História, Mídia e Linguagens | Outras Fronteiras | 2020

História, Mídias e Linguagens representam formas pelas quais os seres humanos experienciam o tempo, narram eventos e fatos históricos. Nestes termos, citamos como exemplo a Segunda Guerra Mundial, o 11 de setembro 2001 e a primavera árabe1, ocorrida a partir de dezembro de 2010, eventos simbolicamente construídos em escala planetária, seja pela imprensa ou pela indústria cultural. Mais recentemente, as redes sociais foram determinantes nas eleições nacionais das principais democracias liberais do planeta, impactando assim o tempo político e as democracias representativas. De acordo François Hartog em Regimes de Historicidade2, a plasticidade do sistema capitalista e as mídias se retroalimentam.

Para Jean Noel Jeanneney estudar a História das mídias é compreender a representação que uma sociedade faz de si mesma, seja esta falsa ou verdadeira, bem como as influências dessas representações sobre os rumos em que determinada sociedade caminha, a partir das ações de seus diversos atores políticos. Assim como os atores, os objetos de análise de História das mídias são extremamente diversos e dispersos.

O advento da Segunda Guerra mundial é um marco para as pesquisas das mídias, pois ao analisar os jornais vemos o seu uso maciço na construção do inimigo do povo e da nação. Esse processo envolve tanto a compreensão ideológica dos donos e dirigentes dos periódicos, quanto esquemas de corrupção que buscam controlar a linha editorial das ideias a serem veiculadas. Nesse sentido o rádio ocupou um lugar diferenciado, representando um espaço de liberdade. A rádio difusão não está presa às fronteiras nacionais, especialmente nas emissoras de ondas curtas: “Quando o totalitarismo se abate sobre um país, o rádio é uma fonte de liberdade íntima. É uma guerra de ondas em 1939-1945, não foi certamente uma ilusão.” 3

Em A crise do capitalismo liberal4, José Jobson de Andrade Arruda centra a sua análise pós Primeira Guerra Mundial, compreendendo especialmente a construção do Estados Unidos da América como grande potência capitalista. A nova potência exercia diversas formas de dominação a partir da exportação da ideia do american way of life (estilo de vida americano), tendo o cinema como meio comunicação por excelência deste projeto imperialista. Ao estudar a liberalização dos costumes e os elementos de escapismo da crise socioeconômica que marca o período entreguerras, chama a atenção o papel do cinema como grande vértice mobilizador da indústria do entretenimento.

O filão recém aberto atrai a atenção e os investimentos dos empresários, que transformam Hollywood na fábrica dos mitos sintéticos e matriz geradora de astros e estrelas. “O cinema revolucionou a arte da comunicação. Suas possibilidades eram infinitamente superiores ao teatro. Suas mensagens poderiam ser decodificadas pelas grandes massas com enorme facilidade”5. É justamente por essa capacidade de mobilizar as emoções que o cinema prospera no período de crise. “A desmistificação dessa mitologia fica por conta do genial Chaplin”6. Nesse sentido, o magistral ensaio de Walter Benjamim, A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, analisa os impactos das novas mídias sobre as obras de arte, destacando o papel que o cinema ocupa neste processo de estetização da política, que pode ser de alienação ou de reflexão, como nos filmes de Chaplin.7 Benjamin procura compreender as tendências evolutivas da arte nas condições impostas pela sociedade capitalista.

Já a televisão de acordo com Jeanneney, é mídia eminentemente nacional, até o advento dos satélites de telecomunicações. O fascínio e o poder que a televisão exerce sobre a cultura política ocorre, num primeiro momento dentro das fronteiras nacionais, pois a Televisão tende a fornecer aos indivíduos argumentos mais fortes das ideias e comportamentos preexistente e no longo prazo ela se destina a modelar as culturas e as atitudes estáveis sobre as quais florescerão mais tarde os comportamentos instantâneos.8

Compreendendo o papel relevante que as mídias impressas, radiofônicas, televisivas, cinematográficas e tecnológicas exercem na leitura de realidade dos sujeitos históricos, a Revista Outras Fronteiras apresenta o dossiê História, Mídia e Linguagens. A edição é composta por artigos que analisam e problematizam diferentes produtos midiáticos, além de artigos de temática livre, entrevistas e transcrição documental comentada.

Abre a edição As diferentes perspectivas políticas da Vida Fluminense (1868-1871) e o anticlericalismo de Angelo Agostini, artigo de Danilo Aparecido Champan Rocha e Sandra de Cássia Araújo Pelegrini. No trabalho, os autores abordam as vinculações partidárias e a defesa do Estado laico presentes no periódico “Vida Fluminense”, fundado pelo caricaturista Angelo Agostini.

