História e Psicanálise / Revista de Teoria da História / 2020
Ventiladas desde a década de 1960 e consubstanciadas em fins do século XX, as interrogações sobre a prática historiográfica e sua associação à narrativa histórica exigiram novo escrutínio do historiador. Tais interrogações visavam ao aprofundamento, de um lado, e à contraposição, de outro, às teorias estruturalistas, que, por sua vez, desafiavam as concepções discursivas vigentes. O abalo provocado às ciências humanas prescreveu ao historiador compreender de que forma suas práticas e narrativas incorporariam distintas linguagens, considerando, delas e nelas, o escopo ético e estético. Nesse cenário, emerge a preocupação, antes latente, com o lócus do processo de subjetivação. Derivou de tais movimentos uma significativa abertura do campo historiográfico à relação entre história e psicanálise.
Interessado na relação supracitada, o historiador Dominick LaCapra (2009) alertara para a associação fundante entre evento-limite e Holocausto, que determinou a configuração dos Trauma Studies. Com o passar dos anos, houve um alargamento do conceito de trauma, fazendo com que seu uso se estendesse a outros acontecimentos, tais como o terrorismo, a escravidão e o colonialismo. A história do trauma, a pós-memória e o pós-traumático impõem uma nova abordagem às definições de acontecimento e experiência, impactando, também, a percepção sobre o tempo e a temporalidade. Assim, parte da literatura histórica aborda as guerras do século passado como eventos exemplares – essa caracterização cabe, sobretudo, à Segunda Guerra, cuja memória eiva-se do mandato “nunca mais”. Nessa perspectiva hegemônica, embora não consensual, as experiências traumáticas, concebidas como inenarráveis, evidenciariam o ápice da impotência da linguagem.
Essas perspectivas reportam tanto ao vaticínio de Theodor Adorno (1988, 26) acerca da impossibilidade da poesia após Auschwitz quanto às considerações de Walter Benjamin sobre a perda da experiência em um mundo convulsivo. Antecipando-os no exame da subjetividade moderna, Sigmund Freud foi referência a ambos. Entretanto, há entre eles uma distinção essencial: enquanto Freud situa o trauma na origem da aquisição da linguagem e da subjetivação, Adorno e Benjamin o ancoram no contexto histórico. Essa distinção explicita uma dissonância entre história e psicanálise, no que se refere à temporalidade e à subjetivação. Para a psicanálise, o tempo é o do inconsciente, organizado segundo uma lógica associativa, onde acontecimento, evento e memória se embaraçam, sem prejuízo ao processo de subjetivação. Para a história, a causalidade tem um lugar central na estruturação da narrativa e, mesmo que a temporalidade possa tratar de subverter a periodização, o processo de subjetivação não se descola do contexto mediado pela cronologia.
Este Dossiê pretendeu abrigar artigos que problematizassem de que maneira a historiografia se beneficia da abertura à psicanálise, promovendo a interlocução entre esses campos e tratando-os interdisciplinarmente. Salvo engano, este é o primeiro dossiê organizado por uma revista acadêmica da área de História, cuja proposta é tratar das relações entre história e psicanálise, particularmente no âmbito teórico. O número de artigos recebidos superou a média de contribuições semestrais da Revista de Teoria da História e revelou tanto o interesse inequívoco pelo tema quanto uma, até então, contida disposição ao diálogo que nós, as organizadoras, entendemos urgente e fértil. Assim, é possível pressupor que a resposta recebida pela chamada expressa, de forma geral, o represamento da análise dessas interações na cena de publicações científicas no Brasil. Não deixa de indicar, mais especificamente, um sintoma relevante dos tempos em que vivemos: em contextos de crise e mudança, são alvissareiros novos olhares às experiências humanas, demarcando-as temporalmente. Se vivemos o inédito, é preciso criar o novíssimo. Isso exige promover o que os historiadores cultivam em sua prática: a revisita a conceitos assentes na tradição historiográfica e atentos ao tempo presente. No caso da relação entre história e psicanálise, a mobilização e a atualização de conceitos se tornam um trabalho delicado, cuidadoso e audacioso, considerando que o aparato conceitual com o qual se lida é clínico, mas também político. Esse último dado não deve causar temor, antes é um alerta que, entre outros, Elisabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista, não cansa de fazer em sua vasta obra, como se depreende do prefácio ao Dicionário da Psicanálise (1998, IX), redigido em conjunto com Michel Plon: “[este dicionário] propõe um recenseamento e uma classificação de todos os elementos do sistema de pensamento da psicanálise e apresenta a maneira pela qual esta construiu, ao longo do último século, um saber singular através de uma conceitualidade, uma história, uma doutrina original (a obra de Freud) permanentemente reinterpretada, uma genealogia de mestres e discípulos e uma política”. Nesse pequeno trecho, a autora desvenda o verdadeiro significado do trabalho revisionista: ter clara a relação temporal entre áreas, conceitos e doutrinas, e ao mesmo tempo não deixar escapar o conteúdo afetivo e político dos campos de saber.
