Em História e narrativa: a ciência e a arte na escrita histórica, Jurandir Malerba, professor da UFRGS, reúne textos de importantes pesquisadores, filiados a diferentes áreas das Ciências Humanas, cuja temática nos convida a refletir em que medida a história se aproxima de um discurso científico e/ou artístico.
Resultado de uma disciplina ofertada no Programa de Pós-graduação em História da PUC-RS, o livro tem o mérito de trazer ao público que compartilha a língua portuguesa a tradução de estudos seminais para o campo da narrativa histórica, além de textos inéditos ou reeditados que evidenciam o reconhecimento e a competência de pesquisas produzidas por brasileiros no campo da teoria da história.
Considerando a questão da narrativa no conhecimento histórico, Malerba discorre sobre a necessidade de historiadores tomarem parte nesse debate que, do século XIX até a virada linguística dos anos 1960, esteve à cargo de filósofos e teóricos. Dentre os caminhos oferecidos por estes especialistas, o autor destaca as proposições que incitaram estudos em torno da narrativa histórica como um modo de explicação do passado e da narrativa histórica como um conjunto de considerações literárias e ficcionais acerca desse passado. No Brasil, afirma Malerba, a questão narrativa ainda tende a ser associada ao paradigma linguístico pósestruturalista, ou ainda, às perspectivas teóricas de pesquisadores como Hayden White e Michel Foucault. Embora importantes, estas abordagens não podem limitar os diferentes modos de lidar com a prática histórica. É o que veremos na apreciação dos trabalhos desta antologia.
Como demonstra Allan Megill, a escrita da história já era discutida em diferentes contextos antes do século XIX, quando a história se tornou uma disciplina profissional. Além da reivindicação de um estatuto científico, este momento também propiciou o surgimento da historiologia, “um discurso meta-histórico preocupado com o trabalho feito pelos historiadores” (p.35). Para o estudioso, esta ramificação da filosofia da história foi evidenciada com a influência das ciências naturais e do positivismo, abarcando, incialmente, três linhas: analítica (ciências nomotéticas); hermenêutica (filosofia da interpretação); e, idealista (ação e “construção” do passado). A mais atual destas orientações é a historiologia linguístico-narrativa que, por meio de diferentes abordagens, permite-nos uma compreensão da história pelos elementos que compõe sua escrita (tropos, enunciação, dentre outros).
Na concepção de Jörn Rüsen, a narrativa é fundamentada na “consciência histórica”, uma operação mental capaz de estruturar a experiência temporal para atender às necessidades de orientação no curso do tempo. Nesta perspectiva, não cabe uma diferenciação em termos de narração factual ou ficcional. Mais importante que isso, torna-se a perceber sua peculiaridade que, para o filósofo, consiste em 3 aspectos: relacionar-se à mediação da memória; unir as dimensões temporais pelo conceito de continuidade; e, estabelecer identidades de autores e ouvintes. Outra forma de distinção da narrativa histórica, segundo o autor, ocorre pela identificação de tipologias que caracterizam suas funções (tradicional, exemplar, crítica e genética). Estas tipologias não se excluem e preenchem condições necessárias para orientação da vida humana (afirmação, regularidade, negação e transformação).
Para Jerzy Topolski, a historiografia pode ser compreendida a partir dos elementos estruturantes da narrativa que, para além das regras lógicas, deve valorizar a inspiração estética do historiador. Sob este viés, a narrativa é entendida como uma “totalidade”, isto é, uma estrutura complexa e persuasiva na medida em que favorece a ligação entre enunciados e conteúdo. Na produção desta totalidade, o pesquisador deve “jogar” com as “informações básicas” disponíveis para que, assim, consiga transformar uma realidade imaginada em uma narrativa que possa ser recepcionada não apenas pelo próprio autor, mas também pelo público.
