“O século XX foi a era da classe trabalhadora”, lembrou recentemente o sociólogo sueco e professor da Universidade de Cambridge, Goran Therborn. Para ele, foi nesse período que, em escala global, “pela primeira vez, as pessoas que trabalham e que não têm propriedade tornaram-se uma força política fundamental”.1 Também foi assim no Brasil. Se os legados seculares da escravidão e os impactos das imensas assimetrias econômicas e exclusão política marcaram a “questão social”, também é possível dizer que os embates contra essas desigualdades foram decisivos para a construção de uma linguagem de classe e de valorização do mundo do trabalho que colocaria os setores populares no centro da arena política ao longo daquele século.
É verdade que os sindicatos e as movimentações coletivas dos trabalhadores e das trabalhadoras têm sido, desde há muito, objeto de escrutínio e análise acadêmica. Embalada pelas ideias de modernização — entendida como urbanização e industrialização —, a pioneira sociologia paulista dos anos 1950 e 1960, por exemplo, teve no sindicalismo e na formação social da classe operária alguns dos seus principais objetos de estudo.2 O impacto do golpe de 1964, articulado segundo muitos de seus perpetradores, contra uma suposta “República Sindicalista” que dominaria o país, estimulou uma série de avaliações de estudiosos, em particular cientistas políticos, interessados nos potenciais limites e deficiências dos chamados sindicatos “populistas” instaurados na “Era Vargas”.3 Por sua vez, a eclosão de uma onda grevista e do chamado “novo sindicalismo” que marcaria a redemocratização do país no final dos anos 1970 geraria uma enorme onda de interesse e estudos sobre os trabalhadores e movimentos sociais, onda essa bastante influente nas ciências sociais brasileiras ao longo dos anos 1980.4
E foi justamente no contexto da redemocratização do final dos anos 1970 e início dos 80 que o trabalho tornou-se um tema específico de análise por parte dos historiadores. Como um campo disciplinar específico, a história do trabalho é relativamente recente no Brasil. De um lado, devido a um certo tradicionalismo e conservadorismo da área, de outro a uma certa “divisão de trabalho” que impunha uma cronologia distante para os objetos de suas pesquisas, os historiadores, até a década de 1970, pouco interessados estavam nos mundos do trabalho. Até aquele momento os estudos sobre a história dos sindicatos e das relações trabalhistas haviam sido esmagadoramente escritos por sociólogos e cientistas políticos. Mesmo a história da escravidão não era percebida como a história do trabalho. Uma combinação curiosa entre o marxismo ortodoxo, o funcionalismo e as teorias da modernização e da dependência compunham o paradigma dominante nos estudos sobre a trajetória dos trabalhadores no país.
Este cenário mudou a partir do final da década de 1970. Um grupo de historiadores na recém-criada Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) seria o epicentro de iniciativas e discussões acadêmicas e políticas que levaram a uma abordagem mais sofisticada da história do trabalho, resultando em maior respeitabilidade acadêmica e institucionalização. Esta nova geração de historiadores enfatizou a necessidade de pesquisas empíricas, desafiando uma tradição acadêmica ensaística de longa data no Brasil, mesmo em estudos históricos. Não é de admirar que esse grupo de intelectuais tenha sido responsável pelo estabelecimento do Arquivo Edgard Leuenroth (em homenagem a um importante líder sindical do início do século XX cujo imenso acervo pessoal foi a base inicial na América Latina).5
Certamente, a conjuntura política do país naquele momento afetou a produção acadêmica e influenciou, em grande medida, a agenda de pesquisa dos historiadores do trabalho. O papel fundamental dos trabalhadores, do sindicalismo, dos movimentos sociais e das novas demandas e da organização dos grupos subalternos no processo político, desde então, tornou cada vez mais claro que a história do trabalho brasileira não poderia continuar sendo escrita da mesma forma e que questões complexas, tal como agência, cultura popular, construção do Estado e formação da classe trabalhadora, deveriam ser drasticamente reavaliadas.
