História indígena, agência e diálogos interdisciplinares/Acervo/2021
“História indígena, agência e diálogos interdisciplinares”, primeiro dossiê da revista Acervo a tratar da história dos povos originários no Brasil, nos dá a dimensão da significativa presença e atuação dos povos indígenas em nossa história. Ao agregar artigos que abordam temas, temporalidades e espaços diversos, destacando as agências indígenas dos séculos XVI ao XXI, esta edição evidencia o crescente avanço dos estudos sobre os indígenas na condição de sujeitos, cujas ações e escolhas influenciavam os rumos dos processos históricos. Fundamentados nas mais diversas fontes primárias e secundárias problematizadas à luz de análises interdisciplinares, os 28 artigos aqui publicados tratam de operações historiográficas e etnográficas que, no mais das vezes combinadas, revelam agências e trajetórias de homens e mulheres indígenas que vivenciaram realidades diversas em múltiplos processos de contatos interétnicos. Sem desconsiderar a extrema violência que caracterizou esses processos, historiadores e antropólogos desenvolvem narrativas inovadoras e decoloniais que demonstram as atuações políticas e culturais dos inúmeros e diferenciados povos que não se imobilizaram frente às incalculáveis agressões e ameaças com que depararam ao longo dos séculos.
As articulações entre o passado e o presente em estudos de longa duração caracterizam vários textos que acompanham as trajetórias de diferentes povos e indivíduos entre acordos e conflitos com agentes e instituições, sobretudo pela defesa de suas terras e identidades, temas bastante frequentados neste dossiê. Além de valorizarem o protagonismo dos indígenas, os autores procuram identificar os interesses próprios que motivavam suas interações e enfrentamentos entre si e com os demais atores sociais. Ideias preconceituosas e estereotipadas sobre os indígenas inseridos em sociedades envolventes desconstroem-se em análises interdisciplinares que consideram culturas e identidades como produtos históricos que se constroem e reconstroem na dinâmica das interações entre os povos.
Essa perspectiva tão essencial para a compreensão das trajetórias dos indígenas em situações de contato ou inseridos em sociedades envolventes é claramente explicitada na entrevista com João Pacheco de Oliveira, que nos fala da importância do diálogo entre a história e a antropologia para uma compreensão mais ampla e complexa das histórias, culturas e identidades dos povos indígenas e da própria história do Brasil. Ao discorrer sobre sua longa e produtiva trajetória, desde sua formação como antropólogo e das primeiras pesquisas etnográficas com os ticunas1 até os dias atuais, Pacheco de Oliveira revela o papel essencial da perspectiva histórica em suas análises sobre os mais diversos temas envolvendo povos indígenas em situações distintas. Entendê-los em contextos históricos específicos, levando em conta suas trajetórias, interações e processos de mudança foi sempre a prática do autor no exercício de suas atividades de pesquisa e docência. Por outro lado, o olhar antropológico sobre as fontes revela-se também imprescindível para o entendimento dos percursos, atuações e escolhas dos indígenas em relações de alteridade. Daí a importância de pesquisas localizadas que abandonem ideias generalizantes sobre os índios do Brasil para tratar de povos e indivíduos específicos em tempos e espaços determinados.
É o que evidencia também Mariana Dantas na seção Documento, na qual discute e problematiza a utilização das fontes primárias para o estudo da história indígena no Brasil. A partir de três obras históricas que, com base na rica documentação do Arquivo Nacional, trabalharam a temática indígena em tempos e espaços diferentes, Dantas demonstra a importância de contextualizar a produção dos documentos, cruzar e questionar informações de origens diversas e interpretá-las à luz de abordagens histórico-antropológicas para tentar compreender os distintos significados que objetos e comportamentos podem comportar quando lidamos com grupos e indivíduos étnico e culturalmente distintos.
Nessa linha de investigação inserem-se os vários artigos desse dossiê, abordando temas diversos que, da colônia aos nossos dias, demonstram as ações indígenas em busca de melhores possibilidades de sobrevivência. Enfocando regiões e agentes específicos, os vários autores buscam identificar os interesses próprios que motivavam suas ações em tempos e espaços determinados; interesses esses que se alteravam na dinâmica dos acontecimentos e das complexas relações de alteridade.
