É com satisfação que faço esta apresentação da Revista editada pelos discentes da pós-graduação, empreendimento meritório dos jovens pesquisadores em História do programa do curso de História da Faculdade de Ciências Humanas, do qual sou egresso, tendo tido o prazer e oportunidade de cursar nele o mestrado, lá nos idos dos anos iniciais de sua criação e implantação. Espaço nobre de publicização dos exercícios intelectuais de construção de habilidades em teoria e metodologia e suas interfaces com universos empíricos, registros possíveis e contingentes do vivido pelos grupos humanos tomados em referência.
Neste número da revista, mais um desafio, o Tempo Presente, com ele o delineamento de perspectivas para a construção de abordagens históricas contidas numa temporalidade tensionada por dilemas específicos, contidos muitas das vezes, e que comporta, dentre muitos outros dilemas da crítica histórica, o da relação do pesquisador com o objeto, do qual, às vezes é co-partícipe, contemporâneo…
Para tais dilemas, talvez seja pertinente fazer uso, de uma quase metáfora. Com o movimento, ou o fenômeno de uma boiada. Esta, quando em movimento, quando está “passando”, muita coisa específica sobre ela pode estar obscurecida pela poeira, ou pelo barro da estrada, como: os tons das pelagens dos bois, quantos são? Quem são os homens da comitiva, etc. Da mesma forma, depois de “passada” a boiada, será difícil saber o número de bois pelas suas pegadas, quiçá as pelagens dos bois, ela já passou, e os peões da comitiva já estarão em outras paragens. Para ambas as temporalidades da boiada, os graus de dificuldade em acessar a sua “veracidade” se equivalem, guardadas as diferenças de antes e depois, e, se se quiser das memórias sobre ela, daqueles que a viram passar ou que ouviram falar sobre ela.
Nesse sentido, todos nós somos filhos do século XX, acabamos por escrever e pensar sobre coisas, objetos e processos históricos do próprio tempo em que vivemos e em alguns casos experienciamos. E, como afirma Eric Hobsbawn, no capítulo O Presente Como História, da coletânea Sobre História, “falo como alguém que atualmente tenta escrever sobre a história do seu próprio tempo e não como alguém que tenta mostrar o quanto é impossível fazer isso”, ou seja, tal exercício é mesmo um exercício de produzir história e não de gastar muito tempo em diletantismos sobre sua eficácia ou validade em termos de conhecimento histórico. Evidentemente, tal exercício não pode passar ao largo da crítica histórica, de modo que ao tratarmos “sobre o nosso próprio tempo, é inevitável que a experiência pessoal desses tempos modelem a maneira como os vemos, e até a maneira como avaliamos a evidência à qual todos nós, não obstante nossas opiniões, devemos recorrer e apresentar”. Por fim uma ressalva importante, qual seja, a constatação de uma experiência pessoal, com alguma pertinência para a história, nunca tem a dimensão idiossincrática. Ela só poder ter importância histórica, na medida em que, via de regra, a experiência individual de vida também é uma experiência coletiva.
Assim este número da Revista Eletrônica História em Reflexão, ao apresentar sob a forma de Dossiê sobre História e Tempo Presente, o faz através de: uma entrevista; alguns artigos e uma resenha e, notas e apontamentos de pesquisa sobre a Ditadura Militar no Sul de Mato Grosso.
A primeira parte consta de uma entrevista, realizada com o historiador Carlos Fico, que, em oportunidade recente ministrou conferência na Faculdade de Ciências Humanas sobre o golpe militar de 1964, tema de suas últimas pesquisas, momento em que concedeu a referida entrevista as pesquisadoras Ilsyane e Suzana. Tratando do assunto em voga, em função, inclusive, dos debates e embates que vem ocorrendo em torno dos trabalhos e possíveis resultados da Comissão Nacional da Verdade, o que deve resultar na ampliação da disponibilização de fontes para pesquisas sobre o regime militar no Brasil.
A América do Sul como prioridade: a política externa do governo Lula / PT (2003- 2010), mais do que uma história do tempo presente, uma história “quente”. O artigo contextualiza a política externa do Brasil para a América do Sul durante o governo Lula. Com isso, ao compará-la com o governo anterior, utilizando-se do método comparativo avalia as possíveis contribuições na direção de uma aproximação com os demais países do continente, em sua possível eficácia para com a estabilidade política, maior troca comercial, desenvolvimento social e de infraestrutura. O autor utiliza-se como base empírica de documentos do Ministério das Relações Exteriores em contraponto com a revista Veja, o maior semanário do país.
O artigo Elite Política de Passo Fundo / RS entre 1945 e 1964: do local ao regional, procura apresentar algumas considerações sobre os políticos daquela cidade que passaram a atuar em um plano regional e nacional num período de redefinição das forças políticas do país (1945 -1964). Analisa as características comuns, os mecanismos de ascensão, manutenção, reprodução e reconversão dos integrantes de uma elite política local e suas redes de influência e de sociabilidades políticas no contexto regional, bem como os valores compartilhados e a visão de mundo desse grupo, identificando seu perfil, revelando, além de afinidades culturais, interesses que articulam seus objetivos e metas políticas e / ou econômicas.
