História e Gêneros / Embornal / 2016
O dossiê ora apresentado (História e Gênero) surge de um conjuto de preocupações com o tempo presente, haja vista a complexa conjutura sócio-política que vivenciamos no ano de 2016. Em um país cujo o histórico de relações democráticas foi sistematicamente atacado durante o século XX, a interrupção do governo da primeira presidenta mulher significa um golpe extremamente danoso e preocupante ao nosso Estado de direito, ameaçando se desdobrar de maneira perversa e diversa.
Entendemos que uma dessas ameaças diz respeito à questão de gênero, principalmente diante dos retrocessos materializados no avanço de segmentos conservadores da sociedade brasileira e (im)perfeitamente expresso na imagem do novo quadro ministerial composto exclusivamente por homens, e de idade elevada. Ainda que concordemos que os estudos de gênero tenham avançado no país nas últimas duas décadas, tanto pelo movimento das ruas como pelo trabalhos acadêmicos, entre outros, refletimos como este campo ainda se faz pertinente no sentido de entender e vivenciar a diversidade que se apresenta em nosso mundo, desconstruindo e dirimindo preconceitos tão arraigados em nossa formação social, cultural e histórica.
Trata-se, portanto, de um dossiê de estudos acadêmicos, sem dúvida. Contudo, uma reunião de trabalhos cujo propósito foi o de sublinhar as desigualdades de gênero. Aliás, dada a diversidade dos trabalhos recebidos, tanto no que diz respeito às temporalidades e espacialidades, como no que trata dos enfoques e temáticas, percebemos uma ligação não combinada, mas implícita entre as autoras e os autores que sistematicamente operaram descontruções de certezas, valores e parâmetros que historicamente tentaram abalizar as relações entre os sujeitos.
O trabalho de Tatiana Lima, por exemplo, é um convite aberto para repensarmos as relações estabelecidas no âmbito do espaço doméstico recifense, durante o século XIX. Percorrendo aquela cidade, a autora nos traz uma incessante movimentação a partir das experiências de vida dos indivíduos que executam o trabalho doméstico e transitam entre o público e o privado. Aliás, a própria noção de trabalho doméstico é posta em destaque para análise pormenorizada, além da observância de que a manutenção do serviço doméstico por escravos nas casas ricas e nas de famílias menos abastadas teve relação com a passagem para o trabalho livre, pois a alforria de cativas ocorreu não por humanidade, mas para garantir dependentes e aliados às mulheres em situação de apuros.
Também com foco nas experiências sociais de trabalhadoras domésticas e partindo das categorias de classe e de gênero, Michelle Arantes Costa Pascoa nos apresenta um texto ensaístico em que traz problematizações bastante pertinentes acerca de possíveis continuidades das relações de servidão provenientes do sistema escravocrata no Brasil.
Tomando questões relativas ao tempo presente, a autora assinala a importância do estudo das táticas de sobrevivência e resistência articuladas pelas criadas/empregadas domésticas, dentro e fora do recinto privado, na cidade de Fortaleza, durante o início do século XX.
Saindo da região Nordeste e em uma abordagem desafiadora e instigante, Ana Rita Fonteles problematiza os escritos dos alunos do principal centro formador de lideranças para o regime ditatorial estabelecido no Brasil, pós-1964: a Escola Superior de Guer ra. Perscruta os cursos destinados a civis e militares para analisar questões concernentes à formação de uma censura adaptada ao país daquele contexto em que os meios de comunicação de massa se expandiam, atingindo novos públicos e faixas etárias. A autora nos convida a refletir sobre as formas como a censura era pensada, tendo em vista a preocupação com a moral e a defesa do que seriam os “bons costumes”, dentro de um projeto marcado pela ideia de segurança nacional expressa, entre outros, no delineamento dos inimigos e dos comportamentos perigosos aos “bons costumes”. De fato, o artigo evidencia um projeto maior para o país, com ações efetivas no campo das políticas públicas e da produção cultural, para além da constatação simplória e abstrata de uma censura política e outra moral.