Alguns artigos analisam a inserção dos indígenas nas guerras europeias do período colonial e as complexas negociações políticas de seus líderes, evidenciando a consciência desses últimos sobre seu importante papel como mediadores de imprescindíveis alianças nas guerras de conquista dos europeus. Demonstram também a divisão dos grupos nativos em facções por interesses diversos que, com frequência, se alternavam no contexto das relações fluidas e inconstantes. É o que nos revela, por exemplo, Regina de Carvalho Ribeiro da Costa ao se debruçar sobre as cartas tupis trocadas entre os líderes potiguaras Felipe Camarão e Pedro Poti e sobre as Remonstrâncias de Paraopaba, no artigo “A prática discursiva potiguara em meio às guerras luso-holandesas: a participação política dos brasilianos”. A partir dos relatos indígenas que demonstram a apropriação da linguagem escrita, a autora discute como seus variados discursos expressam posicionamentos distintos nas guerras luso-holandesas, questão importante para refletir sobre as formas propriamente políticas da participação indígena naquele contexto. No século seguinte, os potiguaras continuavam atuando politicamente em defesa de seus interesses, como demonstra Gefferson Rodrigues. No texto “A tentativa de sublevação do índio Antônio Domingos Camarão em Pernambuco (1730)”, o autor evidencia o protagonismo dos descendentes de Felipe Camarão em seus esforços bem-sucedidos de manterem-se no posto de governador dos índios de Pernambuco, pelo menos até 1730, quando o mesmo foi extinto. Discutindo os motivos que levaram à extinção do cargo e à tentativa de sublevação do índio Antônio Domingos Camarão no anseio de recuperar seu poder, Rodrigues revela como os potiguaras conseguiram se manter influentes no âmbito local, apesar de não terem alcançado as recompensas prometidas pelos serviços prestados à Coroa. No final do século XVIII e início do XIX, a escolha e atuação política dos índios missioneiros nas fronteiras entre as Américas portuguesa e espanhola mostraram-se decisivas para a tomada dos Sete Povos das Missões Guaraníticas pelos portugueses, como revela Leandro Goya Fontella. Em “‘Isto fê-los tomar a resolução de se unir conosco’: a incorporação das Sete Missões guaraníticas ao império português num contexto de cultura de contato (1801)”, Fontella parte do conceito de middle ground formulado por Richard White para analisar as complexas relações entre os vários atores sociais na região, apresentada por ele como zona de inteligibilidade comum que pautava as relações entre a sociedade guaranítica e as frentes coloniais euro-americanas, interatuantes naquele espaço. As imprescindíveis e complexas negociações com os indígenas são evidenciadas e discutidas ao longo do texto.
Hibridismos e apropriações entre as religiosidades e práticas culturais cristãs e indígenas transformadas e ressignificadas nas complexas interações entre os missionários e os povos nativos são outras questões evidenciadas e debatidas no dossiê na perspectiva histórico-antropológica. Se os indígenas se cristianizaram, ao seu próprio modo, como demonstra Márcio Couto Henrique no artigo “Apoteose de Nossa Senhora: o lugar do índio no frontão do santuário de Nazaré”, os missionários também souberam adaptar suas práticas de evangelização para atender às especificidades locais e aos indígenas aos quais se dirigiam. O autor desenvolve complexa análise interdisciplinar de longa duração que, ancorada em documentos históricos de períodos diversos, lhe permite concluir que “os índios participaram ativamente da constituição da religiosidade amazônica, imprimindo suas marcas na devoção”. É também na articulação entre história e antropologia que os rituais contemporâneos do povo atikum são analisados pelos antropólogos Estêvão Palitot e Rodrigo de Azeredo Grünewald no artigo “O país da jurema: revisitando as fontes históricas a partir do ritual atikum”. A partir do relato etnográfico contemporâneo, os autores revisitam as fontes históricas sobre o culto da jurema nos séculos XVIII e XIX e apontam sua centralidade, como complexa prática cultural destinada a atar e reatar os laços entre tempos e alteridades, propiciando um sentimento de unidade e continuidade ao grupo, que é frequentemente negado pelos olhares etnocêntricos.