No campo da história cultural, e tendo como objeto a música, o artigo Entre O Morro e a Cidade: a composição da naturalidade do samba, a autora constrói uma contextualização acerca da inovação tecnológica do sistema de gravação elétrico, no ano de 1927, e como este fenômeno contribuiu para uma efervescência musical na cidade do Rio de Janeiro, especialmente no que diz respeito à canção popular. Os compositores de samba se empenharam em unir letra e melodia para serem gravadas em disco. A partir do limiar da década de 1930, gradativamente a linguagem musical dos sambas começou a adquirir uma “naturalidade” que se caracterizou, entre outros aspectos, num maior vínculo entre a canção e o intérprete. Tal fenômeno desdobrou-se e produziu uma maior “notoriedade do samba” dentre as demais canções populares na então capital republicana, concomitante ao desenvolvimento do rádio e do mercado de discos.
No artigo As Guerras de Reagan: ascensão do conservadorismo e os desdobramentos da política externa dos EUA na Era Reagan (1981 -1989), o autor discute o momento da ascensão conservadora nos EUA, entre fins da década de 1970 e início dos anos 1980, que culminou na Era Reagan. Discute ainda os desdobramentos de tais perspectivas na política externa do governo de Ronald Reagan, buscando assim, um enfoque nas perspectivas militaristas e intervencionistas que pautaram a doutrina Reagan e no acirramento das disputas com a URSS.
Aproximando-se de uma história econômica o artigo: Vias de comunicação e meios de transporte no sul de Santa Catarina 1850 –1950, discute a inserção das vias de comunicação e dos meios de transporte na região sul de Santa Catarina entre 1850 e 1950. Privilegia duas modalidades de transporte dentro de quatro tipos de iniciativas: a) o projeto fracassado da Estrada de Ferro Dom Pedro I e a construção da Estrada de Ferro Don a Tereza Cristina; b) a navegação marítima a vapor, representada pela Companhia Catarinense de Navegação a Vapor e pela Empresa Nacional de Navegação Hoepcke, e navegação fluvial, evidenciando o projeto do canal de navegação entre Laguna e Porto Alegre. Na peculiaridade dos transportes no sul de Santa Catarina materializou-se o modelo geral do sistema de transporte no Brasil, cuja marca foi a “lentidão”.
Contribuição significativa, o artigo A Construção da Identidade Nacional Brasileira: necessidade e contexto, muito embora divergente no que se refere à dimensão temporal do Dossiè, está adequado ao espírito da revista, no sentido de contemplar trabalhos de pós-graduandos. Este artigo analisa o processo de construção da identidade nacional brasileira, no século XIX, ressaltando a sua posição estratégica, em meio a uma crise política presente no Brasil do pós-independência, abordando a situação política que suscitou a alguns intelectuais do período a pensarem a questão do estatuto da jovem nação, elencando e elegendo elementos e dados referenciais para representar aquela identidade pretendida.
As considerações historiográficas, como uma contribuição no âmbito da escravidão no Brasil, em especial um universo singular, qual seja a atividade de resistência à escravidão no Estado brasileiro do Maranhão, são apresentadas sob o título Por Esses Campos e Caminhos: resistência à escravidão em Alcântara – MA e apresentam os resultados de análise de documentos investigados em cartórios da cidade de Alcântara, os quais podem ser uma contribuição no processo de configuração de áreas de quilombos e quilombolas.
Na seção de Resenhas, a análise da obra de Silvia Maria Fávero Arend, Histórias de abandono: infância e justiça no Brasil (década de 1930). Florianópolis: Editora Mulheres, 2011. Aborda o problema da infância e da juventude nas primeiras décadas do século XX na cidade de Florianópolis, resultante de pesquisa a partir de documentação produzida pelo Juizado de menores na cidade de Florianópolis, estado de Santa Catarina. Pesquisa iluminada pelas problemáticas contemporâneas, como toda pesquisa histórica marcada pelas tendências do campo. O problema do abandono de crianças naquele período circunscreve-se no contexto de famílias migrantes que buscam alternativas de sobrevivência naquela cidade.
Na ultima seção, numa atitude de inovação, porque modalidade inédita nesta revista, Excertos e Apontamentos de Pesquisa, trazemos as Notas sobre a Ditadura Militar no Sul de Mato Grosso: ação, reação e repressão, aborda acontecimentos ocorridos no sul do estado de Mato Grosso logo após o golpe de 31 de março de 1964, quando então iniciou-se o período conhecido como ditadura militar. Período de grande embate político e ideológico, momento em que o país posicionou -se ao lado dos Estados Unidos, e no combate ao comunismo, no confronto bipolar imposto pela Guerra Fria. Este período, marcado pela forte repressão aos movimentos de resistência ao regime em todas as regiões do país. As notas apresentadas pela autora, dá visibilidade do fenômeno na região sul de Mato Grosso, fazendo ver o apoio de setores da sociedade civil, e ações policiais com prisões e perseguições a políticos e à sociedade de modo geral.
José Carlos Ziliani – Professor UFGD.
Dourados / MS / Brasil – Inverno chuvoso de 2014.
ZILIANI, José Carlos. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 8, n. 15, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]
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