Conforme Luiz Costa Lima, a realidade que fundamenta a escrita histórica é baseada, justamente, na ficção. Para entender o grau de confiança que pode ser atribuído ao saber historiográfico é necessário diferenciar este elemento, cujo sentido dominante de ilusão, mentira ou falsidade é questionado pelo autor. Deste modo, Lima aponta dois tipos de ficção que, mesmo lidando com resultados imprevistos, operam de maneira diferenciada com os “vazios” da realidade. O primeiro é a “ficção interna” que, embora atue sobre a realidade não intenciona substituí-la. O segundo, abarcando também a historiografia, é a “ficção externa”, capaz de perscrutar fatos por meio de hipóteses que conduzem a explicações provisórias.
Novamente, a obra resenhada traz outra produção de Rüsen que, em certa medida, retoma as questões apontadas até o momento pelos pesquisadores citados. Ao reconsiderar o trabalho de Leopold von Ranke, Rüsen destaca a importância deste historiador não apenas em relação à atribuição de um caráter científico para a história, mas sobretudo pela valorização dos princípios da escrita histórica. Para Ranke, a força intelectual da filosofia e a força poética da arte são mediadas na história, constituindo um terceiro elemento. Mesmo não sendo revelado explicitamente, Rüsen sugere a presença de uma estratégia retórica que imprime à narrativa daquele um efeito estético. Segundo este autor, a observação é válida, caso consideremos a função de orientação da vida prática evidenciada na obra de Ranke.
Mudando a perspectiva dos estudos elencados até então, Nelson Boeira aprecia a importância da filosofia analítica que, não obstante controvérsias, incitou o debate acerca do papel da narrativa no conhecimento histórico. Este ensaio destaca o conceito de “verdade” tal como proposto por Arthur Danto e adianta algumas ideias que serão desenvolvidas, posteriormente, nos estudos de William Dray, como a noção de “explicação histórica”, e de Walter B. Gallie, sobre a “compreensão histórica”. Apesar da filiação teórica, é preciso mencionar que tais estudiosos não valorizam um modelo de história nomotético.
Sem negar a intrínseca relação entre história e narrativa, Dray é cauteloso ao analisar argumentos que tendem a afirmar que toda história deve ser construída em formato narrativo. Mais que isso, o autor discorda de que toda narrativa histórica contém explicações causais baseadas na conectividade de fatos acerca de um tema central. Em sua argumentação, Dray observa uma distinção entre “narrativas simples”, que relatariam “o que” aconteceu no passado, e “narrativas significativas”, que explicariam “por que” aquilo ocorreu, buscando com isso derrubar o discurso de que toda narrativa é, necessariamente, explicativa – como se a ausência de uma narrativa explicativa invalidasse o discurso histórico.
Parte das reflexões de Dray foram inspiradas na obra de Gallie que entende a “compreensão histórica” como fundamento da narrativa. Por meio desta concepção, Gallie associa a estrutura narrativa da história a “uma sequência de ações e experiências de um número de pessoas, reais ou imaginárias” (p.138), comparando-a, desta forma, à “estória”. Deste modelo, o autor se apropria de expressões como “acompanhamento”, “interesse” e “conclusão” para ressaltar que, na história, diferentemente de outras ciências, o caminho percorrido pelo leitor é muito mais importante do que o resultado da pesquisa em si. Logo, os elementos contingenciais evidenciados na trama narrativa conferem, não apenas “explicabilidade”, mas sobretudo, inteligibilidade e significado à história.
Tomando parte nesta discussão, a breve nota de Maurice Mandelbaum pode ser encarada como um alerta ao considerar a perspectiva analítica do debate. Para ele, os estudos que tendem a associar história e narrativa, seja pela valorização do fator teleológico na escrita da história ou pela (falsa) percepção de que a história atende a uma sequência linear de ações humanas, por exemplo, podem negligenciar o papel investigativo do historiador. Diferente desta vertente, os estudos que se aproximam de uma historiologia hermenêutica, idealista ou linguístico-narrativa contribuem para a valorização de sujeitos localizados não somente na narrativa em si, mas também fora dela. Este é o teor dos próximos capítulos inseridos na obra resenhada.
