Vivemos no século XXI. Tempo em que as distâncias físicas se cruzam com o espaço e se encurtaram; em que a ordem e a transgressão não contam com rígidos limites e o todo se estilhaça em fragmentos. A História universal divide seu espaço com a história local e regional. Tempo em que a percepção cartesiana da ciência, racional e concreta convive com outra percepção mais alargada, que já abriga em seu leito o senso comum e as expressões do desejo do homem, uma ciência capaz de entender que o mundo humano se organiza em torno de desejos. Essa concepção de ciência que emerge nos tempos pós-modernos que leva em conta o homem como sujeito e como preocupação central do conhecimento científico, possibilita ao mundo acadêmico o retorno do estudo da sensibilidade, do sentimento, das emoções já praticada no tempo de Heródoto, de Aristóteles e Platão e que fora dizimada nos tempos da modernidade. Na leitura de Dosse ela fragmenta a História, a separa em migalhas. Mas o que seriam essas migalhas senão fragmentos que nos possibilitam um adentrar com profundidade em nosso objeto de estudo? Presumo que essa história fragmentada ou em migalhas significa o ecoar da voz humana no árduo cenário da ciência. Além disso, nos tempos pós-modernos o conhecimento histórico prioriza a esfera cultural, as idéias, os valores, as representações, as linguagens. A História vem se tornando um ramo da estética, aproximando-se da arte, da literatura, do cinema, da fotografia, da música; sensibilidade, sonho e realidade se misturam o que me faz lembrar Vô Mariano, um personagem de Mia Couto em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, ao colocar “o que mais me lembro é daquilo que nunca vivi”. Destarte pelo discurso da ciência moderna voltar seu olhar para o espaço humano, o artista, o filósofo e o historiador mantêm um contrato pendente com o tempo que determina a história.
Nesse sentido, a coletânea organizada pelas professoras Temis Parente e Marina Ertzoque reacende a discussão da inclusão do sentimentos, da sensibilidade das emoções na ciência, mais especificamente, na construção do conhecimento histórico. Ela ecoa uma polifonia de vozes dissidentes da compreensão de que para a história só existem fatos , números, dados, são vozes que ultrapassam o limiar dos fatos, dos documentos históricos e perambulam na busca de outras vozes além daquelas gravadas pela escrita; que desejam tornar presente falas emudecidas enfim, que buscam penetrar na substância, na seiva de cada documento trabalhado. Os autores são historiadores para os quais a História se faz e se refaz pelas sendas da narrativa, ou seja, que utilizam na escrita da história de estruturas interpretativas, fragmentadas e heterogêneas sem, no entanto, estabelecerem hierarquia que assegure a existência de vozes mais importantes ou significativas do que outras. Eles , em seus textos parecem reafirmar os ensinamentos de John Berger de que o modo como enxergamos as coisas depende do que sabemos e do que acreditamos, vemos o mundo a partir do nosso lócus de enunciação. Penso, também, que a cima de tudo, eles acreditam que a História é essencialmente uma ciência do homem e para o homem. Assim, o pulsar do coração do homem, a sua sensibilidade, o seu cotidiano não pode ficar à margem do conhecimento histórico. É a partir dessa compreensão que História e Literatura passeiam juntas, pelos jardins da ciência.
Os autores da coletânea vão cerzindo na composição do livro diferentes temas do cotidiano da vida dos homens comuns tais como: a solidão, a saudade, o ressentimento, a dor, a violência, o sonho e a alegria, dentre outros. Assim, desvendam a cortina que, por vezes, encobre o olhar do historiador para pequenos acontecimentos da vida humana; parecem aceitar que tudo que acontece no dia a dia da vida humana pode e deve ser objeto de estudo da História, como ensinara com maestria Walter Benjamin; o cotidiano é a substância viva do conhecimento histórico. Eles palmilham por um caminho sinuoso pelo qual a História, enquanto conhecimento, não mais se satisfaz com a dicotomia conhecimento objetivo/conhecimento subjetivo, real/imaginário porque entendem que a História é uma interpretação do real, tal como dissera Nietzsche nos idos do XIX, – não existem fatos, mas apenas interpretações. Por essa razão temas que expressam a sensibilidade humana como a saudade, a solidão, a dor, antes tão renegados pelos seguidores de Ranke , hoje cintilam no palco iluminado da historiografia. Na primeira parte da coletânea, os autores deslindam suas discussões em torno da solidão e os círculos do tempo; sobre a vida cotidiana na América portuguesa; da memória, história e ciência; sobre a saudade, tempo e história;. Na segunda parte destrinçam questões sobre o cristão novo no Recife holandês; sensibilidades de negros julgados por assassinato; sobre ecos dos carceres brasileiros; esperanças de migrantes italianos, judeus e japoneses; a arte de viver no campo do outro; os ressentimentos femininos; o mosaico das vidas singulares; sentimentos e ressentimentos de Eva, mulher de vida livre; a vida noturna nos botequins de Porto Alegre; os heróis que o império esqueceu . Na terceira parte a sensibilidades pululam nas afeições euclidianas; no sertanejo sob o olhar de José de Alencar e na poesia e música de Dolores Duran.