Questões sobre educação e ensino de história indígena essenciais ao debate contemporâneo como importantes instrumentos para desconstruir ideias preconceituosas sobre os indígenas e fortalecer suas lutas por direitos foram discutidas em alguns artigos. Em “O livro didático de geografia e o estudo das terras indígenas diante da lei n. 11.645/2008: possibilidades de aprendizagens interculturais?”, Josélia Gomes Neves, Ricardo Gilson da Costa Silva e Rosangela Castilho Valenciano analisam livros didáticos de geografia, apontando para a importância de conteúdos que levem em conta o modo de ser e de viver das populações indígenas para caracterizar seus territórios e suas lutas por terra, no século XXI. A educação indígena é discutida por Rosana Hass Kondo e Cloris Porto Torquato no artigo “Práticas insurgentes e desobediência epistêmica: currículo próprio, que vem do chão”, no qual discorrem sobre a necessidade de um currículo indígena que cada vez mais se contraponha a um sistema educacional homogeneizador que, muitas vezes, não contempla a diversidade de povos, conhecimentos, línguas e culturas presentes no território brasileiro.
“O primeiro indígena universitário do Brasil: dr. José Peixoto Ypiranga dos Guaranys (1824-1873)”, escrito por Luiz Guilherme Moreira e Marcelo Sant’Ana Lemos, é revelador da trajetória de José Dias Peixoto (José Peixoto Ypiranga dos Guaranys), que viria a ser o primeiro indígena brasileiro a se tornar bacharel em direito. A instigante trajetória desse intelectual indígena que, conforme a análise dos autores, comungava com os propósitos do Estado sobre a necessidade de civilizar os índios − ao mesmo tempo em que mantinha os laços com os aldeados de São Pedro e assumia sua identidade indígena − é reveladora do papel da educação como instrumento de mobilidade social para os indígenas, de suas intensas interações com os não índios e, sobretudo, de suas variadas possibilidades de ação política no oitocentos.
Da colônia ao século XXI, a exploração do trabalho indígena em suas diferentes modalidades mostrou-se fundamental para movimentar as mais diversas atividades econômicas nas várias regiões do Brasil. Além de guerreiros e agricultores, os indígenas exerciam também ofícios especializados para os quais seus saberes eram essenciais. Foram remeiros, pilotos, canoeiros, guias e informantes imprescindíveis, como demonstram Elias Abner Coelho Ferreira e Wania Alexandrino Viana no artigo “Canoas de guerra, canoas do sertão: protagonismo indígena na Amazônia colonial portuguesa”. Na Amazônia setecentista, onde os rios eram os caminhos por excelência, os conhecimentos e as práticas ancestrais dos indígenas sobre os rios e a tecnologia da navegação eram indispensáveis nas canoas de comércio e de guerra. No final do século XVIII e início do XIX, os conhecimentos indígenas foram úteis também para o plano secreto do governo do Grão-Pará em obter do Jardim La Gabriele, em Caiena, na Guiana Francesa, plantas e sementes de especiarias valiosas no mercado internacional, como a noz-moscada, a pimenta e o cravo-da-índia, a fim de introduzi-las no Jardim Botânico de São José, em Belém. É o que nos revelam Rafael Rogério N. dos Santos, Frederik Matos e Nelson Sanjad no texto “Itinerários indígenas na implantação do Horto Botânico do Grão-Pará (1760-1810)”, que traz importante contribuição ao inserir os itinerários indígenas na história da implantação do primeiro jardim botânico luso-brasileiro na América portuguesa.
O século XIX foi particularmente abordado por vários artigos deste dossiê que trataram de temáticas diversas. A violência do período foi destacada por Vânia Moreira no texto “A caverna de Platão contra o cidadão multidimensional indígena: necropolítica e cidadania no processo de independência (1808-1831)”. A autora evidencia e analisa os limites dos direitos indígenas no processo de emancipação política, priorizando questões sobre os direitos fundamentais à vida, à liberdade e à terra em duas temporalidades: o período joanino e o primeiro reinado. O silêncio da historiografia sobre a questão indígena no XIX é problematizado por Moreira que, articulando presente e passado, observa como o desconhecimento sobre os povos indígenas e a consequente disseminação de ideias equivocadas e preconceituosas sobre eles contribuíram e continuam contribuindo para desqualificá-los e justificar a retirada de seus direitos específicos.
As diversas estratégias dos indígenas no século XIX para preservar terras, identidades e alguns direitos garantidos pelas leis, incluindo a possibilidade de se tornarem cidadãos, são abordadas em suas múltiplas formas de manifestação que variavam entre a colaboração com autoridades, alianças entre si e com não índios, recursos jurídicos e resistências armadas.
