As aproximações e dissonâncias entre a história e a literatura tem sido objeto de intensos debates e disputas nos últimos trinta anos, especialmente no que diz respeito à definição das fronteiras entre história e ficção, ou, dito em outras palavras, à possível trajetória autônoma da literatura em relação aos seus contextos de produção. Esse número da revista Intellèctus se propõe a aprofundar tal debate a partir de estudos de autores e / ou obras ficcionais que problematizem as fronteiras entre história e ficção. Acredita-se aqui que, se de um lado cabe historicizar a obra literária, seu autor e seus personagens, também é interessante indagar ao autor e à sua narrativa sobre os conteúdos que tensionam as determinações do tempo. A pesquisa nos textos literários e sobre a polêmica trajetória dos seus autores como objeto de crítica, em meio à sintaxe e economia interna da narrativa, revelam testemunhos históricos que complexificam o entendimento de conjunturas históricas e de temas que, muitas vezes, extrapolam essa mesma conjuntura. É nesse sentido que cabe submeter os possíveis “inexplicáveis” do texto literário à inquirição do historiador e do crítico literário. Dessa forma, se é relevante estudar a obra literária em seu contexto, também é importante buscar diálogos de tempos e experiências distintas a partir dela. Parafraseando Mário de Andrade, em seus profícuos estudos da obra de Kiesserling, narrativas literárias podem guardar diálogos entre o lugar e o mundo que permitem encontrar e elucidar testemunhos históricos em momentos e contextos definidos, mas, permitem também, indagar sobre trajetórias mais amplas com significados cuja temporalidade rebelde convida a diálogos não necessariamente presentes apenas na conjuntura vivida pelo autor e pelos seus personagens.
Os artigos que compõem este número da revista Intellèctus formam um ótimo conjunto que aponta respostas distintas para as indagações que inspiraram as organizadoras do volume. São, por isso, ferramenta importante para adensar o debate proposto.
Rafael Ruiz escreveu “A ‘Odisseia’ de Homero e a condição humana”. O autor acompanha as vicissitudes de Ulisses considerando sua formação como ser humano, uma tópica do mundo ocidental, mas os argumentos desconstroem, mesmo que em parte, a visão do herói que criou a estratégia de vitória dos gregos em Troia, já que o enfrentamento da existência, a humildade e a aceitação das dificuldades é que formatam o homem, e não a heroicidade manifestada em guerra.
Rossana Pinheiro-Jones escreveu “Virgínia Woolf e o sentido do tempo”, artigo no qual visita a escritora inglesa sintetizando sua trajetória, marcada pelas vivências aristocráticas e patriarcais e por tentativas de rompimento e afirmação feminina, para, em seguida, iniciar uma análise do tema do tempo em sua obra, destacando o Diário da Senhora Joana Martyn. A obra é apresentada em suas vertentes feministas e nas aproximações que oferece entre literatura e história, já que os personagens do romance permitem conhecer a sociedade medieval inglesa. Desta forma, a autora articula o debate historiográfico à construção narrativa de Woolf.
Márcia Arruda Franco, em “De portugueses nos modernismos do Brasil – histórias por narrar”, destaca a trajetória de António Ferro no contexto das ditaduras dos dois lados do Atlântico luso. O português, conforme indica a autora, estabeleceu profícua interlocução intelectual a partir dos primeiros anos do modernismo brasileiro. Suas afiliações e distanciamentos, entre revistas e manifestos entre Portugal e o Brasil, são movimentados pela autora para relevar o diálogo cultural então construído.
O escritor Ricardo Lísias, autor e estudioso de autores, investiga os sentidos da obra de Rubem Fonseca no tempo da ditadura militar. Segundo o autor, Fonseca se destacou na inauguração da literatura de ficção voltada para a violência urbana e, neste sentido, pode também ser visto como um dos responsáveis pela construção da figura do policial no imaginário da época. Lísias, desta forma, perscruta o texto literário em suas imbricações com o tempo vivido por Fonseca, e o resultado é a complexificação das ainda presentes relações do nosso tempo vivido com aquele narrado por Fonseca no que diz respeito à violência urbana.
