História e Música | ArtCultura | 2004
Foi-se o tempo de uma História enclausurada em si mesma, às voltas apenas com seus objetos tradicionais. Com a desmontagem de muitos dos andaimes nos quais ela se apoiava, a cada dia mais e mais se perde a nitidez dos contornos fixos. Um número crescente de historiadores, não mais presos às cadeias narrativas e às temáticas mais ou menos convencionais, lançam-se, por vezes até com sofreguidão, à procura de outros territórios a serem mapeados. Ao tatearem caminhos pouco ou nada explorados, alargam as margens do possível e valorizam novos objetos, o que nem de longe deve desestimular a retomada de temas tornados clássicos.
É aí que se inscreve este dossiê. Nele música e História se dão as mãos. Até um período relativamente recente, os estudos em torno da música constituíam um objeto marginal, menos, é claro, para os especialistas de seu campo de incidência específico. Já há algum tempo, porém, assiste-se à ampliação de seu raio de alcance. Eles vêm conquistando, aos poucos, o seu espaço na academia. Historiadores e cientistas sociais, em particular, acabaram se beneficiando do diálogo entretido com profissionais de outra procedência, incluídos aqueles de formação estritamente musical.
Um dossiê como este oferece um testemunho vivo da interação e colaboração entre distintos segmentos do mundo universitário e, em especial, entre pesquisadores da canção popular. Os textos aqui apresentados são assinados por estudiosos de áreas como História, Ciências Sociais, Letras e Música. Obviamente, o dossiê poderia abarcar profissionais de outros domínios acadêmicos. No entanto, essa amostragem é o bastante para dizer do esforço transdisciplinar que envolve intelectuais que ocupam, institucionalmente, lugares diversos.
ArtCultura já acolheu em suas páginas trabalhos que entrecruzaram História e música, tais como os de autoria dos historiadores Maria Izilda Santos de Matos e Marcos Napolitano. Agora a revista amplia o leque de colaboradores e se abre para pesquisadores de outros campos do saber acadêmico. Cremos que este investimento na diversidade só pode render bons dividendos aos leitores.
Dois artigos que suscitam questões de ordem mais geral dão início ao dossiê. Seu foco são problemas de natureza teórico-metodológica com que se deparam todos quantos trabalham com registros musicais. Cláudia Neiva de Matos discute as operações classificatórias que permitem o enquadramento dessa ou daquela canção popular sob a rubrica desse ou daquele gênero. Ao transitar entre as contribuições dos estudos literários e da música popular brasileira, a autora põe em evidência o caso do samba e do samba-canção para acentuar as dificuldades na demarcação dos gêneros musicais. Adalberto Paranhos, por sua vez, deixa à mostra as precauções metodológicas que se deve ter quando se estuda a canção popular. Recorre principalmente à análise de uma mesma composição, regravada em momentos diferentes, para concluir que, como artefato cultural, as canções não são dotadas de um sentido fixo. Antes, comportam significados errantes que se atualizam ao sabor de conjunturas específicas e da performance de sujeitos históricos diferenciados.
Direcionando seu olhar para situações particulares, dentro do variado espectro da música popular, seguem-se mais quatro artigos. Idelber Avelar elege como ponto de partida Minas, Milton Nascimento e o Clube da Esquina para empreender uma viagem que o conduz de volta a Minas, ao boom do heavy metal na cena musical belo-horizontina e o transporta mundo afora nas asas do Sepultura. Em meio a isso, cruza música e política para falar da perda da marca oposicionista da obra de Milton e da sua “tancredização”, enquanto, na outra margem, a produção artística do Sepultura o leva a trilhar outros percursos que, ao se conectarem com as formas musicais existentes no Brasil, ressaltam expressões marginais, “primitivas” ou regionalizadas. Daí ao texto de Santuza Cambraia Naves é um passo. Nele, embora o objeto de análise seja outro, também se anuncia uma ruptura com um certo modelo emepebista. A autora se preocupa em demonstrar como o rap, tanto no plano discursivo quanto no âmbito musical, rompe, na prática, com a categoria de Estado-nação. No seu lugar ganha corpo a idéia de comunidade. Esta corresponderia a um corte transversal feito com base na trajetória do negro, sem se confinar a espaços geográficos nacionais estabelecidos.
Quando o assunto diz respeito aos negros, sua música e sua história, o nome de Nei Lopes é freqüentemente lembrado. Militante da causa dos afrodescendentes, ele, uma vez mais, presta o seu depoimento, calcado em suas pesquisas, sobre a presença africana na música popular brasileira. Num dossiê plural e pluralista, no qual outros autores vislumbram novos influxos trazidos à canção que se produz no Brasil, ele deplora a “globalização do gosto” e a “desafricanização” da música popular brasileira, como fica patente no desabafo contido no final de seu artigo.
Matéria que pouco freqüenta a academia, a “música sertaneja” também tem vez neste dossiê. Quem responde por ela é Martha Tupinambá de Ulhôa. Depois de dar ouvidos a artistas, especialistas e fãs, ela se propõe reexaminar os escritos sobre esse gênero, e toma como referência a recepção a esse estilo de música em Uberlândia, na primeira metade da década de 1990. Busca, para tanto, conjugar aspectos musicológicos a outros de extração sociocultural.
Por fim, a questão do nacional, que, de maneira direta ou oblíqua, atravessa vários destes textos, é revisitada e recolocada no campo da música erudita. A partir de Mário de Andrade e das propostas do modernismo nacionalista, Arnaldo Daraya Contier percorre o tema desde os tempos da Belle Époque, no Brasil. E nos ajuda a entender o sentido da defesa da “independência cultural” do país, numa época em que se acreditava que poderíamos aspirar à condição de “universais”, sendo “nacionais”.
Que os leitores tirem bom proveito deste dossiê, são os votos da equipe editorial de ArtCultura. Certamente não pararemos por aqui. A revista continuará a abrigar contribuições que retomem ou expandam em novas direções os trabalhos que estreitem os laços entre História e música. Adalberto Paranhos Organizador do dossiê
Organizador
Adalberto Paranhos
Referências desta apresentação
PARANHOS, Adalberto. A história entre sustenidos e bemóis. ArtCultura. Uberlândia, v.6, n. 9, jul./dez. 2004. Acessar publicação original [DR]