Nos anos 80 a historiografia brasileira assistiu à emergência do interesse dos historiadores por temáticas relacionadas com igreja, catolicismo e com as práticas e crenças religiosas tanto no passado colonial como no século XIX e XX. Rompia-se assim com certo desinteresse dos historiadores e historiadoras leigos de formação acadêmica com respeito ao religioso, constituindo uma alternativa à abordagem representada por uma historiografia de caráter eclesiástico (por vezes mais identificada com a instituição, por vezes crítica como a CEHILA), gerada ao interior das igrejas católica, metodista, luterana, baptista.
Tal interesse de novas gerações de historiadores se configurou claramente no levantamento feito pela ANPUH sobre a produção dos programas de pós-graduação na segunda metade dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, onde se constou um número expressivo de dissertações e teses sobre a temática religiosa. Embora se abordasse outras igrejas além da católica e outros aspectos além dos eclesiásticos, ainda se tratava de uma historiografia definida pelo estudo do cristianismo, em particular da igreja católica e de forma especial as relações desta com o Estado. Também essa primeira historiografia acadêmica se esforçava por localizar as igrejas no seu contexto histórico e por abordá-las a partir das relações travadas ao interior dos diversos grupos sociais.
Nesse início do século XXI a produção historiográfica a respeito do religioso não apenas se manteve, mas vem se ampliando regionalmente e diversificando seus temas, recortes e períodos. Expressivas revistas de História, como a Revista Brasileira de História, editada pela ANHPU ou a revista Tempo, da Universidade Federal Fluminense, só para mencionar algumas, dedicaram no início dos anos 2000 números centrados em temáticas relacionadas com religião. Em 2008 foi fundada a revista eletrônica, Revista Brasileira de História das Religiões, que tem editado três números por ano.
Na procura de espaços próprios para discutir a pesquisa, surgiu em 1999, por iniciativa de historiadores de diversas universidades, a Associação Brasileira de História das Religiões, associada à International Association for History of Religions, que até agora constitui um importante espaço de apresentação de pesquisas que envolvem o tema, abordadas desde a História, a Sociologia, a Antropologia e as Ciências da Religião.
Finalmente, em 2005 foi constituído ao interior de ANPUH o GT História das Religiões e das Religiosidades que tem-se reunido todos os anos com um número sempre crescente de comunicações sobre aspectos religiosos desde uma perspectiva histórica. Ainda, desde 2003 se realiza em Mato Grosso do Sul, a cada três anos, um Simpósio Internacional sobre Religiões, Religiosidades e Cultura, onde a presença de historiadores é expressiva.
Para o simpósio de ANPUH de 2009 em Fortaleza, foram aprovados seis simpósios centrados em análises sobre religiosidades, nos quais deverão ser apresentados mais de cem trabalhos que, além dos temas já conhecidos, devem incluir comunicações sobre religiões de origem africana, espiritismo, pentecostalismo, outras e novas práticas religiosas. Todas as regiões de Brasil aparecem através de trabalhos, que apontam para grupos consolidados, que há tempo participam dos simpósios das regionais de ANPUH. Também os períodos estudados se diversificam acontecendo o mesmo com as abordagens teóricas e metodológicas. Em grande parte essas comunicações serão apresentadas por jovens historiadores, homens e mulheres, sendo que muitos deles não seguem em termos de fé as tradições religiosas que estudam. Se isto pode ser explicado como decorrência da criação de mais cursos de pós-graduação em História nas diferentes regiões do Brasil, aponta também para o que vimos insistindo: a manutenção do interesse pela temática religiosa nas novas gerações de historiadores e historiadoras, independente de crenças ou seguimentos religiosos.
Outro fator que pode explicar o interesse crescente dos pesquisadores sobre a área é a aparente contradição entre a diminuição gradativa do que poderíamos denominar religiões tradicionais no Brasil – o catolicismo, o luteranismo e a umbanda –, conforme veem apontando todos os censos realizados nos últimos anos, e o vertiginoso crescimento do sentimento de religiosidade expresso na busca pelo sagrado, pelo divino, pela espiritualidade. Tal fenômeno, afirmam os estudiosos, não se expressa apenas no Brasil, configurando-se como um fenômeno mundial. Daí a questão: constitui tal religiosidade um contraponto a um mundo cada vez mais racionalmente explicado, o fenômeno do “desencantamento do mundo” explicado por Max Weber, ou expressa uma insegurança ante a dimensão do ainda incognoscível? Ou do irracionalismo em suas formas mundanas que atravessa a crise estrutural da sociabilidade do capital? Confunde-se com a busca de um mundo mais humanista, ante a desagregação das relações societárias, ou trata-se da manifestação de uma espiritualidade inerente à condição humana?
