Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
(Saramago, Lisboa, 1981)
A presente edição da Revista Mosaico apresenta artigos produzidos e apresentados no IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA: Cultura e Identidades (2009), cujas discussões foram encaminhadas no Simpósio Temático “História e Literatura: a partilha do sensível” (ST 23), que trazem para o público interessado, retratos que contam velhas e muitas histórias, vindas do fundo de muitas memórias reconstruídas, que se abrem em cantos e sonoridades pelas mãos daqueles que também narram experiências e estudos produzidos em diferentes contextos, tendo como referência criações literárias.
As propositoras do Simpósio Temático, as professoras Cléria Botelho da Costa (UnB) e Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante (PUC GOIÁS), consideram que, a relação entre história e Literatura vem se configurando como um dos novos desafios propostos pela historiografia recente, em especial pela Nova História Cultural que está atenta para os significados atribuídos ás práticas sociais, enquanto representações do real, aos valores, as múltiplas linguagens, formas diversas de acesso ao vivido.
Esse movimento da historiografia em direção às questões culturais tem feito cair as muralhas rígidas que separavam a história da literatura, do cinema, da música, possibilitando que ficção e realidade se misturem, fazendo entender que a sensibilidade, a ficção não se configuram como o avesso do real, mas como uma outra forma de entendê-lo.
Se a literatura é apreendida como o reino de expressão das sensibilidades, das emoções humanas, a história também é hoje compreendida como uma construção de sujeitos sociais que têm sonhos a realizar e dores a mitigar, portanto, como uma narrativa que abriga sensibilidades, emoções humanas e as partilha com seus leitores. Por essa razão temas como: a saudade, o amor, a vingança, o desamor etc., antes tão renegados pelos seguidores de Ranke, hoje cintilam no palco iluminado da historiografia. Com essa compreensão, foi propósito do simpósio pensar o texto literário e o texto histórico enquanto artefatos culturais, ou seja, representações do real, construções identitárias considerando, sobretudo, que as sensibilidades e as emoções constituem os fios de suas narrativas. Sem, no entanto, deixarmos de realçar que se a História e a Literatura são narrativas que abrigam pontos de intercessão, elas, também, guardam diferenças que lhes são peculiares. Para essa intercessão convergem as reflexões dos autores dos artigos aqui apresentados. O artigo de Maria Célia da Silva Gonçalves, intitulado “Sensibilidades e Perfomances Femininas nas Folias de Reis de João Pinheiro (MG)”, trata da participação das mulheres nos rituais de Folias de Reis realizados no município de João Pinheiro, traz a sensibilidade da rainha da festa, da cozinheira, da florista, dentre outras.
No fio condutor das tessituras femininas, o texto de Vandeir José da Silva, refelete sobre “O papel da mulher na festa de Caretagem e a culinária”, na Festa de São João”, em Paracatu (MG). Embora, o foco central da festa de caratagem seja uma dança da qual participam somente os homens negros da comunidade, as mulheres, por outro lado, assumem a condição de protagonistas ao organizarem o “banquete” dos festejos; assim como ao exercerem a arte de confeccionar as máscaras e vestimentas dos caretas, para uma homenagem a São João.
Os “Benzedores e Raizeiros”[…], trazidos por Giselda Shirley da Silva, do mesmo lugar do noroeste mineiro, revelam os “saberes partilhados na comunidade remanescente de Quilombo de Santana da Caatinga(1940-2011)”, as práticas e artes dos fazeres que foram se institucionalizando na trajetória histórica daquela coletividade e nas suas relações com a religiosidade e as tradições orais e culturais.
Nos mesmos percursos do sertão mineiro, o artigo: “Memórias e Narrativas de Antigos Sertanejos: nas trilhas de Guimarães Rosa”, de Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida, sobre as memórias e narrativas de pessoas que ocuparam a região do Grande Sertão, nos tempos de outrora, reconstrói também as rotas por onde andou o escritor Guimarães Rosa. Os textos do noroeste mineiro, assim, parafraseando outro escritor, trazem: “[…] água de quebranto […] do fundo desta memória […], conta do retrato a velha história” (Saramago, 1981).