Ao analisar as contribuições de Michel Foucault para a história das ideias, Marcos Antônio Lopes destaca o valor do texto como testemunho. Ou seja, mais do que a compreensão de um autor e o contexto de produção de sua obra, o filósofo francês buscou ampliar a figura do leitor no processo de construção de sentidos do texto. Lopes observa, então, algumas das críticas atribuídas ao pensamento foucaultiano, acusado de dissolver a própria “essência” da história, a saber, “a noção de especificidade do tempo histórico e da singularidade da natureza de uma criação intelectual” (p.172). Foucault estaria substituindo, desta forma, a “influência humana” pela “intertextualidade inumana”, o que eliminaria não só o autor como também, a própria ideia de homem. Para Lopes, contudo, ao desvincular o discurso de seu locus de produção, o filósofo valorizava a “operação interpretativa” que confere ao leitor autonomia para decifrar o que o texto diz e não o que o autor pretendia dizer.
Sintetizando uma das facetas modernistas de Hayden White, Daniela Kern – única representante do gênero feminino desta antologia – analisa o pluralismo histórico localizado em sua obra. Para Kern, o viés crítico do pensamento de White “pretende recuperar os diferentes modos de construção do texto” a partir da valorização do autor e leitor (p.184). Ao retomar os estudos de retórica e poética aristotélica, a perspectiva teórica rastreada na obra do historiador denota a importância dos diferentes relatos acerca do passado, promovendo um conceito de história que assume a arte como método.
Na seara das contribuições linguístico-narrativa, Cláudio Pereira Elmir traz à tona um conceito capaz de aproximar as narrativas literária e histórica: o enredo. Para Elmir, este elemento é responsável pela própria dinâmica da narrativa e seu percurso, marcando, inclusive, a capacidade seletiva e imaginativa de um autor em sua construção textual. Considerando as contribuições de intelectuais como Paul Veyne, Hayden White e Paul Ricoeur, o autor ressalta a dimensão estética do trabalho do historiador; a classificação do discurso histórico como um processo de interpretação; e, também, a importância da “intriga” como elemento que permite o estabelecimento de contornos, limites e extensão ao trabalho historiográfico.
Trazendo uma preocupação com a hermenêutica, Hélio Rebello Cardoso Junior destrinça parte das transformações que conduziram esta ramificação da filosofia de uma perspectiva histórica para uma perspectiva da narrativa histórica aos moldes de Paul Ricoeur. Em um primeiro momento, o autor ressalta as contribuições historicistas, ligadas ao processo de cientifização da história, cujas questões recaíam sobre a interpretação e compreensão de textos escritos. Ao longo do século XX, sob a influência dos paradigmas marxista e dos Annales, a hermenêutica começou a ser marcada pela valorização da narrativa em detrimento da descrição, resultando assim, em uma perspectiva problematizante do texto. Por meio da narrativa, Ricoeur propõe uma hermenêutica para o conhecimento histórico, em que a “intriga” se torna um elemento catalizador do tempo e narrativa, favorecendo a “configuração” do mundo pelo autor e, finalmente a “refiguração” da experiência do tempo pelo leitor.
Para David Carr, a narrativa e os eventos por ela descrito são elementos contínuos. Ao colocar-se como opositor daquilo que chama de “teoria da descontinuidade”, o autor ressalta que a estruturação de uma narrativa e sua realidade ocorre dentro da ação humana. Deste modo, os significados que lhes são atribuídos compõem-se, não apenas de uma progressão de eventos sequenciais, mas sobretudo, da figura do narrador e do público que recepciona a narrativa. Para Carr, arte e vida se combinam e, por isto, é possível afirmar que histórias “são narradas por serem vividas, e vividas por serem narradas” (p.240). Embora sua definição de “realidade humana” possa estar relacionada às experiências e ações individuais, contrariando a perspectiva social da história, o autor considera que “tais relatos existem quando são articulados ou formulados (…) pela referência a um de nós que é aceito ou subscrito pelos demais” (p.246).
