História e gênero / Oficina do Historiador / 2017
Gênero como campo de pesquisa histórica
O estudo de gênero como categoria analítica oferece aos estudos históricos novas perspectivas de análise. A emergência de novos objetos e fontes da História Social da Cultura possibilitou a incorporação dos debates acerca das questões de gênero no interior do campo historiográfico. Soma-se a isso, a própria mobilização de grupos socialmente marginalizados na busca de seus direitos civis e do reconhecimento diante de suas diferenças de gênero. A explosão de movimentos sociais no final dos anos de 1980 para além da rígida categoria de “classe” favoreceu o aparecimento de múltiplas identidades e a construção de novas bandeiras de luta no interior das sociedades pós-modernas. A categoria gênero é entendida aqui a partir de uma perspectiva interdisciplinar, que caracteriza a História-Ciência desde o surgimento da escola dos Annales, mas também incorporando a multiplicidade de sujeitos coletivos que integram o debate. Como diria uma das mais importantes historiadoras sobre o assunto, Joan Scott, o gênero tem dois significados inter-relacionados “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” (SCOTT, 1986, p. 86) [1], assim como, também é definido pela historiadora como “uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1986, p. 86). O gênero, neste sentido, é estritamente ligado as relações de poder e as relações sociais dispostas em sociedade.
As lacunas da representação da diversidade nos espaços de disputa de poder em regimes democráticos, por exemplo, indicam um perfil próprio de indivíduos que ocupam esses espaços. Dentro das democracias liberais, em sua maioria, esse papel é reservado para indivíduos masculinos. A dificuldade enfrentada no campo político por pessoas à margem desse processo é fundamental para a compreensão de sua baixa presença nos cargos do governo. A desigualdade de gênero revela a impossibilidade de concretização de políticas públicas realmente democráticas e com forte característica de pluralidade.
Deste modo, a produção do dossiê está vinculada com a apreensão quanto aos rumos da política brasileira, marcada pelo afastamento da primeira mulher eleita presidenta do país e pelos inúmeros retrocessos de conquistas obtidas pelos movimentos sociais, sobretudo a recente retirada pelo Ministério da Educação (MEC) do documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) dos termos como “gênero” e “orientação sexual”.
Em síntese, o gênero na história proporciona a incorporação da crítica de sujeitos históricos marginalizados nas dinâmicas sociais, culturais e políticas dentro da produção historiográfica. Este é justamente a razão de ser do dossiê História e Gênero organizado pela Equipe Editorial da Revista Oficina do Historiador. Reunindo diversos artigos sobre a temática, com o intuito da ampliação do campo da história utilizando o gênero como um dispositivo de análise nas pesquisas históricas contemporâneas.
Em “Sobre penteados e cabelos africanos: visões eurocêntricas nas páginas da Eu sei tudo (1917-1929)”, Ana Carolina Carvalho Guimarães foca a sua pesquisa na análise de textos e imagens relativa às mulheres africanas, publicadas na Revista Eu Sei Tudo entre os anos de 1971 e 1929. Buscando analisar a partir dos periódicos da revista sua difusão de representações e estereótipos da cultura e das mulheres africanas.
Por sua vez, Antonio Alves Bezerra em “Reflexões acerca do cotidiano de mulheres trabalhadoras rurais “boias frias” na cultura canavieira do interior paulista”, apresenta um artigo fundado em história oral sobre as experiências de lutas vivenciadas por mulheres trabalhadoras rurais que atuaram na cultura canavieira no Oeste paulista no início do século XXI.
No artigo “Antônio, Bento e Domingos: paternidade na elite farroupilha (1835-1845)”, Carla Adriana da Silva Barbosa situa a figura paterna como representante da segurança corporal e simbólica das famílias da elite farroupilha no contexto histórico, de 1835 a 1845, período marcado por guerras e pela soberania da figura masculina.
Carmem Silvia da Fonseca Kummer Liblik, no artigo “História de vida e profissional da historiadora brasileira Laura de Melo e Souza: intersecções entre memória e biografia”, analisa a vida da historiadora Laura de Melo e Souza revelando detalhes de sua trajetória de vida e profissional.
Em “Mulheres, investigação de paternidade e justiça: cotidiano e provas (Belém, 1920- 1940)”, Ipojucan Dias Campos analisa mulheres e seus filhos adultos no início do século XX, na cidade de Belém, e seus esforços jurídicos para provar a paternidade de seus filhos. Seu cotidiano marcado por lutas de mulheres e suas famílias percebidas como “espúrias” pela sociedade.
Kety Carla De March, no artigo “Corpos subjugados: estupro como problemática histórica” discorre sua pesquisa na análise de processos criminais de estupro instaurados na comarca de Curitiba, Estado do Paraná, ao longo da década de 1950, analisando os discursos sobre a violência sexual e sua relação sobre os padrões de masculinidade e feminilidade no contexto histórico estabelecido.
A entrevista concedida pela Professora Doutora Claudia Schemes à Revista Oficina do Historiador, publicada nessa edição, é fundamental para a proposta do dossiê História e Gênero. Seus trabalhos são marcados pelas temáticas de gênero, envelhecimento, identidade e moda. Suas reflexões compreendem a importância dos estudos de gênero no campo historiográfico a partir da importância de uma visão mais ampla para as análises históricas atuais.
Desejamos que esse dossiê permita ampliar o horizonte de produções em torno da temática de gênero dentro do campo da história. Área com vasto campo para o desenvolvimento, o dossiê contribui para novos debates e novas reflexões abrindo espaço para a reunião de novas pesquisas sobre o assunto.
Nota
1. Ver texto completo em SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul. / dez. 1995, pp. 71-99.
Cristiano Enrique de Brum – Doutorando em História do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS.
Julia Tainá Monticeli Rocha – Mestranda em História do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS.
Henrique Perin – Mestrando em História do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS.
Tatyana de Amaral Maia – Professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, Pós-Doutorado em História na Universidade do Porto, Doutora em História / UERJ.
BRUM, Cristiano Enrique de; ROCHA, Julia Tainá Monticeli; PERIN, Henrique; MAIA, Tatyana de Amaral. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 10, n. 1, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]