Ayalla Silva, por exemplo, em “A guerra indígena como afirmação da autonomia: o caso dos pataxós e botocudos do sul da Bahia na segunda metade do século XIX” nos fala sobre a resistência armada desses povos. Em análise histórico-antropológica, a autora evidencia como suas lutas pela afirmação da autonomia e pela recusa em aceitar a condição de tutela, que o Estado procurava impor, ajudam a compreender o contexto atual desses povos em luta por seus direitos. Soraia Sales Dornelles, no artigo “O capitão terena José Pedro de Souza e sua reivindicação perante o Estado brasileiro: a participação voluntária indígena na Guerra do Paraguai”, exemplifica formas de colaboração dos indígenas com o Estado imperial e o empenho do líder terena em conseguir direitos e ganhos através de recursos jurídicos. O caso é também exemplar para discutir várias questões relevantes sobre a participação indígena na Guerra do Paraguai a partir de seus próprios interesses. Ainda que o recrutamento forçado tenha sido uma prática frequente, alguns indígenas foram voluntários e participaram da guerra incentivados por expectativas próprias. Na perspectiva do capitão, a participação dos terenas na guerra era um serviço prestado ao Estado que deveria ser recompensado. É o que demonstra Dornelles a partir da análise da petição do líder terena publicada no Diário de São Paulo em 1865 e de várias outras fontes que lhe permitem refletir sobre a presença dos indígenas no conflito e a visão estratégica de suas lideranças em contextos locais e frente ao Estado nacional.
“Territorialidades e direitos indígenas no Ceará na primeira metade do século XIX: agências indígenas paiakus em Monte-Mor-o-Velho”, de Marcos Felipe Vicente, analisa as ações indígenas dos paiakus de Montemor nas primeiras décadas do século XIX, na tentativa de garantir os seus direitos. Vicente evidencia como as agências indígenas são ações conscientes e coordenadas, percebendo na documentação manuscrita do período oitocentista como os índios apropriaram-se dos mecanismos jurídicos do período colonial e tentaram utilizá-los, mesmo durante o Império, como forma de afirmação de direitos, garantidos pela legislação. Em “‘Praticando atos de força’: a peleja dos indígenas do Pitaguary com os chefes do Ceará”, Eloi dos Santos Magalhães também analisa a luta coletiva dos indígenas do Ceará para garantir suas terras no Brasil imperial. A partir da perspectiva da antropologia histórica, o autor desenvolve ampla pesquisa documental, com foco sobre o registro coletivo de terras de 1854, incluído no Livro de registro de terras da freguesia de Maranguape. Sua análise revela o valor heurístico deste documento para a compreensão dos conflitos indígenas pela garantia de suas terras, disputadas por antagonistas diversos naquele campo social; disputas essas com sérias repercussões até os dias de hoje.
No sul do Brasil, entre o final do século XVIII e o início do XIX, os antigos missioneiros também lutavam para manter suas terras e identidades, como demonstram Isadora Talita Lunardi Diehl e Helen Osório no texto “‘Os índios no gênero de peões ninguém os excede’: utilização da mão de obra indígena e a expropriação de terras e gado guarani no Rio Grande do Sul (1777-1835)”. As autoras revelam historicidades desses indígenas enquanto trabalhadores especializados da pecuária, das últimas décadas do século XVIII às primeiras do XIX, demonstrando como eles utilizaram essa atividade na luta pela manutenção de suas terras. Questionam a construção dos discursos de inexistência dos indígenas nas primeiras décadas do XIX e evidenciam como os antigos missioneiros, então transformados em peões, contrabandeavam gado na fronteira e seguiam atuando, como peões ou como cabildantes, em disputas intensas pela manutenção das terras e rebanhos de suas antigas estâncias missioneiras.
Carolina Alvim e Cristina Pompa também questionam a invisibilidade dos indígenas na história do Brasil. No artigo “De ‘métodos improfícuos’ ao novo método: a questão indígena em Goiás, 1835-1850”, as autoras partem da análise dos relatórios dos presidentes da província de Goiás, entre 1835 e 1850, para evidenciar a presença e a atuação política dos indígenas na região. Em abordagem histórico-antropológica, articulam as políticas indigenistas com as dinâmicas locais, incluindo as múltiplas estratégias dos próprios indígenas em defesa de seus interesses. Na releitura empreendida pelas autoras, elas identificam e analisam as soluções propostas para o “problema indígena” nas discussões da Assembleia Legislativa goiana do oitocentos, refletindo sobre a dinâmica das relações entre colonos, indígenas de diversas etnias, missionários, militares, elites e governo da província.
