História e música na América Latina: interlocuções historiográficas | História e Cultura | 2021
A proposição do dossiê “História e Música na América Latina: interlocuções historiográficas” foi feita com o intuito de ampliar as oportunidades de publicação acadêmica nos estudos que articulam Música e História. Nesse quesito, a revista História e Cultura, da UNESP Franca, tornou-se uma importante parceira, proporcionando um novo espaço depois de ter lançado um dossiê semelhante em 2013.
Passados oito anos, inúmeras pesquisas no Brasil e no exterior dedicaram-se a aprofundar as diferentes dimensões da relação entre História e Música, sempre envolvida nas tensões entre as especificidades da linguagem musical e as características dos contextos históricos. Desde então, novas fontes, temas e abordagens ampliaram consideravelmente a ocupação desse território híbrido entre a musicologia e a historiografia.
Como exemplo dessa diversidade, apresentamos neste dossiê nove textos que demonstram diferentes aspectos desse território: desde reflexões teórico-metodológicas centrais para circunscrever as bases epistemológicas das abordagens entre História e Música, passando pela análise do jazz brasileiro e dos primórdios do rock no Brasil e na Argentina, até o estudo de artistas específicos e a relação de suas obras com os contextos culturais e políticos no qual estavam inseridos.
No que se refere às reflexões teórico-metodológicas, contamos com a dupla colaboração de André Fabiano Voigt, autor de um artigo próprio e de uma tradução sobre texto de Jacques Ranciére. O filósofo francês, em seu texto “Autonomia e Historicismo: a falsa alternativa” apresenta relações possíveis estabelecidas entre a música e regimes de historicidade para questionar a (falsa) oposição entre autonomia e historicismo na relação entre a arte musical e a história. Nele, o autor argumenta sobre o impasse entre a proposição de autonomia da obra de arte musical e os limites de pensar nessa condição em um contexto no qual a assunção dessa autonomia implica na diluição das fronteiras entre o que pode ou não ser considerado arte.
No artigo “Música e Política: paradoxos da História Social da Música”, André Fabiano Voigt problematiza algumas concepções que estruturam abordagens da sociologia da música e da história social da música, especialmente as de Theodor Adorno e Françoise Escal. Argumenta sobre a “instabilidade entre as esferas do inteligível e do sensível” na música, apresentando como a suposta imanência do conteúdo ideológico na forma artística esconde um regime de historicidade voltado para uma visão “evolutiva” da história, voltada para um progresso determinado. A partir das reflexões de Jacques Rancière sobre os “regimes de identificação da arte” propõe outras leituras possíveis sobre a problemática da historicidade na música.
No primeiro artigo do dossiê tematizando um caso concreto, Renan Branco Ruiz analisa a música instrumental brasileira em “Jazz no Brasil ou jazz brasileiro? Um balanço histórico sobre o jazz durante o longo modernismo (1920-1980)”. Nesse texto, o autor examina as relações do jazz no Brasil com diferentes propostas nacionalistas do modernismo brasileiro, investigando também como a música instrumental, tema importante nesse processo, acabou sendo relegada na historiografia e na crítica sobre a música popular feita no Brasil. Aborda essa relação em três recortes cronológicos: jazzbands e big-bands entre 1920 e 1950, que seriam o exemplo de jazz no Brasil; bossa nova e sambajazz entre 1950 e 1960, início da formação de um jazz brasileiro; e a música instrumental a partir dos anos 1970, com Hermeto Paschoal, Egberto Gismonti e Vanguarda Paulista Instrumental, que consolidaram o jazz brasileiro a partir da centralidade do improviso e da pluralidade rítmica.
No texto “Venga a bailar el rock and roll: a formação do mercado da música jovem na Argentina entre os primeiros Rocker’s y La Nueva Ola (1956-1964)”, Karin Helena Antunes de Moraes aborda os principais eventos formadores de público e de artistas que influenciaram no desenvolvimento do rock and roll na Argentina, identificando contextos nos quais as expressões corporais, as práticas musicais e as manifestações contraculturais, advindas dos Estados Unidos e Inglaterra, tiveram papéis determinantes na gênese e consolidação do gênero no país. Através de um instigante debate historiográfico, a autora problematiza o processo de consolidação do rock castelhano, na qual inclui, por exemplo, o papel desenvolvido pelas gravadoras na construção de um circuito de música jovem, com ênfase nas permanências e rupturas que organizaram as sociabilidades juvenis em torno do rock argentino.