A seguir, em “O problema do cangaço”: explicações e soluções na imprensa cearense (1920-1930), Francisco Wilton Moreira dos Santos analisa o discurso produzido por jornais cearenses a respeito do cangaço, examinando as notícias que procuravam explicar o fenômeno e apontar maneiras de exterminá-lo.

Também tomando periódicos como fontes, Rafael Adão analisa como a imprensa religiosa cuiabana construiu conspirações anticomunistas. No artigo, intitulado Contra a degeneração da moralidade cristã: anticomunismo na imprensa religiosa de Cuiabá – MT (1930 – 1937), o autor dialoga com o historiador francês Rauol Girardet, para compreender a criação de mitos em torno desta vertente político-ideológica e de tudo aquilo que ela representava, contestava e repercutia.

As análises pautadas na imprensa seguem com O sinopeano como ferramenta de colonização: história, imaginário e representação sobre a fundação de Sinop – MT no/pelo discurso jornalístico (1980-1983). No estudo, Leandro José do Nascimento e Fernando Zolin-Vesz lançam mão da teoria do discurso de Michel Foucault para elucidar a construção do imaginário sobre a cidade de Sinop, a partir do veículo jornalístico “O Sinopeano”.

Caio César Cuozzo Pereira apresenta Maquis: um jornalismo de oposição – origem e fundação da revista do Clube da Lanterna. O artigo objetiva compreender a origem e fundação da revista Maquis e do Clube da Lanterna, fundados nos anos 1950 por Fidélis dos Santos Amaral Netto. Para tanto, utiliza de mapeamento bibliográfico e exposição de evidências empíricas, demonstrando que há uma lacuna a ser preenchida na historiografia sobre a atuação da revista.

Já em O diabo veste vermelho: A Revista Militar Brasileira e o anticomunismo no Exército, Cesar Alves da Silva Filho mostra de que maneira a “Revista Militar Brasileira”, instrumento oficial de propagação do ideário do Exército, contribuiu para a construção do pensamento anticomunista da oficialidade entre o período de 1930-1945.

Avançando para o campo das análises fílmicas, Edinei Pereira da Silva traz o estudo A estética subversiva do filme A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, sob a luz do pensamento de Frantz Fanon. Partindo dos pressupostos de Fanon, o autor analisa de que forma elementos do processo de libertação argelino, tais como descolonização, violência, cultura e resistência, aparecem no filme “A Batalha de Argel”, de 1966.

Ainda no âmbito do cinema, o artigo A história moçambicana através das telas do cinema, de Fernanda Gallo, analisa películas moçambicanas e o contexto em que foram produzidas, considerando que as produções cinematográficas trazem problematizações significativas para a compreensão da história de Moçambique em suas várias fases.

No artigo Documentando o passado sensível: os elos entre a história do tempo presente e a sétima arte, Samuel Torres Bueno traça pontos de contato entre obras cinematográficas, em especial as documentais, e a História Do Tempo Presente, com foco nas ditaduras do Cone Sul.

Trazendo a música como objeto de pesquisa, Danilo Linard apresenta A canção “Imagine” interpretada por John Lennon: reflexões acerca do paradigma utópico, trabalho que estabelece reflexões sobre o fenômeno utópico e as principais características que constituem esse paradigma, a partir da canção “Imagine”.

O texto a Lei 11.645/2008: Música Indígena como ferramenta decolonial e educativa para o Ensino de História, de Jessica Maria de Queiroz Costa, apresenta canções de artistas indígenas, refletindo sobre seu uso como ferramenta de ensino na aplicação da referida lei.

Em Jonny Quest e a Guerra Fria: a propaganda animada norte-americana, Luís Carlos da Silveira examina as representações forjadas pelos Estados Unidos sobre si mesmos e seus inimigos, no contexto da Guerra Fria, tendo como fonte o primeiro episódio da série animada “Jonny Quest”.

Suellen Cerqueira da Anunciação de Souza se propõe a analisar as mudanças da regulamentação na difusão das campanhas políticas, em Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral: Transformações de um espaço eletrônico do discurso político.

O artigo Ciberperformance e a cibernética, de Fabiana Mitsue Najima, fecha o dossiê. A autora descreve, analisa e reflete sobre o impacto das tecnologias digitais, comunicacionais e o controle relacionado ao uso de máquinas, redes de computadores, mídias e interatividade na atividade artística a partir de meados do século XX.

Na seção temática livre, Diego Lino apresenta Rumo aos Campos: Proposições Desenvolvimentistas nas comunidades Negro Rurais na Bahia (1930-1950). O estudo analisa as disputas entre o discurso desenvolvimentista para região de Feira de Santana e as necessidades cotidianas dessa população negra recém emancipada do sistema escravista.