A discussão de Carr é ampliada. Ao trazer uma segunda contribuição deste autor, o livro nos proporciona entender o caráter “representacional” da narrativa histórica que, segundo o filósofo, é possível, quando consideramos não apenas seu aspecto cognitivo, mas também, ontológico. Nesta perspectiva, o autor lembra que, assim como o tempo humano, a narrativa também é estruturada “em totalidades que unem passado, presente e futuro”, favorecendo a organização de nossas “experiências e ações” (p.251). A narrativa é definida, assim, como “um modo de ser antes de ser um modo de conhecer” (p.252). Somente após esta consideração, Carr enfatiza o aspecto cognitivo da narrativa, para ele, diretamente associado ao trabalho do historiador. Sendo a cognição uma atividade humana, sujeita a determinações disciplinares e temporalmente localizada, a narrativa se torna uma “prática em construção” de representações inacabáveis da história.
Mas, afinal: a história é arte ou ciência? Ao retomar a clássica pergunta, Allan Megill apresenta uma nova contribuição para o debate desta antologia. Para ele, se até os anos 1960 as respostas foram previsíveis, a partir de então, a discussão se especializou, passando para o plano da teoria da história e, mais especificamente, da historiologia. Sobretudo com a diversificação do objeto, a história se fez mais “literária”. Embora não represente uma possibilidade de unificação entre as duas disciplinas, esta aproximação sugere uma oportunidade para os historiadores se atentarem à importância da retórica, do estilo e dimensão literária. Para Megill, tais elementos contribuem com os diferentes modos de apresentação que estão diretamente relacionados ao empreendimento histórico.
Aparentemente deslocado, já que a questão narrativa surge de maneira tangencial, o último trabalho desta antologia, de autoria de Carlos Fico, assinala problemas teóricos que tem incitado debates sobre a História do Tempo Presente. Um primeiro aspecto a ser observado é quanto a sua designação, podendo se referir tanto a uma especialidade como também a uma forma de reconfigurar a experiência temporal. Em sua historiografia, a variedade de fontes, sobretudo as fontes orais, tem evidenciado tensões entre a interpretação do historiador e a suposta parcialidade de seu testemunho. Tal questão, incita uma reflexão teórica por meio da qual é possível entender que o engajamento político e a pesquisa acadêmica estão entrelaçados na História do Tempo Presente. Juntamente com a ideia de perspectiva, ponto de vista peculiar que conduz o pesquisador a lidar com questões delicadas, todos estes problemas devem ser encarados como “especificidades” da História do Tempo Presente.
Mesmo apresentando um rico debate, a obra não tem a pretensão de abranger toda a complexidade que envolve a questão da narrativa histórica – nem poderia. Embora seus textos nos ajudem a compreender em que medida a história se aproxima de um discurso científico ou mesmo artístico, a decisão final caberá ao leitor. Isto porque, não há uma ideia consensual entre os capítulos articulados nesta antologia. Talvez esse seja o mérito da obra: apresentar ideias contraditórias que evidenciem, por um lado, a amplitude teórica da narrativa para os jovens graduandos ou pós-graduandos e, por outro, estimulem os experientes pesquisadores a saírem de sua zona de conforto, dialogando com autores não necessariamente ligados às suas perspectivas, científicas ou artísticas. Enfim, a obra pode ser encarada como um convite aos historiadores e historiadoras a construir uma reflexão sobre sua prática escrita
Aaron Sena Cerqueira Reis – Doutorando em Educação pela USP. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Graduado em História e Mestre em Educação pela UFS. E-mail: aaron_sena@hotmail.com
MALERBA, Jurandir (Org). História e narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: REIS, Aaron Sena Cerqueira. A narrativa histórica em questão. Ponta de Lança, São Cristóvão, v.12, n.23, p.220-226, jul./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
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