Esse cenário ajuda a explicar a recepção tardia, mas muito entusiasmada, da chamada historiografia marxista britânica, em particular das obras de Edward P. Thompson, cujo acento na experiência e agência dos trabalhadores dialogava diretamente com as expectativas e interesses daquela geração. É verdade que os estudos de autores como Michel Foucault e Cornelius Castoriadis, com suas diferentes críticas às ortodoxias da análise do mundo social (em particular ao marxismo) e suas ênfases nos mecanismos de poder, dominação e nas (im)possibilidades de ação autônoma dos setores populares também foram bastante influentes naquele período.
A partir da década de 1990, enfrentando os tempos difíceis do neoliberalismo e a crise de paradigmas analíticos sintetizada na expressão “pós-modernidade”, a historiografia do trabalho no Brasil teve momentos de expansão e retração, otimismo e pessimismo, mas consolidou-se como um campo de estudos muito produtivo e independente das ciências sociais, apesar da continuidade de importantes diálogos interdisciplinares. Ao mesmo tempo, novas influências teóricas — como os debates da história cultural, da micro-história italiana e da história oral —, contribuíram para uma renovação teórica e metodológica e para a diversificação dos temas de pesquisa.
Em 2001, este impulso levou à criação de uma seção (grupo de trabalho) para o estudo da história da classe trabalhadora na Associação Nacional de Historiadores (ANPUH). O grupo foi nomeado Mundos do Trabalho como referência a Eric Hobsbawm, na tentativa de enfatizar uma espécie de perspectiva plural, inclusiva e “ecumênica” em relação ao que a história do trabalho deveria ser. Esta rede de historiadores tem procurado estar aberta à análise de todos os aspectos da experiência da classe trabalhadora em qualquer momento histórico, em vez da abordagem mais tradicional que tendia a reduzir o escopo da história do trabalho aos assalariados, em particular os operários industriais do sexo masculino organizados politicamente e representados por sindicatos.
Por diversos critérios, é possível avaliar que o grupo Mundos do Trabalho é um dos maiores e mais ativos GTs da ANPUH. Organiza regularmente congressos nacionais e internacionais com debates intensos e sofisticados, contando com a participação, de estudantes de pós-graduação e recém doutores. Ao mesmo tempo, o grupo publica a revista Mundos do Trabalho, que se tornou uma referência nacional e internacional na área. Como uma espécie de guarda-chuva institucional informal, o GT Mundos do Trabalho, nas últimas duas décadas, tem estimulado as novas gerações de historiadores a desenvolver o campo para temáticas até então inéditas ou pouco exploradas, como as conexões entre o trabalho escravo “livre” e trabalho “livre”, relações raciais e de trabalho, trabalho “informal”, trabalhadores rurais e questões de gênero, entre outros.6
A historiografia recente também trouxe novas luzes para tópicos mais “clássicos”, como as greves, o sindicalismo, a participação política e o impacto das políticas trabalhistas e do direito do trabalho na redefinição das estratégias de luta dos trabalhadores por seus direitos e a construção da cidadania. Ela também expandiu o escopo geográfico dos estudos, originalmente confinados às principais áreas industriais (particularmente São Paulo e Rio de Janeiro), oferecendo uma imagem muito mais ampla e complexa da diversidade regional que caracteriza o Brasil. Também, o uso de novas fontes, como os arquivos da polícia social e política (abertos ao público durante a década de 1990), bem como documentos judiciais e o uso extensivo de entrevistas de história oral, contribuíram para a ampliação das análises realizadas nos últimos anos.