“Independência e cidadania: povos indígenas e o advento do liberalismo no Ceará” foi a contribuição do historiador João Paulo Peixoto Costa, que analisa as disputas entre indígenas e autoridades políticas na sociedade liberal que se construía no Ceará e as diferentes operacionalizações do conceito de cidadania. O autor demonstra como a partir do constitucionalismo português, os índios do Ceará lutavam pela manutenção das prerrogativas que haviam adquirido desde o reinado de dom José I e a promulgação da lei do Diretório dos Índios, sobretudo quanto à confirmação de seus direitos à terra e à liberdade.
Os séculos XX e XXI foram períodos especialmente contemplados neste dossiê. Ameaças, desafios e violências de toda ordem, incluindo a construção de imagens e discursos preconceituosos sobre os índios, que negavam suas identidades e justificavam o avanço sobre suas terras, foram temas priorizados por vários autores, com ênfase sobre as ações e impactos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da ditadura militar sobre os povos indígenas.
As concepções dos militares sobre as relações interétnicas e o indigenismo brasileiro, sobretudo nos períodos do SPI e da Funai, são analisadas por Carlos Benitez Trinidad no artigo “A conquista sem fim: tradição militar e indigenismo no século XX brasileiro”. O autor enfoca a mentalidade dos militares que acompanharam Rondon na criação do SPI, com seu militarismo civilizador, humanista e positivista, comparando-a com o indigenismo da Funai. Discute as mudanças de paradigmas na mentalidade dos militares que foram se radicalizando até o golpe de 64, quando medidas econômicas mais agressivas foram aplicadas e como isso afetou negativamente as relações interétnicas e os direitos indígenas, com sérias repercussões até os dias de hoje. Em “Aspectos críticos da ação tutelar do Serviço de Proteção aos Índios frente ao povo terena”, Victor Ferri Mauro parte de uma ampla revisão bibliográfica para analisar de forma crítica a situação do povo terena durante a vigência de políticas indigenistas do SPI, entre 1910 e 1967. Articulando informações de pesquisas diversas sobre o passado e o presente dos terenas, incluindo a produção etnográfica e histórica de membros da própria etnia, o autor evidencia e discute as várias estratégias desenvolvidas por eles para lidar com a dominação imposta, enfocando especialmente a tutela legal para compreender como, na prática, os terenas souberam agenciá-la em favor de si mesmos e de garantir melhores condições de vida. Apesar de todas as imposições, eles mantiveram, como diz o autor, “sua consciência identitária e, por extensão, a coesão social do grupo”.
Denúncias sobre os maus tratos aos indígenas desde o tempo do SPI e a construção de ideias racistas e preconceituosos sobre eles, ainda invisibilizadas em meados do século XX, explicitam-se claramente no estudo de Darcy Ribeiro para a Unesco, como nos mostra Carolina Arouca Gomes de Brito, em seu artigo “‘Integração não significa assimilação’: o estudo de Darcy Ribeiro para a Unesco na década de 1950”. Analisando o cenário institucional e intelectual que possibilitou a realização do estudo de Darcy Ribeiro sobre os processos de integração e assimilação dos indígenas na sociedade brasileira, a autora evidencia como seu estudo “chama atenção para a violência escamoteada pela ilusão de uma integração sem conflitos entre indígenas e não indígenas na sociedade nacional”. Discute a metodologia de análise do antropólogo, apontando o caminho intelectual que o levou a formular o conceito de transfiguração étnica. Contextualiza o pessimismo de Ribeiro quanto às possibilidades de sobrevivência da população indígena no Brasil, lembrando que naquele período as ideias sobre o assimilacionismo e o inevitável desaparecimento dos indígenas absorvidos pela sociedade nacional predominavam entre os intelectuais, incluindo os maiores defensores das causas indígenas.
