História e linguagens: biografia – ficção – teoria da história / Revista de Teoria da História / 2018

Desde que Hans Robert Jauss, em sua conferência O que é e com que fim se estuda história da literatura? (1967), lançou o desafio de pensar a contribuição da literatura para a construção das percepções do mundo social, inúmeros esforços têm sido feitos por pesquisadores comprometidos em superar “o abismo entre literatura e história, entre o conhecimento estético e o histórico”. Os debates e reflexões acadêmicas em torno das relações entre História e Linguagens, em especial a partir de um eixo teórico em diálogo incessante com a Teoria da História, tem se expandido de modo significativo nas últimas décadas, reorientando os olhares da produção historiográfica recente às articulações entre expressões estético-culturais e a experiência temporal. Muitas das questões levantadas concernem, de um lado, às marcas da historicidade inerente às linguagens, ao exemplo da ficção, da autoficção ou da (auto)biografia, e, de outro, às contribuições das linguagens literárias para pensar os elementos constitutivos do fazer historiográfico: suas escritas, seus lugares, suas práticas. Estas e outras indagações norteiam as linhas centrais deste dossiê. Nele, reúnem-se pesquisadores e pesquisadoras de diversas áreas das humanidades, em especial da História e da Crítica Literária, interessados em dialogar com o referencial de pensamento proposto abaixo; com o fito de ampliar os domínios teóricos no interior da instabilidade que tem se formado na dimensão interdisciplinar dos estudos.

Dessa maneira acentuamos que a ficção tem sido tomada, na tradição ocidental, como um elemento de engano ou simplesmente enquanto produto da representação do real, que desde Platão tem se baseado na imitação como paradigma. Essa definição – já canonizada, cerceada pelo controle do imaginário e reduzida pela conformidade sociológica – acarreta inúmeras restrições no trato historiográfico e, por conseguinte, no campo da Teoria da História. De modo que atentamos também, no âmago desta tradição, para uma tendência ao afastamento de seus correlatos ficcionais (biografia, autobiografia e autoficção), como campos ligados ao falso e ao inverossímil, ou ainda ao mero entretenimento, e em consequência, revestidos com a impossibilidade de um aproveitamento para a História. Nesse sentido, os artigos e textos reunidos neste dossiê articulam pensadores que tomam, em variados campos, a problemática da ficção em sua heterogeneidade de suportes, bem como seus efeitos, manifestações e recepção dentro do campo teórico, historiográfico e (auto)biográfico. Em comum às perspectivas deslindadas, um posicionamento que toma o fictício enquanto um ponto de partida para indagações sensíveis ao ofício historiográfico: o que fazemos quando lidamos com a produção de sentidos entretecida pelos discursos, ou ainda com os desafios acerca “da presença realizada na linguagem”1, como evocou alhures Hans Ulrich Gumbrecht (2009).

A pluralidade de perspectivas teórico-metodológicas adotadas pelos artigos coligidos no dossiê aponta para dimensões convergentes: abordar as relações históricas entre linguagens, formas narrativas e experiências temporais, em especial, as interconexões entre a historicidade dos discursos ficcionais / autoficcionais e as tessituras sociais, culturais e políticas inerentes à sua produção. Por extensão, os textos reunidos neste dossiê nos convidam a questionar a construção teórica do discurso historiográfico a partir de uma relação incessante e dialógica com outras modalidades narrativas, nominalmente aquelas classificadas sob a rubrica do ficcional, compreendendo-as também como um esforço de constante reclassificação das formas de apreensão do passado e do presente. Finalmente, essas reflexões encontram-se refinadamente sintonizadas com a Teoria da História, ao promover reflexões epistemológicas a respeito dos diálogos entre discursos históricos e linguagens categorizadas como ficcionais ou dotadas de certa literariedade.

Indubitavelmente, Luiz Costa Lima (PUC-Rio) tem sido uma referência em meio a estes debates na produção historiográfica recente, em especial a partir de suas obras A Aguarrás do Tempo (1989), História. Ficção. Literatura (2006) e O Controle do Imaginário & A Afirmação do Romance (2009), dentre inúmeros outros livros e artigos nos quais discute questões caras às bases teóricas e discursivas do fazer historiográfico. Em seu artigo Poesia e experiência estética, publicado no presente dossiê, toma como ponto de partida os debates em torno da filosofia da linguagem para tratar da construção de sentidos e significados a partir das linguagens poéticas, simultaneamente atentando-nos aos desafios que a poesia tem apresentado para a crítica literária e para a historiografia. A ênfase recai à noção de experiência estética a partir da reflexão filosófica, sobretudo em Kant, por meio do qual Luiz Costa Lima enfatiza a singularidade da sensibilidade “suscitada por um objeto de arte”, a qual “é possível de provocar a reocupação crítica do semântico”.