Este rico momento da história do trabalho brasileira alcançou destaque nos debates transnacionais do campo. Nos últimos anos, a história do trabalho e da classe trabalhadora brasileira tem sido comumente mencionadas (geralmente ao lado das historiografias do trabalho indiana e sul-africana) como um caso bem sucedido da chamada História Global do Trabalho. Exemplos da historiografia do trabalho brasileira, particularmente aqueles que desafiam as fronteiras tradicionais entre trabalho “livre” e trabalho escravo, conectando a história da classe trabalhadora com a história da escravidão, são frequentemente citados nas narrativas que procuram mostrar o “estado da arte” deste campo de estudos em nível internacional.7
Como resultado, há uma maior internacionalização dos especialistas brasileiros que participam de conferências e de seminários internacionais com mais frequência. A publicação de artigos de brasileiros nas principais revistas acadêmicas da área também aumentou. Mais importante ainda, houve um esforço coletivo para tornar a história do trabalho brasileira mais “global”. As conexões e as redes acadêmicas se expandiram para além das ligações tradicionais com os Estados Unidos e a Europa. Nos últimos anos houve uma crescente presença de historiadores da América Latina, da Índia e da África nos eventos do GT Mundos do Trabalho, assim como a publicação de artigos sobre essas regiões no Brasil. Além disso, projetos de pesquisa com uma perspectiva comparativa e transnacional ganharam terreno entre os brasileiros e tem havido um grande interesse em torno das discussões metodológicas e teóricas sobre a história do trabalho global.
No entanto, ainda são grandes os desafios desse campo de estudo. É, em alguma medida, paradoxal que este grande avanço intelectual nessa área ocorra em um momento de crise da linguagem do trabalho no espaço público e das organizações políticas construídas a partir dessa linguagem e dessa identidade. O futuro do trabalho e dos trabalhadores parece estar em xeque, num ambiente marcado pela precarização, pelo desemprego e por um discurso pautado pelo “empreendedorismo” popular. No caso brasileiro, é evidente o ataque aos direitos trabalhistas e às organizações dos trabalhadores. A recente extinção do Ministério do Trabalho é um exemplo significativo do não-lugar em que os mundos do trabalho são colocados na atualidade. Pensar e analisar o passado do trabalho e dos trabalhadores neste cenário coloca novos e difíceis desafios.
Do ponto de vista “geopolítico”, é importante afirmar que, apesar de sua recente internacionalização, a história do trabalho brasileira permanece, de alguma maneira, pouco sofisticada e “nacionalista”. Há muitas razões para isso. Entre elas, o insularismo imposto, de certa forma, pela língua, um nacionalismo acadêmico resiliente e o fato de que ainda há uma enorme concentração de estudos nas duas principais e tradicionais regiões econômicas e políticas tradicionais do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Portanto, há espaço e, de fato, uma grande demanda de pesquisa em outras regiões dentro das fronteiras do próprio Estado-nação.
Além disso, há um sentimento geral de que, apesar dos intercâmbios internacionais e do aumento da circulação de trabalhos, a divulgação dos estudos e dos ricos debates da história do trabalho no Brasil ainda são relativamente tímidos. Na verdade, a agenda da história do trabalho global ainda é estabelecida principalmente pela academia, instituições e periódicos dos países do Norte global. Muitos historiadores brasileiros acreditam que suas contribuições para as principais discussões em torno da história do trabalho devem e podem ir muito além de casos e exemplos “interessantes”.
Em termos temáticos, apesar dos avanços, os debates raciais e de gênero demandam ainda um enorme esforço de pesquisa e de reflexão na área, para ficar em dois exemplos particularmente importantes que têm sido bastante debatidos na área.8 Também, ainda, há lacunas cronológicas e geográficas que só recentemente começaram a ser enfrentadas. Sabemos muito pouco, por exemplo, sobre as experiências dos trabalhadores durante o chamado “milagre econômico” dos anos 1970 ou sobre o trabalho indígena no país, para encerrar pouquíssimos exemplos.9
Por fim, a historiografia do trabalho tem tido dificuldade em incorporar suas análises, descobertas e debates na narrativa geral sobre a história brasileira. De uma maneira geral, as visões sobre o lugar e o papel dos trabalhadores na trajetória da nação ainda são bastante tradicionais e conservadoras. Apesar de iniciativas importantes de divulgação científica, história pública e diálogo com o ensino de história, as contribuições da historiografia do trabalho para novas sínteses históricas ainda são demasiadamente tímidas.10
Não por acaso, várias das questões e debates mencionados acima aparecem com destaque nos artigos deste bem vindo dossiê temático da revista Ars Historica intitulado “História do trabalho e dos trabalhadores: dimensões políticas, econômicas e sociais”. Os textos tratam de uma miríade de temas e contextos: trabalhadores/a entre a repressão, a vigilância e o duro cotidiano laboral nos anos do “Brasil Grande” da ditadura militar; os processos de construção de gênero entre as trabalhadoras de um empreendimento industrial no Sul do país; o trabalho escravo analisado em torno de suas especialidades e “qualificações”; o clássico tema da relação entre os trabalhadores e as lideranças políticas reatualizado para o contexto local da cidade do Rio de Janeiro nos anos 1930; dentre outros. A qualidade das análises, diversidade das temáticas e a pluralidade de abordagens são mais uma demonstração da vitalidade e do potencial da historiografia do trabalho brasileiro neste momento tão decisivo de nossa história.