Também analisando os primórdios do rock, mas no caso brasileiro, Luís Felipe Fernandes Afonso analisa as relações entre música, rock e juventude no artigo “Para além da pré-história: repensando a primeira geração do rock no Brasil (1955-1964)”. O autor oferece uma abordagem elucidativa relacionada ao período de gestação da cultura jovem, sobretudo, no eixo Rio-São Paulo, aliada ao gênero musical em questão. Ao reivindicar e manifestar a necessidade dos estudos das relações entre a história e música ultrapassarem os limites impostos pela simples relação do significado dos sons e das letras escritas das canções, de forma abreviada, o autor aborda questões referentes a performance – bandas e danças – bem como suas formas de divulgação, pelas quais o gênero musical gradativamente acabou obtendo prestígio e aceitação, partindo das salas de cinema, alcançando as estações de rádio (além da abertura de casas de shows e publicações em formato de revistas especializadas). Nesse sentido, oferece à música, e particularmente ao rock executado e produzido no Brasil nos anos 1950, um status de mediador social, que regulou e influenciou a juventude da época, atuando como uma relevante força sociocultural.
Em “Contracultura, misticismo e desatino em ‘Um salto no escuro’ de Jorge Mautner”, Guilherme Araujo Freire analisa o disco homônimo lançado por Jorge Mautner em 1974 e suas relações com a contracultura e experimentalismos formais que ampliaram o fazer canção no Brasil e tornaram-se um contraponto aos conservadorismos culturais e políticos na época da ditadura militar brasileira. Além disso, problematizando as noções de “marginal” e “maldito” associadas a músicos como Mautner, oferece uma interpretação sobre os sentidos da atuação do artista em um momento de tensão entre a consolidação da indústria fonográfica e a luta por autonomia estética e política.
Também investigando a atuação de músicos que fizeram contrapontos à ditadura brasileira, Caroline Gonzaga e Soraia Gatti analisaram a trajetória dos Novos Baianos em “Desbundar é um ato político: Novos Baianos e a ditadura militar brasileira”. Ao problematizar as críticas feitas na época sobre o “desbunde”, tachado de “alienado”, as autoras demonstram como essa categoria, pensada através de referências teóricas embasadas em Pierre Ansart e Jacques Rancière também se constituía em uma forma de contraponto político ao conservadorismo e ao autoritarismo daquele contexto histórico.
Ao abordar as relações entre música e política na Argentina contemporânea, Vanessa Morais Dornelles utilizou a noção de “Intelectual artista” em “As canções de León Gieco e a luta por memória, verdade e justiça na Argentina (1983-1992)”. Nesse artigo, a autora investiga como o cantautor argentino León Gieco articulou sua produção artística ao processo de redemocratização da Argentina. Nesse sentido, demonstra que a “canción de propuesta” do músico estava relacionada não apenas à resistência contra a ditadura mas também como ação cultural e política na construção de novos parâmetros democráticos no país vizinho.
Em “‘Por amor às causas perdidas’: os Dons Quixotes de Cervantes e Gessinger ao messianismo de Walter Benjamin nas ‘Teses sobre o conceito de História’”, Wendell Guedes da Silva apresenta uma interpretação multifacetada da crítica ao mundo burguês e suas representações quixotescas a partir da obra de Miguel de Cervantes, de uma composição de Humberto Gessinger e das reflexões de Walter Benjamin. Articulando análise literária, musical e de teoria da história problematiza formas de imaginação de um mundo mais justo através da arte e do pensamento crítico.
Através dos exemplos que integram este dossiê podemos vislumbrar diversos caminhos das reflexões teórico-metodológicas e dos estudos de caso que marcam o estado atual das pesquisas em História e Música no Brasil. Esperamos que pesquisadores da área e demais interessados façam uma boa leitura e um bom proveito das contribuições ora publicadas.
Saudações históricas e musicais!
Organizadores
Icaro Bittencourt
Leandro Braz da Costa
Referências desta apresentação
BITTENCOURT Icaro; COSTA Leandro Braz da. Apresentação. História e Cultura, v.10, n.2, p.11-14, dez.2021. Acessar publicação original [DR]