No artigo “Em busca de um padrão: moda, beleza e vida social na obra de Joaquim Manuel de Macedo”, Mariana de Paula Cintra nos leva de volta ao século XIX e nos apresenta, por meio de uma análise de preceitos de ordem moral retirados de impressos sobre o cotidiano fluminense, padrões de comportamento, moda e beleza que dialogam com as narrativas de Macedo. Seu estudo explicita os múltiplos modos de produção da verdade e de discurso nos oitocentos.
Ricardo Russano dos Santos escreveu “Do agregado ao pobre-diabo: mudanças e permanências na literatura e na história do Brasil, 1870-1930”. Revisitando o debate sobre o chamado “agregado”, elemento constitutivo das narrativas brasileiras pós 1870, o autor elabora um panorama histórico e examina as continuidades entre o “agregado” e o “pobre-diabo”, este característico do chamado romance de 30. Tomando por critério o diálogo com reflexões históricas já estabelecidas, o parentesco entre os dois “tipos literários” é revelado e discutido.
Rafael Vaz de Souza escreveu “A história como pesadelo: a representação alegórica da Argentina peronista no romance El examen (1950) de Julio Cortázar”. Tratase de encontrar, na obra de Cortázar, os diálogos por ele estabelecidos com a Argentina peronista e que se manifestam no romance. Desta forma, a figura de Eva Perón, um comício na Plaza de Mayo, a figura de um caudilho e a violência do regime, para além de compor a narrativa, revelam a Argentina construída pela pena de Cortázar.
No artigo “Há verdade na ficção? – uma discussão com Coelho em crise de John Updike”, Leandro Thomaz de Almeida discute as possibilidades de realidades presentes em narrativas literárias, além de apontar aproximações e distanciamentos entre literatura e história. Para tanto, o autor nos apresenta John Updike e sua obra Coelho em crise, na qual narrou problemas candentes da sua circunstância social e política.
Jean Pierre Chauvin escreveu “Argumentação do diabo” no qual, a partir de O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, destaca o que considera ser a argumentação do diabo conduzindo a narrativa de Saramago. O autor discute com a bibliografia sobre a figura do diabo construída pela Igreja Católica e, desta forma, adensa o seu texto articulando elementos de construção narrativa e elementos de compreensão histórica dos temas sugeridos por Saramago.
No artigo “A arte da autoinvenção no romance Nove Noites”, Joanita Baú de Oliveira analisa a narrativa de Bernardo de Carvalho considerando a trajetória dos protagonistas, o processo de elaboração do romance e a metaficção no enredo. O debate proposto evoca as tensões e possibilidades inscritas nas relações que se pode estabelecer entre fatos vividos e narrativa fictícia.
Por fim, Victor Callari, no artigo “Um problema de taxonomia? Graphic Novels como literatura de testemunho: O caso de Art Spielgeman”, oferece tempero a este número ao trazer para o debate sobre as aproximações e dissonâncias entre História e Literatura uma Graphic Novel, ou simplesmente HQ como preferem alguns. A literatura de testemunho, aqui inscrita na Graphic Novell Mauss, de Art Spielgman, neste artigo, permite ampliar o debate sobre as narrativas contemporâneas e os muitos gêneros que lhe oferecem suporte, além de estabelecer pontes profícuas entre esses gêneros e a cultura de massas.
Enfim leitor, se o conjunto dos textos é diversificado, o debate resultante dos muitos diálogos que saltam desse número será ainda mais plural, e portanto vocacionado para distribuir dúvidas, tão fundamentais para a nossa existência nos tempos que vão.
Apresentadoras
Ana Nemi (Departamento de História da EFLCH / Unifesp)
Mirhiane Mendes de Abreu (Departamento de Letras da EFLCH / Unifesp)
Julho de 2019.
Referências desta apresentação
NEMI, Ana; ABREU, Mirhiane Mendes de. Apresentação. Intellèctus. Rio de Janeiro, v.18, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.