A coletânea sugere a discussão do lugar da história das sensibilidades na produção historiográfica. Seria ela parte da história cultural, da história social ou uma outra fragmentação da história? Alguns autores da coletânea parecem reaproximá-la da história cultural, outros da história social. Um dos autores, textualmente, apreende a história das sensibilidades como “uma área específica do conhecimento (…) chegando mesmo a configurar uma outra história social de sentido globalizador”. A minha interpretação dessa afirmativa é que, o autor ao colocar que a historia das sensibilidades afilia-se a história social ele já estabelece uma hierarquia entre as duas com privilégios para a segunda; ao compreender a história social como globalizadora pode estar lhe conferindo àquela um status de harmonizadora. Parece-me que esta forma de pensar se sustenta na compreensão de que as narrativas históricas se organizam a partir de uma raiz comum da qual se desenvolvem galhos cuja sustentação dependem da raiz. Assim, essa imagem da árvore representa a história das grandes narrativas e de suas supostas continuidades, a história das sensibilidades, a história cultural, dentre outras. Estas seriam afiliadas a um tronco comum (História), como se uma dependesse da outra, e o resultado seria a harmonia. Assim, a história humana apareceria como harmônica.
Entendo que a historia das sensibilidades se configura como uma área específica do conhecimento histórico tal qual a história cultural, a história do imaginário , dentre muitas outras. Mas, palmilho por outro caminho, certamente, não mais verdadeiro que o outro, mas o que mais se aproxima da minha forma de ver e pensar o mundo. Utilizarei da metáfora do bulbo e do rizoma para expressar o meu entendimento sobre a questão. A idéia é que as histórias não se organizam a partir de uma raiz comum e a imagem que utilizarei é a do bulbo ou do rizoma. O bulbo são raízes que não têm um tronco organizador comum, elas se espraiam de múltiplas formas e os galhos em rede vão se reconectando. Eles vão se desenvolvendo como em uma rede e, ao mesmo tempo, se conectando entre si.. Quando os vemos, temos algo que é quase como uma rede – filamentos e bulbos. A base do rizoma é a mutabilidade e seu principio de funcionamento, a aliança. A partir dessas imagens podemos pensar a História como um rizoma com diferentes bulbos que vão se disseminando , se espraiando e, ao mesmo tempo, se reconectando. Assim, ela deixa de ter uma raiz única , uma narrativa única e se configura como múltipla, o que nos leva a pensar em histórias, em versões da história. Um desses bulbos pode ser a história das sensibilidades, a história cultural , a história social,dentre muitos outras. Estas distintas histórias são conectadas entre si, geograficamente diferenciadas, mas não têm hierarquia. Elas representam diferentes vozes, enunciados, diferentes formas de perceber o mundo social, cultural e político. Por serem distintas elas ganham formas específicas, embora estejam conectadas entre si.
A coletânea cativa o leitor para pensar a História a partir das sensibilidades humanas. Se as organizadoras pretendiam com esta coletânea: fazer circular a discussão sobre a histórias das sensibilidades humanas, parece-nos que conseguiram! E finalizo lembrando que, se é difícil para nós aceitar e experienciar o novo porque é perigoso, derruba nossas certezas, vale a pena relembrar o velho jagunço de Guimarães Rosa ao expressar que o perigo reside na nossa própria vida – “ viver é muito dificultoso, é perigoso”.
Resenhista
Cléria Botelho da Costa – Professora no Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).
Referências desta Resenha
ERTZOGUE, Marina Haizenreder; PARENTE, Temis Gomes (Orgs.). História e sensibilidades. Brasília: Paralelo 15, 2006. Resenha de: Cléria Botelho da Costa. Revista Mosaico. Goiânia, v.1, n.1, p.106-108, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]
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