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História & Literatura | ArtCultura | 2017

A constituição disciplinar da história foi marcada, ao longo do século XIX, pelo distanciamento de certos campos intelectuais, vistos como outros em relação aos quais era mister demarcar fronteiras. A veracidade dos relatos dos historiadores enunciava uma interdição, o da sedução da ficção literária, e as novas gerações deveriam inverter a máxima aristotélica que, lembremos, postulava a superioridade da poesia sobre a história, considerada o reino do particular, enquanto a primeira poderia se gabar de aceder ao universal. Sob a modernidade, impregnada de progresso e de futurismo, o século XIX era o da história. Reconhecida como uma especialização, a prática historiadora poderia até valer-se da literatura como fonte para o conhecimento do mundo real, mas sem confundir-se com ela. A história-ciência, com sua temporalidade homogênea e irreversível, tinha pouco a aprender com os modos literários de figuração do tempo, caracterizados, sobretudo, pela convivência entre passado e presente sob a forma da memória ou dos “passados que não passam”.

Do outro lado da trincheira, os literatos reagiam ao que viam como uma ciência pouco atenta ao presente e cheia de insignificâncias. Uma das maneiras de expressão dessa reação era a representação nada honrosa dos historiadores em diversos romances. Nestes textos, eles eram mostrados como indivíduos desprovidos de vida, alheios ao que se passava ao seu redor. A história também era acusada de ferir a universalidade da literatura, uma vez que, para os historiadores, um objeto só poderia ser corretamente explicado se localizado no tempo. O diálogo se reduzia e apenas as apropriações instrumentais eram aceitas: aos ficcionistas interessavam as observações particulares dos historiadores; para estes, os romances poderiam ser registros de representações dos passados que desejavam compreender.

Os debates recentes tornaram mais complexa a relação entre história e literatura. É possível afirmar que “não apenas os estudos literários se alimentam do trabalho historiográfico para enriquecer a compreensão e o próprio valor dos textos, mas a ciência histórica renovou suas abordagens do fenômeno literário e numerosos estudos colocam questões fundamentalmente históricas à literatura, sem reduzir sua literalidade”.1 Talvez tenhamos chegado ao momento em que rompemos com a velha estratégia defensiva dos historiadores, aquela em que eles admitiam o que há de “irredutivelmente narrativo na escrita historiográfica, mas cuidadosa em recordar o que distingue os dispositivos científicos e disciplinares do historiador e a liberdade ficcional do romancista”.2

Se a potência da literatura reside, lembremos Victor Hugo, no poder de falar à sociedade, não devemos, ainda mais em nossos dias, esperar que o historiador fuja desse mesmo impulso. Como palavra endereçada ao mundo, história e literatura devem se constituir como formas de mobilização, de apelo às sensibilidades, de construção de sentidos para a nossa relação com o tempo.

Os textos deste dossiê, de destacados autores nacionais e estrangeiros, indicam a vitalidade dessas expectativas. Eles acenam com chaves de leitura diversas, transitam por espaços, épocas e perspectivas distintas e sinalizam movimentos e deslocamentos das fronteiras entre fato e ficção, discurso histórico e narrativa literária, real e imaginário. Neles, os saberes da literatura são mobilizados a serviço da interrogação das suas potencialidades de produzir conhecimentos morais, sociológicos, históricos e filosóficos. Os leitores não encontrarão algo como uma via interpretativa que toma a literatura como uma linguagem atemporal de acesso ao real. É pela historicização, como exercício de reflexão produtiva, que os autores aqui reunidos apreendem os dispositivos literários de produção de um saber sobre o mundo.

A força da crítica literária de Walter Benjamin, tensionada entre o subjetivo e o político, constitui o tema do artigo de Kelvin Falcão Klein. Se podemos ler os textos de Felipe Charbel, Rodrigo Turim e Ricardo Lísias como ensaios que demonstram o potencial da literatura para figurar a temporalidade e a história, Sabina Loriga toca em outra figuração comum a “muitos romances”: a do próprio historiador ou, ao menos, de um determinado tipo de historiador que, para tantos escritores, parecia nunca habitar o presente, mas tão somente o passado, empoeirado e morto, de suas pesquisas.

Ivan Jablonka oferece o que pode ser tido como um plano de leitura para os demais artigos. O seu “terceiro continente” propõe a moldura de uma ciência social que possa ser igualmente literária. Os contornos duradouros dessa obra teórica e epistemológica são um trabalho a ser desenvolvido por outros cientistas sociais e literatos. Como índice de um certo estágio das relações entre história e literatura, os textos deste dossiê poderiam servir de exemplos à tarefa de Jablonka.

Mover-se nas fronteiras, navegar nas bordas da história e da literatura, não temer o risco de se perder. Estas talvez sejam as únicas recomendações aos nossos leitores.

Notas

1 “Non seulement les études littéraires se nourissent du travai historique pour enrichir la compréhension de la valeur même des textes, mais la science historique a beacoup renouvelé ses approches du phénomène littéraire, et de nombreuses études posent des questions pleinement historiennes à la littératura, sans en réduire la littéralité”. LYON-CAEN, Judith e RIBARD, Dinah. L’historien et la littérature. Paris: La Découverte, 2010, p. 3.

2 “[…] dirreductiblement narratif dans l’ecriture historiographique, mais soucieuse aussi de rappeler ce qui distingue les dispositifs scientifiques et disciplinaires de l’historien et la liberte fictionnelle du romancier”. LILTI, Antoine. Introduction. Annales. Histoire, Sciences Sociales, Paris, 65e année, 2010/2, p. 253.


Organizador

Alexandre de Sá Avelar – Integrante do nosso conselho editorial da revista Artcultura. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisador do CNPq.


Referências desta apresentação

AVELAR, Alexandre de Sá. Entre as bordas da história e da literatura. ArtCultura. Uberlândia, v. 19, n. 35, p. 7-8,  jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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