As singularidades conceituais do logos e pathos, em suas relações com o mundo da linguagem, fornecem subsídios analíticos para o texto Logos e pathos em Antígona e Protágoras, de Flávia Maria Schlee Eyler (PUC-Rio). Por meio da cosmogonia de Protágoras, ponto de partida do artigo, a autora discute relações entre virtudes e política como condições de possibilidade ao próprio bem comum da polis grega. A linguagem é novamente tomada como uma questão central, uma possibilidade de constituir sentidos em torno do ser e do viver, de construir mundos em que a condição humana torne-se possível.

Uma história conceitual da vaidade, por meio de dicionários espanhóis, franceses e portugueses ao longo dos séculos XVIII e XIX, é o objeto central de análise de Daniel Wanderson Ferreira (UFRJ) e Mannuella Luz de Oliveira Valinhas (UFRJ). No artigo intitulado O tema da vaidade nas línguas espanhola, francesa e portuguesa: o estudo de semântica histórica em dicionários, os autores abordam as transformações sócio-históricas implícitas na tópica da vaidade, e demonstram as formas pelas quais uma noção, originalmente associada à ideia numérica de valor, deslocou-se para um campo caracterizado por concepções éticasmorais.

Em Uma biografia sem ninguém: reflexões acerca da biografia Getúlio Vargas: o Poder e o Sorriso (2006), Marcelo Hornos Steffens (UNIFAL-MG) analisa a biografia de Getúlio Vargas escrita por Boris Fausto, a fim de, por um lado, verificar se o texto dialoga com as novas formulações a respeito da biografia e, por outro lado, estabelecer uma confrontação entre o gênero biográfico e a historiografia recente, suas aproximações e distanciamentos. Ao fim, trata-se de analisar aspectos teóricos ligados à constituição de cada um dos gêneros e suas implicações para a escrita da história.

Uma releitura da conferência de Michel Foucault, O que é um autor? (1969, à luz de críticos e historiadores como Roland Barthes, Roger Chartier, Jorge Luís Borges e Giorgio Agamben) norteia o texto O autor como gesto: revisitando uma questão foucaultiana, de Reginaldo Sousa Chaves (UESPI). A conferência de Michel Foucault tem fornecido, indubitavelmente, subsídios para debates críticos em torno da concepção de emergência da autoria e o texto, em especial pela aproximação da perspectiva de Agamben, sugere delimitar a autoria enquanto gesto, uma forma de resistência do sujeito frente às tramas do poder.

Ficção, autoficção e (auto)biografia são linhas mestras que norteiam os artigos, atentos às relações incessantes entre as linguagens e seus vetores históricos e, portanto, contemplando as narrativas textuais enquanto elementos constitutivos do mundo social e de lugares de produção cultural. No artigo Biografar, imaginar, escrever: escrita biográfica e imaginação histórica em João Manuel Pereira da Silva (1817-1898), Rafael Terra Dall’Agnol (UFRGS) analisa as relações entre a escrita biográfica e as formas de lembrar no supramencionado historiador oitocentista, em especial, nos volumes de sua obra Plutarco Brasileiro.

Em Heróis de Papel. História e Biografia em Gustavo Barroso, de Érika Morais Cerqueira (UFMG), acompanhamos uma análise atenta às formas discursivas e às concepções historiográficas presentes nas narrativas biográficas de um intelectual que, entre as décadas de 1920 e 1940, dedicou-se ao estudo de heróis militares, fulcros de identificação coletiva que, na óptica do biógrafo, seriam responsáveis pela constituição e reclassificação das relações de poder. História e memória, interesses políticos e sociais transparecem na escrita biográfica de Gustavo Barroso, além de recursos retóricos que visavam, por meio de narrativas humanizadoras, apresentar os heróis da história pátria aos seus leitores, para perpetuá-los na posteridade e na memória coletiva.