Também em tema livre, Rafael Costa Prata traz o artigo A Virgem Armada: O protagonismo Bélico Mariano nas cantigas de Santa Maria compostas durante o Reinado do Monarca Alfonso X (1252-1284), em que busca compreender como se operacionaliza a construção textual e iconográfica da Virgem Maria como uma espécie de “caudilho” espiritual dos castelhano-leoneses em meio às ofensivas militares que estes promovem.

A edição traz ainda duas entrevistas, com a proposta de reunir pesquisadores que desenvolvem seus estudos dentro da temática do dossiê: História, Mídia e Linguagem. Além disso, aproveitamos a ocasião para dar conhecimento sobre os trabalhos acadêmicos e trajetória de vida de nossos convidados. “Nos caminhos da imortalidade: a trajetória acadêmica de Fernando Tadeu nos trilhos da História” evidencia o percurso e atuação do professor na academia. “A Filosofia e a História em um baile de máscaras: entrevista com o Prof. Dr. Flávio Fêo”, apresenta as escolhas teóricas e metodológicas do pesquisador e as tensões entre História e Filosofia na trajetória acadêmica de um foucaultiano.

Encerrando essa edição, Jaime Rodrigues em Conversações ocultas e conventículos: o motim a bordo de um navio mercante português no século XVIII, realiza uma transcrição de um documento interessante, um achado em que o enfoque desvela novos aspectos do mundo do trabalho marítimo e a indisciplina dos homens do mar. O pesquisador traz à tona por meio de um relato minucioso uma devassa tirada pelo Ouvidor do Crime do Rio de Janeiro em 1783, referente ao motim ocorrido a bordo do navio Nossa Senhora da Piedade e São Boaventura.9

A pandemia do novo coronavírus reforçou o impacto das mídias no cotidiano social, tornando-as por vezes a única janela pela qual temos contato com o mundo. Nesse cenário de incertezas, a equipe editorial Outras Fronteiras vem chamar todos que queiram refletir sobre as engrenagens das midas e das sociedades, bem como sobre o papel da História e dos homens e mulheres que a constroem diante da crise.

Notas

1 Brilhantemente analisado por Manuel Castells em Redes de Indignação e Esperança: Movimentos sociais na Era da Internet.

2 Aquele, imperioso tempo, dos calendários eleitorais; aquele conhecido desde a noite dos tempos, que consiste em ganhar tempo(decidindo adiar a decisão); aquele, recém-chegado, mas não menos exigente, da comunicação política(que tem por unidade de cálculo o tempo midiático), em virtude do qual os dirigentes políticos devem “salvar” por exemplo, o euro ou pelo menos o sistema financeiro- digamos, a cada dois meses- ou pelo menos proclamá-lo. HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 10. Grifo nosso.

3 JEANNENEY, Jean-Noel. A mídia. In.: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 2003. p. 217.

4 ARRUDA, José Jobson. A crise do capitalismo liberal. In: REIS FILHO, Daniel A., FERREIRA, Jorge e ZENHA, Celeste (Orgs.) O século XX. O tempo das crises. Revoluções, fascismos e guerras. Vol.2, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.p. 11-34.

5 ARRUDA, p. 21,2000.

6 Ibid, p. 33, 2000.

7 “Mas nada revela mais claramente as violentas tensões do nosso tempo que o fato da dominante tátil prevalece no universo da ótica. É justamente o que acontece no cinema, através do efeito de choque de suas sequencias de imagens. O cinema se revela assim, também desse ponto de vista o objeto atualmente mais importante daquela ciência da percepção que os gregos chamavam estética.” 7 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas vol. 1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.194. grifo nosso.

8 Refletindo por exemplo sobre o papel social da telenovela no Brasil é possível refletir como a televisão, veículo de mídia que nasce como algo elitista num primeiro momento se populariza no decorrer de sua trajetória, apresentando temas sensíveis ou até inovadores ao povo brasileiro, como divórcio, a mulher no mercado trabalho, relacionamentos interraciais, barriga de aluguel, clonagem, transexualidade, entre outros.

9 O original encontra-se no Arquivo Histórico Ultramatino, acessível para consulta a partir do site do Projeto Resgate Barão do Rio Branco.


Organizadores

Luciana Coelho Gama

Rhaissa Marques Botelho Lobo


Referências desta apresentação

GAMA, Luciana Coelho; LOBO, Rhaissa Marques Botelho; GONÇALVES, Viviane. Apresentação. Outras Fronteiras da História das Mídias e Linguagens. Outras Fronteiras. Cuiabá, v.7, n.1, p. 5-10, jan./jul. 2020. Acessar publicação original [DR]

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