Incitadas por uma constelação afetiva que serve aos conflitos do homem contemporâneo, as relações entre história e psicanálise – extensa e intensamente exploradas por autores como Peter Gay (1989) e Michel de Certeau (2011), para citarmos apenas dois historiadores – tornam-se, cada vez mais, requisitadas no campo historiográfico. Entendemos que essa atração, que não é nova, tem razão de ser porque os temas e objetos de estudo, permeados pela mudança rápida e pelo avassalamento imposto pela técnica ao tempo expandido da reflexão, têm de acertar as contas com a insuficiência de ferramentas e categorias tradicionais de compreensão, no interior do campo. Portanto, a importância da afluência desses textos, agora em dossiê, encontra-se nas possibilidades de pesquisa que apresentam, estimulando, esperamos, a imaginação, o desejo e a expertise de nossos leitores.
O artigo que abre este dossiê, intitulado “Só irmãos não basta ser, melhor é sermos amigos: as relações entre história e psicanálise”, de autoria de Hilário Franco Júnior (USP), nos apresenta ao diálogo entre o que o autor denomina como a mais antiga e a mais nova das ciências do homem. Nele acompanhamos as formas por meio das quais a colaboração entre os diferentes campos do conhecimento se realizou, ou busca se realizar. O artigo é uma leitura instigante, tanto para o leitor que procura se introduzir no tema de nosso dossiê quanto para aquele que já trabalha com as intersecções entre história e psicanálise.
Ronaldo Manzi Filho (FACMAIS) e Maria Letícia de Oliveira Reis (USP), em “O inesgotável e elegante trabalho de memória, que reconstrói, performa e elabora”, trazem ao debate a acepção psicanalítica de memória, articulada à filosofia de Benjamin, em sua relação com o esquecimento e a elaboração. O artigo suscita questões relacionadas às mudanças envolvendo a escrita autobiográfica. Interroga-se sobre como a “forma diário” adaptada às redes sociais implica uma distinção em nossa maneira de ser e de lidar com a história, problematizando, então, o discurso contemporâneo, permeado pela noção de sinceridade e pela exigência de satisfação imediata.
Maria Bernardete Ramos Flores (UFSC), em “A Angústia de Adão na América”, conecta Xul Solar e Ismael Nery por meio da novela Adan Buenosayres, de Leopoldo Marechal. Dessa maneira, percebe uma identidade artística entre os três artistas de vanguardas latino-americanas e o afeto agônico como parte da ansiedade cultural que se dá no plano psíquico da civilização ocidental. Nas palavras da autora: “a tônica do encontro fundou-se na arte marcada pela estética da angústia, de raiz cristã-adâmica-kierkegaardiana, própria da linguagem dos poetas e pintores que comunicaram o desassossego no mundo contingente, e desejaram transcender o tempo e o espaço, à busca do Paraíso perdido ou da infância da humanidade”.
Em “‘Nossos mortos têm voz’: notas clínicas e políticas sobre imagens e vozes”, Thales de Medeiros Ribeiro (UNICAMP) e Vanessa da Cunha Prado D’Afonseca (UNICAMP) elegem dois documentários de Carla Ianni – Mães (2013) e Apelo (2014) – como lugar privilegiado para articular conceitos psicanalíticos àqueles forjados no arcabouço da história ou da filosofia.
Pedro Ragusa (UEPG) e Alfredo dos Santos Oliva (UEL), no artigo intitulado “Subjetividade, Individuação e Escrita de Si: Aproximações teóricas entre Michel Foucault e Carl Gustav Jung”, relacionam os conceitos escrita de si e subjetividade autobiografada, associando campos teóricos e autores distintos, incitando o diálogo entre eles.