Estudos como estes, concernentes às relações entre História e Biografia, localizam-se em um vértice significativo de análise na produção historiográfica das últimas décadas. Na esteira das transformações de âmbito teórico-metodológico pelas quais passou o campo da História nas últimas décadas, o gênero (auto)biográfico se tornou um terreno privilegiado para debates e problematizações a respeito das experiências dos sujeitos históricos, articulados entre o individual e o coletivo, o público e o privado, as razões e as sensibilidades, a História e a memória. Ademais, possibilitaram que muitos historiadores e historiadoras pensassem nas modalidades múltiplas de atribuição de sentidos ao passado e da construção das culturas históricas de determinados contextos.

Os debates em torno da Teoria da História e dos passados práticos são retomados no texto Historiografia e visada ética: Hayden White e os passados práticos, de Walderez Simões Costa Ramalho (UFOP), Augusto Martins Ramires (UFOP) e Letícia Almeida Ferraz (UFOP). Na análise, a partir de referências de historiadores nacionais e estrangeiros, os autores apontam as limitações da proposta teórica de Hayden White, mas simultaneamente avaliam as possibilidades de sua aplicação no que compete à história da historiografia. Dentre os diálogos suscitados pelo artigo, destaca-se a referência a Gadamer, ao proporem paralelos e aproximações teóricas em torno da proposta de White a respeito dos passados práticos e do questionamento ao método historiográfico moderno.

O dossiê conta também com duas traduções: Algumas observações à proposta de uma nova representação do tempo na pintura do século XIX, de Jeffrey Andre Barash (Université de Picardie Jules Verne), traduzido por Ana Carolina de Azevedo Guedes (PUCRio). O argumento central do texto incide sobre a perspectiva de que movimentos vanguardistas do século XIX promovem expressões de experiência temporal, edulcoradas por um movimento de ultrapassagem de estilos precedentes nas artes visuais. Na medida em que a pintura cubista e as artes de vanguarda testemunham as transformações das sensibilidades artísticas em determinados períodos históricos, simultaneamente apontam para as distintas experiências temporais traduzidas pela expressão pictórica.

Em seguida, a tradução do texto de Samuel Becket, Dante…Bruno. Vico… Joyce, realizada por Lucas Peleias Gahiosk (PUC-Rio). O ensaio, até então inédito em língua portuguesa, foi publicado originalmente em 1929 em uma coletânea crítica em torno da recepção de Work in Progress, de James Joyce, título preliminar de seu Finnegans Wake. No ensaio, Becket cinge erudição e leveza ao dialogar com dois pares de intelectuais – Dante Alighieri e Giordano Bruno, Giambattista Vico e James Joyce – para tratar de relações fundamentais envolvendo a linguagem em tempos de modernismos.

Na seção de artigos livres, contamos com dois textos. No artigo Las reactualizaciones contemporáneas de la teoría del reconocimiento, o pesquisador argentino Leonardo Gustavo Carabajal (Universidad Nacional de Jujuy) trata da leitura realizada por Axel Honnet e Paul Ricoeur a respeito da teoria do reconhecimento de Hegel, desenvolvida durante o período de Jena. A tese central do artigo é a de que o conflito seria um elemento constitutivo da vida social, sendo que a tensão entre a liberdade positiva e negativa se resolve mediante a luta pelo reconhecimento em uma comunidade intersubjetiva. Já em A história transnacional e a superação da metanarrativa da modernização, Walter Francisco Figueiredo Lowande (UNIFAL-MG) empreende um esforço ligado a uma história da historiografia nacional mediante a apresentação de suas vertentes “pós-nacionais”, dentro das quais a história transnacional é destacada. Trata-se da incorporação de uma perspectiva espacial, isto é, que enfatiza os aspectos ligados às dinâmicas dos espaços e seus fluxos. Com isso, o autor pretende tratar da possibilidade de uma “superação da historiografia nacionalista”.