“Entre Anjos e Demônios Surgem as mulheres de Alencar” de autoria de Ana Carolina Eiras Coelho Soares, também conduz às sensibilidades femininas, relembra os dramas da sociedade carioca do século XIX, por meio das análises do romance “Lucíola” de José de Alencar e as polêmicas em torno da peça teatral “As Asas de um Anjo”, também, desse autor; ambas retratam com realismo os preconceitos e os modos de agir e pensar naquele momento histórico. Confirmando mais uma vez, que “a história não é menos uma forma de ficção do que o romance é uma forma de representação histórica,” como lembra Haydem White, em Trópicos do Discurso (2001).
O artigo “Cora Coralina: A Voz Que se Pode Ouvir” de Eliz Braz da Silva Junior e Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante, recorre à voz de Cora Coralina, em sua obra: “Estórias da Casa Velha da Ponte”, para encontrar na poética da autora as sensibilidades de um tempo, em torno de um episódio de condenação à forca, que expressa a relação entre cidade e cadeia em Goiás, séc. XIX.
Lembrando as dores e instabilidades das guerras, os dois textos inspirados em romances de escritores tanto aqui como do além mar. Um deles, o texto “Jorge Iaiá de Machado de Assis na Guerra do Paraguai,” de Tiago Gomes de Araújo e outro de Maria do Carmo Ferraz Tedesco sobre a “Reconfiguração da moçambicanidade nos romances de Mia Couto e Paulina Chiziane”. O primeiro refere-se ao romance escrito por Machado de Assis, sobre os controvertidos “motivos que direcionaram o alistamento de alguns indivíduos para o mencionado embate”. O segundo, traz reflexões sobre as incertezas e instabilidades que marcaram o continente africano na transição do século XX ao XXI, tendo como palco os movimentos de independência política.
Das ruas e do flâneur, falam Cléria Botelho da Costa e Maria Helenice Barroso, das cidades e do Brasil que se desenhavam no inicio do século XX; com o artigo intitulado “Sedução das Ruas”, analisam o livro A alma encantadora das ruas, considerando a cidade imaginada pelo literato e as interfaces multidisciplinares entre literatura e o tempo histórico. Concordando com as autoras de que literatura quase sempre retrata o contexto social em que a narrativa transcorre. Autores de romances, de peças teatrais e das diferentes produções literárias, reconstroem suas visões de mundo e as suas experiências de vida por meio dos diálogos com o seu tempo e os lugares de onde miram as diferentes perspectivas sobre as quais desenham os seus enredos.
Por fim, os artigos Memórias de um “Tempo Brabo”: O cangaço na literatura de Francisco J. C. Dantas, de Antônio Fernando de Araújo Sá e Desconstruindo a História: Hayden White e a Escrita da Narrativa de Gabriella Lima de Assis e Marcus Silva da Cruz, inseridos na seção tema livre.
Assim, aqueles que narram, sejam os que se dedicam à literatura considerada erudita, sejam aqueles do cancioneiro popular, como cordelista, repentistas, e tantas outras manifestações artístico-culturais, que recorrem à linguagem escrita, falada ou à tradição oral ancoram na perspectiva de reconstrução do imaginário, das ideias, das representações.
Navegam orientados com os mastros do mundo que os circundam e bebem nas fontes e correntezas da vida, da experiência inscritas num espaço povoado por personagens fictícios (ou não) que encarnam as vissitudes de seres humanos reais ou imaginários. Assim, citando mais uma vez, o escritor lusitano, “estou onde versos faço” (Saramago, 1981), autores e escritores narram dos lugares, em tempos e espaços circunstanciais e subjetivos.
Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante
Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida
Cléria Botelho Costa
(Organizadoras)
CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa; ALMEIDA, Maria Zeneide Carneiro Magalhães de; COSTA, Cléria Botelho. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.3, n.1, jan. / jun., 2010. Acessar publicação original [DR]
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