A construção de imagens negativas sobre os indígenas e sua disseminação através de periódicos em tempos recentes foi abordada por outros autores. Em “Representações sobre os indígenas no Oeste Catarinense: análise das publicações do jornal Diário do Iguaçu (2001-2017)”, Géssica Pinto Rodrigues e Jaisson Teixeira Lino realizam uma leitura crítica sobre as publicações desse periódico a respeito dos indígenas, buscando compreender suas relações com os conflitos sociais por eles vivenciados na região. Os recortes das notícias e charges veiculadas, entre 2001 e 2017, destacam representações culturais, ações políticas e sociais dos indígenas que, grosso modo, os representam de forma extremamente negativa. A atuação do famoso líder xavante Mário Juruna na Eco-92, alvo de críticas contundentes do Jornal do Brasil, redundou na construção de imagens negativas sobre ele, como analisado por Álvaro Ribeiro Regiani e Kenia Gusmão Medeiros no artigo “‘Juruna quer vender uma pele de onça’: discursos sobre a sustentabilidade e a representação do indígena como naturalmente ecologista na Rio-92”. A construção dessa imagem preconceituosa sobre o líder indígena é discutida pelos autores por meio da análise de artigos do Jornal do Brasil que trataram da venda de uma pele de onça feita por Juruna durante a Rio-92. Cruzando informações com outras fontes primárias e secundárias, que incluem as falas do próprio Juruna e de outros indígenas, os autores problematizam a construção da imagem dos indígenas como “naturalmente ecologistas” e contextualizam os usos políticos da ideia de sustentabilidade, lembrando que a Eco-92 foi também um espaço bem aproveitado por eles para manifestarem suas reivindicações. Demonstram também que o evento foi uma grande oportunidade para que o governo brasileiro revertesse críticas recebidas sobre políticas ambientais, buscando “vender uma imagem renovada e atrelada a ideais de preservação e sustentabilidade que não correspondiam à realidade brasileira”.
A compreensão dos próprios indígenas a respeito de suas relações de contato com os não índios, incluindo avaliações sobre os comportamentos desses últimos, foi tema de alguns artigos. Sílvia Clímaco Mattos, por exemplo, discorre sobre as narrativas xavantes para refletir sobre a compreensão que eles próprios tinham sobre suas relações de contato com os brancos. Em “Narrativas xavantes sobre o contato interétnico”, a autora desenvolve uma etnohistória da comunidade xavante em períodos anteriores e posteriores aos primeiros contatos, nas décadas de 1940 e 1950. Na memória da violência sofrida pelos xavantes, ataques surpresas, covardes e desleais dos brancos contra as aldeias, que vitimavam, sobretudo, crianças, idosos e mulheres, somados ao seu potencial patogênico, responsável pela propagação das epidemias “contribuíram para a construção de uma alteridade maléfica do homem ‘branco’”. Isso, no entanto, não os impediu de criarem diversas formas de resistência, pois, como demonstra a autora, cientes dos imensos prejuízos causados pelas relações interétnicas, eles “dedicaram-se a aprender sobre os ‘brancos’, até conseguirem, enfim, se reorganizar enquanto povo, passando a lutar pela retomada de suas terras”. O impacto da ditadura sobre os kaingangs e suas reações, a partir do olhar deles próprios, são as questões abordadas por Amanda Gabriela Rocha Oliveira e Enrique Serra Padrós no artigo “Corpo-território, repressão e resistência: os kaingangs e a ditadura de segurança nacional no Rio Grande do Sul”. A partir das experiências dos próprios indígenas, levantadas e analisadas através de entrevistas, os autores analisam o violento impacto da ditadura sobre os kaingangs e as diversas formas de resistência por eles desenvolvidas. A nova situação enfrentada pelos indígenas no período da ditadura é entendida pelos autores “como uma readaptação diante de uma nova onda da violência colonizadora, que fluiu como continuidade do próprio processo da conquista”.
