A reunião de um grupo de historiadores para discutir das relações entre literatura e religião, ou as múltiplas possibilidades envolvidas na presença referente da religião na literatura afirma-se como uma possibilidade importante para pensarmos o métier do historiador nos dias de hoje.
A história não se contenta mais com as divisões estanques do passado, nas quais a sociedade, a economia e as relações de poder ocupavam lugar proeminente, capazes de relativizar a importância das religiões/religiosidades enquanto motivações de pesquisa. A religião passa hoje por uma revisão qualitativa do seu papel na estrutura social, em oposição ao ranço objetivista e materialista do passado, o qual mesmo quando reconhecia o seu papel operativo na sociedade, a subordinava a critérios de validade, que muitas vezes a depreciavam ou a negavam simplesmente.
A religião enquanto narrativa privilegiada do mundo e do homem está inserida no plus cognitivo proposto por Bachelard, capaz de valorizar uma dimensão poética do conhecimento, na contramão dos diversos objetivismos e materialismos plasmados no ocidente moderno. Por outro lado, a ideação religiosa, ela mesma vista como construção, como ficção, mostra ao historiador uma faceta radical da experiência humana no afã de criar um mundo significativo, para muito além da satisfação individual de necessidades imediatas ou do predomínio totalitário da sociedade sobre as individualidades. A religião enquanto narrativa ficcional foi admiravelmente apreendida por Bergson ou aproximar os deuses clássicos de personagens de romance1, evidenciando a natureza narrativa do fenômeno religioso.
Por outro lado, a literatura, igualmente, passou a representar uma fonte buscada pelos historiadores contemporâneos, acompanhando a valorização ficcional da narrativa histórica, assumida principalmente na segunda metade do século XX. Neste sentido, Nicolau Sevcenko2 nos mostrava a característica própria da ficção literária, com o autor sujeito ao que chamava de “liberdade condicional de criação”. Ou, em relação à ficção histórica, com o historiador sujeito ao que Sandra Pesavento3 chamava de “ficção controlada”. Pensando-se em ambos os casos, a literatura afirma-se enquanto fonte histórica, sujeita a uma interrogação intertextual e interdiscursiva.
Em uma sociedade como a brasileira, tão permeada por valores mítico-religiosos, é fundamental que a experiência religiosa e seus valores sejam interrogados e postos em evidência por nós historiadores. É assim que nos voltamos para a religião enquanto referente na literatura, buscando compreender mais sobre os valores direta ou indiretamente circulantes em nossa sociedade. Neste sentido, este Dossiê abre-se a um leque de investigações que vai, desde a literatura judaica e católica à magia umbandista, passando pelo diabólico e pela relação entre a redenção cristã e a possibilidade de vida inteligente em outros planetas. Com certeza, as reflexões aqui presentes muito vão contribuir para o debate científico em torno do tema Literatura e Religião.
Notas
1 BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião. Tradução: Coimbra: Almedina, 2005, p. 165-166.
2 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1985.
3 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
Organizador
Artur Cesar Isaia – Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina, na qual, atualmente, é Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em História. Contratado pela Universidade La Salle, desenvolvendo, desde 2015 atividades de docência e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais, no qual é um dos coordenadores da Linha de Pesquisa “Memória, Cultura e Identidade”, bem como no Curso de Graduação em História. Pesquisador do CNPq 1C. É graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo.Desenvolveu estágio de pós-doutoramento na École de Hautes Études en Sciences Sociales em Paris e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É um dos Coordenadores do Laboratório de Religiosidade e Cultura (LARC) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É Vice-Coodenador do GT Nacional História das Religiões e das Religiosidades (ANPUH); um dos coordenadores do Núcleo Santa Catarina de GT História das Religiões e das Religiosidades e um dos Coordenadores e fundadores do GT “Historical Studies of Science, Technology and Medicine”, da European Association of Historians of Latin America (AHILA), com sede na School of Cultures, Languages and Area Studies (SOCLAS), da University of Liverpool (UK). Lidera o Grupo de Pesquisa CNPq História: Religiosidade e Cultura.
Referências desta apresentação
ISAIA, Artur Cesar. Apresentação. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 16, n. 1, Jan./Jun. 2019. Acessar publicação original [DR]
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