“Como o chinês e a bicicleta/ como Cartola e Dona Zica/ como a paisagem e o cartão-postal/ como Romeu e Julieta/ catupiri com goiabada/ como quem fica junto no final”1 , História & Música Popular vêm, já há algum tempo, como que se fundindo, a ponto de constituírem um corpo só em muitas produções acadêmicas. Como laços que atam pesquisas que reúnem, de um lado, historiadores e demais profissionais do campo das ciências humanas e, de outro, pesquisadores envolvidos com a Musicologia, em suas diversas ramificações, as trocas intelectuais estabelecidas têm nutrido um diálogo inter e transdisciplinar com resultados bastante animadores.
Independentemente de se aterem ou não à dimensão musicológica do trabalho com música, historiadores de ofício prestam aqui sua contribuição ao alargar os domínios da reflexão em torno de temáticas ligadas às expressões musicais populares, quer elas sejam tomadas como fontes documentais, quer elas despontem como seus objetos privilegiados. Ao mesmo tempo, colhem os saldos positivos provenientes da área de Música e da escuta musical atenta, retirando daí parte da energia propulsora de suas investigações.
Este dossiê, que, por sinal, conta com a preciosa colaboração de três musicólogos, evidencia tais enlaces entre História & Música Popular. O time de autores que entra em campo é completado com a presença de professores universitários que jogam com papéis diferenciados e complementares na academia, se considerarmos sua formação e atuação profissional: eles vão de historiadores a cientistas sociais e jornalistas. Une-os a pesquisa histórica sobre música popular, seu denominador comum.
Rompem-se, assim, uma vez mais – se é que é preciso ressaltá-lo – as amarras tradicionais do pensamento historiográfico, que aqui se deixa conduzir a outras paragens, em busca de outras palavras e de outros sons, por mais que as linha de pesquisa valorizadas neste dossiê não disponham de âncoras absolutamente seguras para tocar em frente seu trabalho (afinal, quem as têm?).
Seis profissionais foram mobilizados nessa caminhada. Todos eles procuraram acionar as alavancas criativas de suas investigações para oferecer aos assinantes e leitores da ArtCultura novos prismas de análise. Para tanto, apresenta-se um painel de pesquisas que se reportam a músicas e registros fonográficos de vários cantos do mundo e, em especial, do Brasil. Na abertura e no fecho deste dossiê sobressaem duas colaborações internacionais. Da Argentina, Sergio Pujol, professor da Universidad de La Plata – distinguido, tempos atrás, como fellow in creative writing pela University of Iowa, em reconhecimento à sua produção bibliográfica – recompõe aspectos da cena musical no país vizinho ao exibir sinais de reconciliação entre o tango e o universo juvenil. Já o mexicano Rubén López Cano, radicado na Espanha, professor da Escuela Superior de Música de Catalunya e destacado membro da IASPM-AL (ao lado de outros mais, presentes igualmente neste número da ArtCultura), transita, como se fora um flâneur, por diferentes espaços do planeta a fim de recolher elementos sobre covers, versões e originais, convertidos em matéria-prima de seu esforço analítico.
Entre esses dois pontos extremos, outras temáticas se delineiam. O organizador do dossiê explora as relações musicais que aproximaram e distanciaram o Brasil de Portugal, ao enveredar por uma questão nada usual na historiografia: a utilização do samba como arma de combate à reverberação do fado nestes trópicos nos anos 1930. Por essa época registrou-se a consolidação da inserção da bateria na música popular brasileira, tal como se constata no artigo de Leandro Barsalini, professor da Unicamp, que aborda também um tema em geral colocado para escanteio nos estudos sobre a trajetória do samba.
Mas o Brasil não pode ser dimensionado de corpo inteiro se nos prendermos apenas às manifestações musicais do Sudeste, em particular do Rio de Janeiro. Por isso, da longínqua Pinheiro, plantada no Nordeste, Mariana Barreto, professora da Universidade Federal do Maranhão, trilha o caminho percorrido pelo maranhense João do Vale, que um dia recebeu as honras de sua consagração no espetáculo Opinião e adquiriu visibilidade no eixo Rio-São Paulo.
Estudos de caso à parte, Silvano Fernandes Baia, professor da UFU, se propôs desenvolver uma análise mais ampla a respeito da produção historiográfica gerada na academia sobre a música popular no Brasil. De olhos postos nas fontes e métodos, ele discorre, então, entre outras coisas, sobre os usos da partitura, do fonograma e de suportes variados, bem como sobre o peso que conserva o repertório canônico no processo de seleção de fontes.
Ao aglutinar neste dossiê todos esses trabalhos, a esperança é que ele dê um passo a mais, por menor que seja, para fazer avançar as pesquisas sobre História & Música Popular. Que tirem bom proveito dele os que têm olhos de ver e ouvidos de ouvir.
Nota
1 “O chinês e a bicicleta” (Joyce), Joyce. CD Ilha Brasil. Emi, 1996.
Organizador
Adalberto Paranhos – Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Instituto de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-graduação em História e em Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesquisador do CNPq. Autor, entre outros livros, de O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007. E-mail: akparanhos@uol.com.br
Referências desta apresentação
PARANHOS, Adalberto. Músicas de vários cantos. ArtCultura. Uberlândia, v. 14, n. 24, p. 7-8, jan./jun. 2012. Acessar publicação original [DR]
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