As lutas indígenas contemporâneas pelos direitos que lhes são assegurados nas leis, sobretudo quanto às terras, foram tratadas em vários artigos que, grosso modo, desenvolvem análises de longa duração para acompanhar suas complexas trajetórias desde os primeiros contatos até períodos bem recentes. É o caso do estudo dos processos históricos de intensas e incessantes lutas dos tenetehar-tembés, nas fronteiras entre Pará e Maranhão, pela garantia de seu território e afirmação de sua identidade desenvolvido por Benedito Emílio da Silva Ribeiro e Márcio Meira no artigo “‘Tudo era área indígena’: território, exercício tutelares e processos de r-existência entre os tenetehar-tembés no século XX”. Em abordagem histórico-antropológica, os autores analisam as variadas estratégias dos tembés para fazer frente às constantes investidas sobre seus territórios e vidas comunitárias, desde as atuações do SPI a períodos recentes. Analisam as dinâmicas sociopolíticas e territoriais vivenciadas pelo tembés no Nordeste Paraense e centram o foco sobre a agência dos próprios indígenas, evidenciando sua incrível habilidade em construir uma re-existência em meio à incessante violência dos invasores. Nas palavras dos autores, eles “se apropriaram e reinventaram os discursos e práticas que lhes foram impostos, subvertendo seus signos tutelares e resistindo/r-existindo em seu cotidiano nas aldeias, além de gestar outras territorialidades”.
“Um olhar sobre o espaço geográfico da comunidade indígena Darôra: do período colonial brasileiro à homologação da Terra Indígena de São Marcos”, escrito por Igor Arnóbio Pinheiro de Carvalho e Maria Bárbara Magalhães Bethonico, analisa o processo de construção espacial da comunidade Darôra, criada na década de 1940, no atual estado de Roraima, onde vivem, hoje, os macuxis, os wapichanas e os taurepangs. A complexa trajetória dos povos indígenas da região em suas diversas interações com diferentes atores sociais é analisada na longa duração, desde os primeiros contatos às lutas por terra no período republicano, priorizando alguns períodos particularmente impactantes sobre os povos indígenas, como a instalação dos aldeamentos e missões na colônia, a construção do Forte São Joaquim em 1775, a criação da Fazenda Real em 1787 e, já no período imperial, o estabelecimento das fazendas nacionais em 1878. O foco da análise é o período republicano e a formação da comunidade Darôra, com muitas disputas por terra estudadas através dos processos administrativos que culminaram com a homologação da Terra Indígena de São Marcos, em 1991.
Em “Sítios, comunidades, associações: antropologia, história e agência na margem esquerda do Médio Rio Negro”, Sidnei Peres analisa a formação das comunidades étnicas do Médio Rio Negro e a formação do campesinato indígena, evidenciando a importância de “articular etnografia e história, no âmbito de uma antropologia processual que considera fundamental a agência indígena na compreensão da historicidade do território e da manufatura de direitos étnicos”. Com este olhar histórico-antropológico, desenvolve uma visão crítica sobre abordagens anteriores que distinguiam índio e camponês em campos opostos e evidencia como a categoria de campesinato indígena construída no diálogo da história com a antropologia é essencial para o entendimento das dinâmicas territoriais e das situações de conflito étnico.
A resenha de Aurino Lima Ferreira e Gustavo Jaime Filizola sobre o livro Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, complementa e enriquece o dossiê. Ao apresentarem as ideias desse renomado intelectual indígena, militante dos direitos indígenas e da proteção socioambiental, os autores levantam e discutem algumas questões relevantes que embasam as concepções de Krenak sobre as desastrosas consequências ecológicas que se abatem sobre o planeta e especialmente sobre os povos indígenas. Em diálogo com intelectuais contemporâneos que comungam com as principais preocupações apontadas na obra, sobretudo quanto à importância de desconstruir dualismos entre homem/natureza e cultura/natureza, os autores apontam para a necessidade de atender ao exercício proposto por Krenak, no sentido de escutar o “inaudível” e repensar perspectivas teórico-metodológicas que embasam nossas pesquisas. O desafio, segundo eles, é “se abrir para outras experiências de mundo, aprender com outros professores e professoras, aprender com outros corpos, com outras espécies de vida”.
Não resta dúvida que os povos indígenas têm muito a nos ensinar sobre suas práticas, seus saberes e suas histórias. Escutá-los com mais atenção e valorizar suas histórias, que se entrelaçam com as nossas, é um caminho essencial para repensar a própria história do Brasil; caminho esse que começa a ser trilhado, como demonstram os textos deste dossiê.
Nota
1 Seguindo o padrão adotado pela revista Acervo, as etnias indígenas são grafadas em minúsculas com as devidas concordâncias.
Organizadores
Juciene Ricarte Apolinário – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Maria Regina Celestino de Almeida – Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora do Programa de Pós- -Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Referências desta apresentação
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Apresentação. Acervo. Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 1-12, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR/JF]