Notas
1 Therborn, Goren. “Class in the 21st century”, New Left Review, n. 78, 2012.
2 Destacam-se as obras de Juarez Brandão Lopes, Fernando Henrique Cardoso, Leôncio Martins Rodrigues, Luis Pereira, entre outros. Para uma análise dos trabalhos dessa geração ver Sader, Eder, Paoli, Maria Célia e Telles, Vera Silva. “Pensando a classe operária. Pensando o imaginário acadêmico”, Revista Brasileira de História, vol. 3, n. 6, 1983.
3 O autor mais influente e inspirador dessa perspectiva foi Weffort, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. Para diferentes perspectivas críticas da obra de Weffort ver French, John. O ABC dos operários: conflitos e alianças de classe em São Paulo, 1900-1950. São Paulo-Hucitec/São Caetano do Sul-Prefeitura Municipal de São Caetano do Sul, 1995; Gomes, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Vértice, 1988; Ferreira, Jorge (org.). O populismo e sua história. debate e crítica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001; e o número especial sobre populismo e trabalhismo nos Cadernos AEL (Campinas, vol. 11, n.21/21, 2004), organizado por Negro, Antonio Luigi.
4 Para um excelente balanço sobre a produção de estudos nesse período ver Ladosky, Mario H. e Oliveira, Roberto Véras de. “O ‘novo sindicalismo’ pela ótica dos estudos do trabalho”, Mundos do Trabalho, vol. 6, n. 11, 2014.
5 Ver a entrevista realizada por Paulo Fontes e Francisco Macedo com Michael Hall, um dos protagonistas deste processo, na revista Estudos Históricos vol. 29, n. 59, 2016.
6 Para um ensaio bibliográfico que avalia aspectos importantes dessa produção ver Chalhoub, Sidney e Silva, Fernando Teixeira. “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”. Cadernos AEL, v.14, n.26, 2009.
7 Para uma avaliação recente da relação entre a história do trabalho brasileira e a história global do trabalho ver o número especial da International Review of Social History (special issue 25, 2017) organizado por Paulo Fontes, Alexandre Fortes e David Mayer. Ver, em particular, o artigo introdutório escrito pelos três organizadores.
8 Ver, por exemplo, Nascimento, Álvaro Pereira. “Trabalhadores negros e ‘paradigma da ausência’: contribuições à história social do trabalho. Estudos Históricos vol. 29, n. 59, 2016 e Popinigis, Fabiane e Terra, Paulo. “Classe, raça e história social do trabalho no Brasil (2001-2016). Estudos Históricos vol. 32, n. 66, 2019.
9 Ver Fontes, Paulo e Corrêa, Larissa. “As ‘falas de Jerônimo’: trabalhadores, sindicatos e a historiografia da ditadura militar”. Anos 90 vol 23, n. 43, 2016 e o dossiê especial da revista Mundos do Trabalho (vol. 6, n. 12, 2014) intitulado “Trabalho, política e experiências indígenas.
10 Um exemplo de iniciativa na área de divulgação científica e história pública no campo da história social do trabalho é o website do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do trabalho (LEHMT) da UFRJ. Ver: https://lehmt.org/
Organizador
Paulo Fontes – Professor do Instituto de História. Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
Referências desta apresentação
FONTES, Paulo. Apresentação. Ars Historica. Rio de Janeiro, v. 19, n.1, Jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]
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