Breno Mendes (UFG) contribui para este dossiê com o artigo “Psicanálise, hermenêutica e o problema do sentido: Ricoeur leitor de Freud”. O autor se debruça sobre a leitura filosófica da psicanálise desenvolvida por Paul Ricoeur, especialmente na obra Da interpretação: ensaio sobre Freud (1965). A reflexão proposta nos conduz a examinar o problema do sentido, tendo em vista suas implicações para o fenômeno da história.
Diego Avelino de Moraes Carvalho (IFG), em “Da verdade historial: movimentos de confluência entre a teoria psicanalítica e a concepção arendtiana [funcional] de história”, objetivou estabelecer o encontro entre psicanálise, filosofia e história, trazendo discussões sobre a função do historiador e o estatuto de verdade para a filosofia e a psicanálise, mediante a mobilização de autores como Hannah Arendt, Sigmund Freud e Jacques Lacan.
Em “Metapsicologia sobre a força inconsciente do passado”, Augusto B. de Carvalho Dias Leite (UFES) apresenta as interpretações realizadas por Benjamin da psicanálise freudiana e da literatura de Marcel Proust. Assim, o autor nos mostra que Benjamin extrai lições metapsicológicas que definem sua leitura de Proust e da obra de Freud; ao mesmo tempo, defende a hipótese de que, ao fazê-lo, Benjamin apresenta uma metapsicologia própria.
“Michel de Certeau e a psicanálise: as estratégias do tempo e as fronteiras da história com a literatura”, de autoria de Robson Freitas de Miranda Junior (UFMG), é o artigo no qual são analisados textos presentes na coletânea História e psicanálise: entre ciência e ficção. Mostra como, em suas reflexões sobre a história e o fazer historiográfico, Certeau encontrou possibilidades de pensar novas temporalidades e problematizar uma teoria da narratividade, complexificando os estudos em torno do discurso histórico.
Aline Librelotto Rubin (USP), no artigo intitulado “No rastro historiográfico da psicanálise no Brasil: reencontrando a escrita e sua ficção”, expõe, desde a década de 1920, diferentes tradições e momentos dos estudos historiográficos da Psicanálise no Brasil, incluindo e situando a virada epistemológica da década de 1970, e propõe um retorno à “ficção teórica” de Freud, como definido pelo historiador Michel de Certeau.
Em “O excitante caudilho de Ramos Mejía e o desvairado meneur de Nina Rodrigues: raça e gênero nas interpretações sul-americanas da psicologia das massas”, Fernando Bagiotto Botton (UESPI) nos apresenta e discute duas perspectivas interpretativas da psicologia das massas, elaboradas anteriormente às leituras freudianas e publicadas pelo argentino José María Ramos Mejía, em Las massas argentinas (1899), e pelo brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, em As coletividades anormais (1898).
“Paranoia e História, patologia e verdade”, de Danilo Ávila (UNESP), é o artigo no qual é proposta uma abertura da história à psicanálise por meio do conceito de paranoia. Tal conceito, que remonta ao caso Schreber – acompanhado por Freud –, é brevemente trabalhado nas obras de autores como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Gilles Deleuze, Slavoj Žižek e Richard Hofstadter.
Contamos ainda como o ensaio de Evandro dos Santos (UFRN), “Por uma erótica da história: ensaio sobre possibilidades e limites nos diálogos entre história e psicanálise”. Nele, o autor problematiza as condições de interação entre o saber psicanalítico e a disciplina histórica, desenvolvendo o argumento de que, ao tornarem mais complexas tais relações, as categorias oriundas das obras de Freud podem auxiliar na recuperação de aspectos eróticos da experiência histórica e de suas formas de representação por diferentes sujeitos.
Por último, destacamos “Psicanálise e Epistemologia histórica”, entrevista realizada em 2018 por Luiz Sérgio Duarte (UFG) e Sabrina Costa Braga (UFG) com a professora Marcela Batán (UNSL), que toca em temas como as relações entre psicanálise, epistemologia e as ciências humanas em geral, além do efeito de normalização atual nas práticas da psicologia e da pedagogia, assim como a subjetividade em Foucault e o uso da psicanálise por Bachelard.
Referências
ADORNO, Theodor W. Crítica cultural e sociedade. In: ADORNO, Theodor W. Prismas. São Paulo: Ática, 1998.
CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
LACAPRA, Dominick. Historia y memoria después de Auschwitz. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2009.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Ana Lucia Vilela
Fabiana de Souza Fredrigo
Sabrina Costa Braga
VILELA, Ana Lucia; FREDRIGO, Fabiana de Souza; BRAGA, Sabrina Costa. Revista de Teoria da História, Goiânia, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]