A revista Em Perspectiva em seu vol. 6 n. 1, abre espaço para pensar a história a partir de um olhar de gênero. A categoria, surgida no âmbito dos estudos feministas, e apropriada por diversas áreas do conhecimento, tornou-se objeto de disputa política nos últimos anos, em vários países, incluindo o Brasil. Os embates ocorrem como reações ao avanço na conquista de direitos pelas mulheres, homossexuais e pessoas transgênero e chegaram ao cotidiano de escolas, meios de comunicação, parlamentos e tribunais.
Mas para além da polêmica e da apropriação da categoria pelos movimentos sociais e partidos políticos, de que forma o gênero impactou os estudos históricos? Ou colocando de outra forma, quais as possibilidades que ela ainda potencializa para a pesquisa e escrita da história? Para pensar um pouco nesse tema, resgato um texto fundamental e fundante para a introdução da perspectiva em nossa disciplina no Brasil: O gênero como categoria útil para a análise histórica, da historiadora norte-americana Joan Scott, traduzido e publicado nos anos 1990.
No artigo, ela estabelece o gênero como uma primeira forma de significar o poder, a partir de hierarquias construídas e estabelecidas, por meio da cultura, sobre percepções em torno das diferenças sexuais. Seria esse um primeiro caminho a auxiliar na desnaturalização das diferenças entre masculinos e femininos, na percepção de suas transformações no tempo. Mas a categoria portaria ainda uma dimensão relacional: o gênero é construído em relação a um outro e pelo outro. Levar essa relação em consideração torna-se fundamental para as análises históricas. Scott trazia em seu texto uma forte crítica à forma descritiva como as questões da diferença apareciam até então na história das mulheres que, na tarefa política de incluir sujeitos estigmatizados e silenciados por narrativas realizadas, em grande parte por historiadores homens, não aprofundava a análise sobre as formas e dispositivos de construção e desconstrução das diferenças de gênero em diferentes tempos e suas formas de estruturação, apropriação e usos pelas dimensões da política, da economia, da religião, etc.
Muito da crítica de Scott é válida ainda nos dias de hoje, quando, pelo menos, o uso ilustrativo da categoria é feito ad nauseam em trabalhos historiográficos, sem necessariamente operar com o aspecto relacional e potência analítica do termo. Mas mesmo considerando seu julgamento procedente, é necessário pensar as especificidades da apropriação do gênero em diferentes experiências e tradições historiográficas em outros países e realidades. A historiadora Joana Maria Pedro fez excelente debate em que analisa essas realidades e as historicizou no artigo Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea, levando em consideração as imbricações entre academia e movimentos sociais de mulheres, as relações entre feminismos e realidades políticas diversas que continuarão a valorizar uma história mais centrada na presença das mulheres e em seu protagonismo, tensionando os limites políticos do gênero.
Essas contradições e tensões também estão presentes na produção historiográfica brasileira e nos 17 artigos selecionados para este dossiê. A organização das mulheres sob os ditames autoritários durante os anos 1970 e 1980 é tema em três artigos distintos que narram experiências do Brasil, mas também de Portugal, nas escritas de Sarah Pinho e Allana Letticia dos Santos, Ayssa Yamaguti Noreke e Pamela Peres. Também a ditadura e suas tentativas de normatização dos corpos são pensadas a partir do filme brasileiro Tatuagem, por Stella Ferreira.
As possibilidades e usos da categoria gênero na pesquisa histórica são trabalhados no artigo de João Paulo Ribeiro Beraldo e por Priscila Cardoso que aborda as alternativas para a pesquisa sobre masculinos e femininos durante a Idade Média. As experiências de opressão e reinvenção de mulheres em espaços de reclusão são pensadas por Amanda Dias de Oliveira em sua análise sobre o convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda no Rio de Janeiro em meados do século XVIII e início do XIX. As políticas da domesticidade e trabalho assalariado no entreguerras são discutidos por Jaqueline Stefani Andrade. A atuação das mulheres de elite no campo da benemerência e suas representações são estudadas por Gessica Aline Silva.
Discussões baseadas na interseccionalidade, operação que articula no exame de processos históricos as categorias de raça, classe e gênero estão presentes nos artigos de Flávia de Freitas Souza sobre as mulheres em Desterro, Santa Catarina, na segunda metade do século XIX e nas reflexões de Maria Clara Martins Cavalcante que traz a contribuição dos estudos decoloniais a campo. A construção da subjetividade feminina é pensada a partir da vida e obra de da escritora inglesa Ann Radcliffe, por Indaiá Demarchi e o conceito de esfera pública nos é apresentado a partir das discussões da anarquista Emma Goldman, na segunda metade do século XIX, por Nilciana Alves Martins.
Temos ainda artigo escrito a partir do chamado campo das masculinidades como o instigante texto de Lucas Otávio Boamorte que reflete sobre as erosões do masculino a partir de cartões postais que retratam soldados, como souvenirs da Primeira Guerra Mundial. A construção histórica do sujeito travesti é examinada em artigo de Antônio Simão Cavalcante e Noélia Alves de Sousa. Por fim, temos artigo de Pedro Joaquim Massanga sobre o Tchikumbi, rito de passagem de meninas a mulheres em comunidades em Angola.
Esse número de Em Perspectiva, dedicado ao gênero, traz ainda entrevista com a historiadora Magali Engel, referência nos estudos sobre mulheres, prostituição, loucura e discurso médico, autora de trabalhos como Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro, publicado pela editora Brasiliense e Os delírios da razão. Médicos, loucos e hospícios, lançado em 2001 pela Editora Fiocruz. Atualmente, Magali vive em Salvador onde atua como professora visitante da UFBA e realiza trabalho de pesquisa sobre escritoras cariocas e suas redes de sociabilidade, orienta alunos de pós-garduação e dá aulas. Nesta conversa, gravada, durante o 11º Encontro Nacional de História da UFAL, em setembro de 2019, em Maceió, ela fala sobre sua trajetória de pesquisa, sobre seus projetos atuais e sobre sua experiência como professora no Colégio de Aplicação da UERJ onde atuou como professora de História, para crianças e adolescentes, depois de anos trabalhando no ensino superior, na UFF.
O dossiê traz ainda a resenha do livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, de Lilia Moritz Schwarcz, publicado em 2019, pela Companhia das Letras, feita por Marco Túlio da Silva.
A todos uma boa leitura!
Organizadora
Ana Rita Fonteles Duarte
Referências desta apresentação
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Apresentação. Em Perspectiva. Fortaleza, v. 6, n. 1, p.7-9, 2020. Acessar publicação original [DR]
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