Pois no mundo de hoje tal ressignificação do campo do religioso, cujo entendimento a pesquisa busca, se expressa em crenças, conceitos, valores e práticas cujas denominações são tanto difusas, quanto novas ou remontam à tempos muito remotos. Se no século XIX a perspectiva da separação entre o mundo privado e o público levou a institucionalidade religiosa a se confrontar com o Estado que se pretendia laico, naquele mesmo momento, já apontava o autor, tal perspectiva se punha como um falso teorema, pois o Estado era inerentemente religioso, se a população se mantivesse crente.
Tantos e tais dilemas são os que confrontam os analistas e, cuja produção, aqui no Brasil, nos remete a uma outra ordem de questões: há no Brasil um campo de produção do conhecimento que possa ser nomeado de História das Religiões? A produção historiográfica destes 20 anos aponta para um método que se possa diferenciar do utilizado na produção da História Cultural ou das abordagens feitas pelas Ciências da Religião? Os historiadores que trabalhamos com religião teríamos condições de apontar para especificidades que caracterizariam os percursos históricos das religiões entre nós? Interessa para os historiadores que pesquisamos sobre religiões no Brasil nos inscrevermos numa das tradições que se definem como História das Religiões?
Estas indagações, perseguidas a cada ano no contexto da disciplina História das Religiões no Brasil e na América Latina, no Programa de Pós-Graduação das Ciências da Religião da PUC, originaram, entre outras idéias, a de propor aos editores da Revista Projeto História, do programa de pós-graduação em História da PUC-SP, um número com o eixo História e Religiões. Estas perguntas a propósito de nosso campo historiográfico guiaram também a organização do Dossiê, adotando-se três critérios para selecionar os artigos: artigos gestados a partir de pesquisa ou reflexão teórica e metodológica de caráter historiográfico; artigos com reflexões teórico metodológicas que reflitam os diversos entendimentos que existem entre nós do que supõe fazer história das religiões; artigos que contemplem diversas religiões no Brasil, diversos períodos e diversas regiões.
Assim, no primeiro bloco deste número da Revista Projeto História reunimos quatro artigos com preocupações teórico metodológicas que apontam para duas tradições ou formas de abordar a História das religiões na Europa. Os artigos de Luiz Alberto Sciamarella Santanna, Virgínia A. Castro Buarque, Antonio Paulo Benatte, dialogam com autores franceses, em grande parte conhecidos dos historiadores brasileiros. Já, Adone Agnolin, examina as contribuições para o estudo das religiões da chamada escola de Roma ou escola italiana da História das Religiões, que muito pouco conhecida entre nós. Para auxiliar no entendimento desta história das religiões italiana, realizamos também uma entrevista (que abre o número) com Nicola Gasbarro, professor da Universidade de Udine e um dos atuais maiores expoentes dessa escola. Esperamos que estas contribuições possam auxiliar na reflexão teórica a propósito da História das religiões e se juntem a outros materiais já existentes.
Dando seqüência, outro conjunto de artigos foi escolhido por demonstrar como os historiadores estão trabalhando as diversas religiões e em distintos períodos. Dois deles, o de Juarez Donizete Ambires e o de Lina Gorenstein, se localizam no período colonial, o primeiro analisando as práticas e representações da sociedade na América Portuguesa no final do século XVII, através dos textos de dois jesuítas, padre Vieira e padre Antonil. Já Lina Gorenstein, examina, praticamente no mesmo período, a situação do criptojudaismo feminino no Rio de Janeiro. A seguir se encontra um conjunto de artigos sobre o século XIX e o início do século XX. O primeiro de Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti e Bárbara Maria Santos Caldeira que, servindo-se da imprensa, recuperam a visão que se tinha da procissão do Senhor Morto na Bahia do século XIX. Depois Roberto di Estefano, desde uma perspectiva ibero-americana, examina as dissidências religiosas e a secularização no século XIX. Ainda, Lyndon de Araújo Santos, também na perspectiva da América Latina, dá continuidade ao artigo anterior avançando no tempo, ao examinar os usos e sentidos conferidos ao protestantismo e a modernidade na transição do século XIX para o XX.
No artigo seguinte Arhur Cezar Isaia, trabalhando com fontes relativas à Umbanda, aponta para as relações ali evidenciadas entre ética e religião. Outros dois artigos abordam aspectos do catolicismo contemporâneo: o de Marcos Cezar de Freitas se refere à presença da religião na configuração do campo religioso brasileiro e o da Solange Ramos de Andrade trata da dimensão martiríal das recentes devoções populares. Finalmente José Otávio Aguiar e Rodrigo Wolff Apolloni, trabalhando também com o século XX, introduzem a consideração de outra expressão religiosa presente entre nós: o budismo, considerado através da influência nas artes marciais da tradição do mosteiro de Shaolin no Brasil.
Pretendemos suprir carências de artigos sobre religiões como o Candomblé e outros importantes universos religiosos, com as comunicações de pesquisa e as resenhas. Esperamos assim estar, pois, contribuindo para a consolidação e o fortalecimento da pesquisa em História das Religiões.
Fernando Torres-Londoño
(Organização)
TORRES-LONDOÑO, Fernando. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 37, 2008. Acessar publicação original [DR]
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