De forma dialógica, o trabalho de Thiago de Sales nos projeta para o contexto de ditadura civil-militar brasileira pós-64, e especifica um debate acerca do controle da rede televisiva, analisando os processos de censura nas telenovelas. Pacientemente, o autor descortina o universo dos censores conferindo centralidade aos pareceres emitidos por eles que são tratados como importantes fontes de análise. Projeta-nos assim para dentro da dinâmica da Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP) com o intuito de analisar as questões relativas ao gênero, mediante a problematização de comportamentos e identidades tratados pela DCDP. As narrativas de telenovelas da década de 1970 são pensadas então para além da comoção do público. São observadas no trabalho de antessala, de operação e acompanhamento, a partir das justificativas no corte de cenas consideradas “impróprias à moral”.
Ainda sobre a década de 1970, o artigo escrito por Rosemeri Moreira e Renata Virgínia Costa apresenta um conjunto de análises das relações de gênero em Guarapuava, Paraná, mas com foco na constituição de masculinidades. O caminho traçado pelas autoras joga luz nas edições do Jornal Esquema Oeste para investigar a relação entre masculinidade(s) e violência homicida/ criminalizada. A partir de uma minuciosa sistematização dos dados encontrados nas reportagens é possível visualizar neste trabalho um grande painel analítico que auxilia na demonstração da construção de um silenciamento das violências praticada por homens. Da construção narrativa jornalística, as autoras observam de maneira bastante pertinente como a “desrazão” é majorada para explicar os atos dos homens, quase sempre afastados da cidade modernizada e imersos em uma masculinidade própria da roça, do mundo rural, que não corresponde ao mundo urbano.
Quem perscruta essa urbanidade em sua intimidade é Jadson Stevan que nos convida a entrar em algumas casas, acessarmos algumas memórias e visitarmos a experiência de vida de cinco mulheres trabalhadoras domésticas. Ao lançar mão da História Oral como metodologia, amparado em entrevistas temáticas, e ao se apropriar da categoria gênero como ferramenta de análise, Jadson desvela os processos de invisibilidade a que as mulheres são submetidas na contemporaneidade, instigando-nos a pensar sobre os problemas específicos concernentes a essa classe trabalhadora, sobre as subjetividades e afetividades construídas por essas mulheres e muitas outras que transitam nas entrelinhas do seu texto, nas residências de Guarapuava e nas infinitas casas espalhadas pelo país. Através das memórias das trabalhadoras é possível visualizar e entender as estratégias que elas dispunham e operavam no campo do afeto para dirimir os seus problemas cotidianos.
Por fim, o artigo de Patrícia Rosalba Salvador Mouta Costa nos transporta para o outro lado do Atlântico. Em Espanha, a autora desvela como a temática educacional foi trabalhada pela Lei Orgânica 01/2004, principalmente no que diz respeito às medidas de proteção integral contra a violência de gênero naquele país. O trabalho toma como central a análise dos discurso produzidos no âmbito legislativo, pondo em reflexão a relação da referida lei com os tratados internacionais para a elaboração de normativas de violência de gênero, especificamente no que diz respeito a violência que tem como vítimas as mulheres, e como autor o homem. O texto de Patrícia trata ainda de como a questão educacional é abordada no âmbito da prevenção prevista pela Lei, percebendo formas distintas de (des)qualificar e discorrer sobre des(igualdades) que afetam homens e mulheres, o educando em si, em níveis educacionais diferentes.
De fato, um conjunto plural e diverso de textos, mas que se conectam entre si, mostrando como os estudos das relações de gênero não são apenas atuais, mas extremamente necessários e desafiadores. É a partir desses trabalhos, e de muitos outros que certamente virão, que acreditamos ser possível manter vivo e latente o debate sobre as questões de gênero.
Trabalhos resultados de pesquisas autônomas e que não se enquadram nos parâmetros ditados a partir de cima, ditados, por exemplo, pelos homens que tomaram o governo e lhe deram um novo (talvez velho) formato, igualmente ameaçadores do nosso Estado de direito.