Na seção de entrevistas, Luiz Costa Lima é entrevistado por Ana Carolina de Azevedo Guedes (PUC-Rio), Edson Silva de Lima (UNIRIO) e Maycon da Silva Tannis (PUC-Rio). Passadas quase seis décadas desde a publicação de seus primeiros trabalhos, Costa Lima apresenta-se em sua maturidade a responder questões referentes à dimensão ética na historiografia, a fragmentação do indivíduo em tempos de literaturas testemunhais, as relações entre mímesis e discursos históricos e literários, entre outras temáticas. Contamos também com uma entrevista com Willi Bolle, realizada por Augusto Leite (UFES), Josias Freire (IFB) e Marcello Felisberto Morais de Assunção (USP). Willi Bolle desenvolveu ao longo de sua trajetória diversas reflexões na intersecção entre história e literatura, sendo a “modernidade” brasileira o objeto primordial desses escritos. Tem sido um dos grandes divulgadores da obra de Walter Benjamin no Brasil, organizando coletâneas como Documentos de cultura, documentos de barbárie e a versão em português das Passagens.

Além disso, o presente número inaugura uma nova seção da Revista de Teoria da História: conferência. Como sugere o nome, a RTH passará a publicar textos advindos de conferências, aulas inaugurais e discursos, contribuindo, desse modo, para a disponibilização de conteúdos relativos à Teoria da História e à História da Historiografia para além do formato do artigo científico. A primeira contribuição é de Arthur Alfaix Assis, História, Teoria e Liberdade: Saudação a Jörn Rüsen, discurso proferido na cerimônia de concessão do título de doutor honoris causa a Jörn Rüsen pela Universidade de Brasília, em 25 de setembro de 2015.

Contamos ainda, na seção de resenhas, com o texto de Flávio Dantas Martins, Uma História de vida de Paul Ricoeur, a respeito do livro de François Dosse, Paul Ricoeur – Os sentidos de uma vida (2017).

Finalmente, complementamos a apresentação do volume com uma troca de cartas. Lidando com o meio de campo entre os discursos históricos e literários, Eduardo Ferraz (UERJ), em seu texto Correspondências historiográficas: Literatura e História para além da forma tradicional (página 13 adiante), destaca-se duplamente. Em primeira instância, por mobilizar a escrita ensaística e o lugar de missivista, ao entretecer um diálogo cruzado com as linhas teóricas e conceituais do dossiê, em especial no que tange às indagações sobre biografia, autobiografia e autoficção ou ainda à “relação íntima entre a singularidade da experiência e a possibilidade do relato”. E, somado a isso, a centralidade da escrita enquanto modalidade de relação intrínseca com o real, ou, como sumariza ao tratar de Roland Barthes, “desmistificar a própria noção de literatura, para combater a dilaceração do esquecimento”.

Essa carta / artigo foi enviado pelo professor da UERJ e querido amigo Eduardo Ferraz que atendendo ao pedido da comissão de organização do dossiê História e Linguagens enviou um texto original, teórico e preocupado em dialogar com as questões indicadas em nossa chamada para artigos. Com muito cuidado o professor aponta questões centrais a respeito da ficcionalidade da vida, do sujeito simulado e da interdisciplinaridade necessária ao desenvolvimento de pesquisas que congratulam conosco a vontade de renovação e estímulo ao diferente. Ela traz uma forma dissidente dos modelos acadêmico-monográficos sem perder o rigor científico. Em uma forma leve de conteúdo denso se preocupou em apontar, com uma erudição pouco presente em nosso métier, questões que estejam presentes na feitura da escrita da história no mundo contemporâneo e sua relação heutonomica com a faculdade de julgar reflexionante.

Os organizadores do dossiê História e Linguagens agradecem as contribuições dos autores de artigos e entrevistas, bem como aos pareceristas e à equipe editorial da Revista de Teoria da História. Desejamos uma boa leitura, e esperamos que a circulação destes textos contribua para futuras pesquisas no que compete às relações, sempre instigantes, entre História e Ficção.

Nota

1. GUMBRECHT, Hans Ulrich. A presença realizada na linguagem: com atenção especial para a presença do passado. História da Historiografia, n.3, setembro de 2009, p. 10-22.

Edson Silva de Lima – Doutorando (UNIRIO)

Evander Ruthieri – Doutorando (UFPR)

Maycon da Silva Tannis – Doutorando (PUC-RIO)

Ana Carolina de Azevedo Guedes – Doutoranda (PUC-RIO)

Membros do grupo História e Linguagens


LIMA, Edson Silva de; RUTHIERI, Evander; TANNIS, Maycon da Silva; GUEDES, Ana Carolina de Azevedo. Apresentação. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.20, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]

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