História, ensaio e literatura nas Américas no século XX | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2014

A 17ª edição da Revista Eletrônica da ANPHLAC traz o dossiê “História, ensaio e literatura nas Américas no século XX”, com a finalidade de contribuir para o sistemático e profícuo debate sobre as interfaces entre a história, o ensaio e a literatura. O objetivo do dossiê é apresentar um espaço plural de debate, com enfoques e perspectivas diferenciadas acerca do tema, e colocar em destaque propostas metodológicas e reflexões críticas que se traduzem em paisagens e cenários instigantes para as Ciências Humanas.

O conjunto de artigos que compõem o dossiê aborda temas como as capacidades imagéticas e representativas dos textos literários e do ensaio em suas relações com a história; as conexões texto-contexto; a interação entre discurso e prática; os vínculos com a cultura e a política; as dinâmicas criativas dos textos e os posicionamentos públicos de intelectuais nas Américas. O resultado é a constituição de um dossiê formado por doze artigos que abarcam temáticas variadas, apoiadas em fontes poéticas, ensaísticas, literárias e políticas produzidas no século XX por intelectuais, em sua maioria, latino-americanos. A 17ª edição da Revista Eletrônica da ANPHLAC recebe ainda, com grande satisfação, uma conferência, um artigo livre e três resenhas.

No primeiro artigo – “La trampa pantanosa – as crônicas de Conquista na ficção e no ensaio de Juan José Saer” –, Cristiane Checchia, na fronteira instituída entre história, ensaio e ficção, analisa as obras do escritor argentino Juan José Saer, mais especificamente os livros Paramnésia (1967) e El río sin orillas (1991). A autora, atenta para a linha tênue que diferencia a narrativa ensaística da narrativa ficcional, propõe uma profunda reflexão sobre a forma como Juan José Saer mobiliza a leitura das crônicas da Conquista da América para construir sua própria imagem da conquista e, principalmente, para buscar parte significativa de seu próprio repertório literário.

Os escritos “sapienciais” do cubano Alejo Carpentier são analisados por Eduardo Ferraz Fellipe, que, com uma veia ensaística, propõe, privilegiando a relação entre texto e contexto, colocar em diálogo duas importantes obras do escritor: El reino de este mundo (1949) e Los passos perdidos (1953). O resultado é uma reflexão que coloca em evidência a escrita ficcional de Alejo Carpentier em sua relação com a história latino-americana e com temas como a secularização, a tradição religiosa e o drama humano.

No artigo “Narrativas sobre a América: o trauma e suas expressões temporais”, Fabiana Fredrigo e Libertad Bittencourt defendem a hipótese de que o trauma latinoamericano, compreendido como experiência histórica e traduzido na escritura ensaística, fundou “um lugar para a América no Ocidente” e demostram a importância do ensaio para a compreensão e escrita da história latino-americana. O caminho escolhido para a reflexão é a análise e conexão entre ensaios produzidos em diversas épocas e contextos e por diferentes autores, como Francisco Bilbao, Justo Sierra, Octávio Paz, Carlos Fuentes e Tomás Moulian, em contraponto com os discursos de Simón Bolívar e Gabriel García Márquez.

A autora Flávia Andréa Rodrigues Benfatti, no artigo “A masculinidade em foco: uma reflexão do tema nas narrativas autobiográficas de Tropic of Cancer e Tropic of Capricorn”, ambas do escritor norte-americano Henry Miller, analisa como questões de gênero e sexualidade foram pensadas e debatidas nos Estados Unidos no período entreguerras. A preocupação central do artigo é mostrar como Henry Miller aborda a questão da masculinidade hegemônica – em um contexto marcado por mudanças expressivas no campo das artes – e discutir, conceitualmente, a masculinidade, a femininidade e o feminino a partir do legado do patriarcalismo das sociedades ocidentais.

A partir da trajetória político-intelectual e literária do escritor Alejo Carpentier e da análise de suas primeiras obras, Visión de América (relatos originalmente publicados no jornal El Nacional de Caracas, em 1947, e na revista Carteles, em 1948), El reino de este mundo (1949) e Los pasos perdidos (1953), Felipe de Paula Góis Vieira, no artigo“Alejo Carpentier: um escritor em busca da América”, reflete sobre como o escritor cubano construiu a imagem da América fortemente influenciado pelas vanguardas europeias do pós-Primeira Guerra Mundial. A reflexão tem no seu cerne a compreensão dos caminhos e protocolos que Alejo Carpentier adotou na construção do “real maravilhoso”, com um profícuo diálogo com os discursos europeus sobre a América.

A obra Trilogía sucia de la Habana (1998), escrita pelo cubano Pedro Juan Gutierrez, é analisada no artigo de Giselle Cristina dos Anjos Santos. A autora, na fronteira entre a ficção e história, problematiza o modo como o escritor representa o Período Especial em Tempos de Paz na década de 1990 em Cuba – em um contexto marcado pelo fim da União Soviética –, com ênfase na crise econômica e nos atores sociais envolvidos no processo.

O artigo de João Gabriel da Silva Ascenso, “Colonialidade, raça e mestiçagem no ensaísmo sobre a América Latina no século XX: pensando alternativas ao ‘universalismo excludente’”, reflete sobre como o discurso colonialista, historicamente inserido na tradição europeia, elaborou imagens sobre a América Latina e o relaciona criticamente com alguns ensaios latino-americanos do início do século XX, com destaque para La raza cósmica: misión de la raza iberoamericana (1926), do mexicano José Vasconcelos. O objetivo central do artigo é compreender em que medida o discurso colonial permeou os ensaios latino-americanos que intencionavam “conceber uma modernidade nacional pelo prisma da emancipação política e cultural” na região.

