejada e celebrada como uma das grandes conquistas da humanidade é, também, representada, no mundo capitalista, como ônus considerável para a sociedade e o Estado, sobretudo, em períodos de crise, como nos impõe a pandemia da Covid-19. Os pesquisadores, dedicados aos estudos sobre envelhecimento, se pronunciaram sobre como os estigmas que envolvem essa fase da vida foram reforçados no cenário pandêmico, criando as condições para que viessem à tona imagens e tratamentos depreciativos e desqualificadores dos idosos.
Frente aos debates públicos sobre envelhecimento no Brasil, este dossiê é organizado de modo a contemplar artigos que contribuam para avançar na reflexão, bem como na discussão teórico-conceitual e prática dos campos do envelhecimento e da velhice em inter-relação ou de forma independente, sob o ponto de vista da investigação científica e seus percursos metodológicos e analíticos. Dessa forma, dar a conhecer as problemáticas e objetivos que orientam a pesquisa, os sujeitos, os lócus (institucionalizados e não institucionalizados, os movimentos, as manifestações dos agrupamentos humanos), os organismos financiadores, especialmente focalizando as contribuições da história oral como prática reflexiva interdisciplinar.
Os autores são pesquisadores e atores sociais, localizados em diversos espaços geográficos e ligados a diferentes instituições acadêmicas. Suas produções aqui apresentadas são fruto de pesquisas muitas vezes relacionadas com ações extensionistas e práticas educativas. O dossiê é composto por oito artigos. Os quatro primeiros textos trazem reflexões gerais sobre envelhecimento, memória e identidade no cotidiano. A interface mulheres e envelhecimento, a partir das candentes questões de gênero, é abordada nos últimos artigos.
O texto de abertura, intitulado Reflexões sobre a velhice: identidades possíveis no processo de envelhecimento na contemporaneidade, de Eloísa Pereira Barroso, problematiza, por meio da história oral, o trânsito entre categorias como geração, classe social, terceira idade, entre outras, referentes aos processos de identificação do idoso como ser social. Em seguida, ainda na polifonia de significados do envelhecimento, o artigo “Eu quero sair, eu quero curtir, eu quero ser eu”, de Marcos Tolentino e Yuri Fraccaroli, discute as memórias de velhos e velhas dissidentes a partir das narrativas produzidos pelo Museu da Diversidade Sexual (MDS) de São Paulo. Assim, os sentidos das velhices – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais entre outros dissidentes – são cuidadosamente analisados para perscrutar os aspectos da memória política de LGBTQIA+, sobretudo no contexto de resistência e repressão da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).
O terceiro artigo, O guardião do pássaro da noite: memórias de luta e solidariedade no Mocambo do Arari, Parintins (AM), de Josivaldo Bentes Lima Júnior, apresenta as memórias de um idoso na organização e defesa da festa do cordão de pássaro Jaçanã no Amazonas – trata-se de um guardião do pássaro desde 1956: um homem que buscou estratégias de resistência para manter o festejo em meio às dificuldades financeiras e aos desafios do trabalho no campo. Ainda no universo das festas, para fechar a primeira parte do dossiê, está o texto A importância das atividades carnavalescas na vida dos idosos, redigido por Matilde Corrêa e Olga Rodrigues von Simson. O artigo discute as entrevistas de história oral realizadas com idosos participantes de escolas de samba do interior paulista: uma de Campinas, a Rosa de Prata, e a outra de Duartina, Unidos da Vila. O objetivo é discutir as narrativas a partir da noção gerontológica de “envelhecimento bem-sucedido”, que considera vários aspectos como: a subjetividade dos idosos, sua autopercepção, características culturais e, principalmente, que o bem-estar na velhice não é responsabilidade apena individual, mas, coletiva.
A segunda parte, no entrecruzamento “mulheres e envelhecimento”, é iniciada com o texto Memória, trabalho e identidade: trajetórias de vida de mulheres idosas dos quilombos Botafogo e Caveira na Região dos Lagos (RJ), de Dayara da Silva Ferreira. As discussões sobre memória de idosas são analisadas por meio do método da História de Vida. Entre a infância e a velhice, as temáticas recorrentes (trabalho, identidade, solidariedade e religiosidade) dimensionam as experiências cotidianas e as relações sociais estabelecidas em ambos os quilombos; relações constituídas a partir das redes de apoio, ou seja, atividades compartilhadas principalmente na prática do plantio. Ainda nessa perspectiva crítica, atenta às desigualdades sociais, o artigo seguinte, escrito por Fabiana Lima e Henrique Salmazo aborda as Compreensões da velhice satisfatória em mulheres idosas do Distrito Federal, pensando aspectos da história de vida e as influências da classe social. Foram realizadas entrevistas de História de Vida para compreender as trajetórias de oito participantes de dois grupos de convivência, sendo um em região de baixa-média renda (Ceilândia) e, o outro, de alta renda (Jardim Botânico). 8 Apresentação ao dossiê
No penultimo artigo, intitulado Grandmas Project: memória e afeto na cozinha, Maria Leticia Mazzucchi Ferreira observa as instigantes questões colocadas a partir da análise de narrativas orais de mulheres idosas por meio do programa Grandmas Project, que consiste em filmes de 8 minutos feitos por netos junto às suas avós executando receitas associadas às suas trajetórias. As tramas sociais, relações com o tempo e com o próprio corpo integram as lembranças “da cozinha” (lugar de memória e afeto) narradas pelas avós.
Por fim, o texto de Patrícia Tenório, “Assim eu sei que viverei para a posteridade”, encerra o dossiê com a análise das narrativas orais de Almerinda Farias Gama (1899- 1999), considerada uma pioneira do feminismo brasileiro. Almerinda foi uma das lideranças feministas da campanha pelo voto feminino no Brasil no início do século XX, fez parte da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) e fundou, em 1933, o Sindicato das Datilógrafas e Taquígrafas do Distrito Federal. As narrativas de Almerinda são mobilizadas em dois momentos distintos: em 1984, quando concedeu uma entrevista de história oral aos pesquisadores Angela de Castro Gomes e Eduardo Stotz; em 1989 quando falou da sua trajetória para o cineasta Joel Zito Araújo.
Agradecemos imensamente os autores que colaboraram com o dossiê: pesquisadoras e pesquisadores que trouxeram contribuições para os debates que entrecruzam história oral e envelhecimento. São discussões expressivas dos vários itinerários que compõe as conexões entre história oral e envelhecimento no Brasil. A todos, desejamos uma boa leitura!
Referências
BOSI, Ecléa [1979]. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
PASSERINI, Luisa. A memória entre politica e emoção. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: História oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.
Organizadores
Juniele Rabêlo de Almeida – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: junielerabelo@gmail.com ORCID iD 0000-0001-9468-9192
Lívia Morais Garcia Lima – Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal). E-mail: liviamglima@gmail.com ORCID iD 0000-0001-9962-7820
Referências desta apresentação
ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; LIMA, Lívia Morais Garcia. Apresentação. História Oral, v. 24, n. 1, p. 5-8, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]