A autora Marcela Araújo Vitali, no artigo “Literatura rebelde zapatista: a produção do subcomandante insurgente Marcos”, examina, principalmente, os contos Los arroyos cuando bajan, Los zapatistas no se rinden e La historia de la noche y las estrellas, publicados em 1994 pelo porta-voz do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o Subcomandante Marcos. O intuito é compreender, por meio da análise crítica do discurso, de que forma os contos se inserem no espaço de luta zapatista, de legitimação de discursos políticos e de tentativa de representação étnica.

Colocando em relevo o Caribe, Maria Angela Cappucci analisa em seu artigo, “Contribuições de Derek Walcott e Édouard Glissant para a narrativa contemporânea desde o Caribe”, como esses escritores, o primeiro da ilha de Santa Lúcia e o segundo da ilha de Martinica, produzem linguagens literárias inovadoras que, embora pouco conhecidas dos leitores brasileiros, corroboram com a formação de uma geopoética antilhana, criadora de novas linguagens identitárias para a região.

Pensar parte das relações entre história, ciência e literatura na Argentina, entre o final do século XIX e início do XX, foi o desafio proposto por María Carla Galfione no artigo “A ciência como garantia da História: José Ingenieros e sua leitura do romance de Sicardi”. A filósofa argentina avalia as implicações políticas do naturalismo literário como objeto para pensar a ciência e a história, ao investigar os significados da leitura crítica de José Ingenieros, importante médico e sociólogo argentino, sobre a obra literária Libro extraño (1902), do também médico e literato Francisco Sicardi.

Seguindo a análise de ensaios que problematizam os dilemas latino-americanos, Regiane Cristina Gouveia, no artigo “América Latina em perigo: imperialismo e panamericanismo nos escritos de César Zumeta”, mostra como o debate sobre o panamericanismo e o imperialismo, em fins do século XIX e início do XX, aparece na obra ensaística El continente enfermo (1899), do escritor venezuelano César Zumeta. Regiane Cristina Gouveia reflete ainda acerca da imagem que ele construiu sobre o continente, as propostas do autor para solucionar os problemas da América Latina e a forma como ele contribuiu para o fortalecimento de correntes de pensamento latinoamericano que intencionavam resistir às influências norte-americana e europeia.

Os principais manifestos e ensaios produzidos pelo brasileiro Oswald de Andrade são analisados por Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto no artigo “Antropofagia cultural: momento do pensamento crítico latino-americano”. O objetivo principal da reflexão é inserir Oswald de Andrade e sua produção no quadro do pensamento social e do ensaísmo latino-americano do século XX, relacionando a antropofagia oswaldiana com a construção de um legado civilizacional eurocêntrico e precursor dos estudos pós-coloniais.

No artigo “Dos viajeras latinoamericanas en la Europa del siglo XIX. Identidades nacionales y de género en perspectiva comparada: Maipina de la Barra (1834-1904) y Nisia Floresta (1810-1885)”, Stella Maris Scatena Franco e Carla Ulloa Inostroza analisam comparativamente os relatos de viagem da chilena Maipina de la Barra e da brasileira Nísia Floresta, produzidos na primeira metade do século XIX. O artigo mostra a relativa marginalidade que ambas ocupavam à época e as estratégias discursivas como instrumento de integração em seus respectivos campos culturais. Além disso, evidencia questões importantes vinculadas ao olhar feminino sobre a política latino-americana no século XIX e promove um debate sobre os desafios metodológicos e conceituais que o historiador enfrenta ao se trabalhar com os relatos de viagem, sobretudo relatos femininos.

O dossiê também traz três resenhas: a primeira, “Um intelectual peregrino na busca da produção intelectual argentina durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939)”, de Cristina Campolina; a segunda, “A diplomacia cultural entre Brasil e Argentina (1930-1954)”, de Rodolpho Gautier Cardoso dos Santos; a terceira, “O fortalecimento da democracia na América Latina em tempos de crise dos sistemas representativos”, de Victor Augusto Ramos Missiato. O dossiê ainda abre espaço para receber com grande satisfação a conferência do pesquisador argentino Raúl José Mandrini, do Museu Etnográfico Juan B. Ambrosetti (Universidade de Buenos Aires), intitulada “Prejuicios, mitos y estereotipos. El complejo camino de construir una historia de los aborígenes de las llanuras y planicies meridionales de la actual Argentina”, apresentada no XI Encontro da ANPLHAC, realizado em Niterói/RJ, em 2014.

Para finalizar, agradecemos a todos os que colaboraram com a viabilização do dossiê3 e salientamos que nosso intuito foi o de despertar inquietações para além das fórmulas já consagradas de pensar a História das Américas. Esperamos que a leitura dos textos que compõem a presente edição possibilite reflexões enriquecedoras para a construção de novos conhecimentos e a ampliação dos debates sobre o tema.

Nota

3 Agradecimento especial à revisora dos textos, Cibele Silva. Email: cibeledasi2@gmail.com


Organizadores

Adriane Vidal Costa – Professora de História das Américas no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).  E-mail: adriane.vidal@uol.com.br

Priscila Ribeiro Dorella – Professora de História das Américas no Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa (UFV). E-mail: priscila.dorella@ufv.br


Referências desta apresentação

COSTA, Adriane Vidal; DORELLA, Priscila Ribeiro. Apresentação. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 17, p. 1-5, jul./dez. 2014. Acessar publicação original [DR]

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