História e Fotografia – modos de ver e contemporaneidades | Projeto História | 2021 (D)
O caráter fluido da imagem fotográfica e a escrita da História são o tema deste dossiê. As interfaces históricas com a imagem técnica estática, analógica e/ou digital, são apresentadas em oito reflexões que emolduram discussões sobre as realidades e ficções erigidas a partir de recortes bidimensionais do mundo. Gestados em diferentes partes do Brasil, os artigos que seguem são um convite ao debate sobre modos de ver e regimes de visibilidade plurais.
A acuidade das histórias das imagens, de suas inscrições seminais, não compete a um consenso. Interessa-nos a partilha à Agamben sobre a contemporaneidade e o que nos cerca, nos aproxima, nos afasta. Interessa-nos o Kairós dos contos das imagens e seu tempo antagônico àquele de Cronos, a fim de evitar a nostálgica simbólica dos tempos idos e perceber o tempos vividos e não vividos por nós, suas agitações tempestuosas que incomodam e nos espaçam de uma noção de tempo peremptória.
A despeito de quase 200 anos de sua “descoberta”, a fotografia continua a despertar interesse e fascínio. Lançar luz sobre leituras imagéticas interseccionais, pois, se faz atual e urgente, especialmente diante da ascensão do seu alcance decorrente do ampliado acesso às mídias eletrônicas a um toque de distância, com a expansão de conexões sensíveis que ultrapassam mesmo a lógica dos hyperlinks e impactam nossos corpos.
Inicialmente, Boris Kossoy, pesquisador que figura entre os mais citados para pensar a fotografia no Brasil (Azoubel, 2019), problematiza a trama das representações fotográficas, suas realidades e ficções. Em “Fotografia e História”, ele examina de que forma a fotografia digital exacerba o potencial ficcional e estético das imagens e nos faz avançar sobre as reflexões que têm alicerçado investigações sobre o tema há mais de duas décadas.
Partindo dos “tipos” e “paisagens” contidos nos cartões-postais da coleção do cartofilista Augusto Oliveira, Cibele Barbosa reflete sobre um regime de visualidade marcadamente influenciado pela reprodutibilidade técnica da imagem. Em “De orientes e áfricas: visualidades coloniais nas imagens” ela sopesa tais registros para analisar o culto ao exótico e os olhares transnacionais sobre o “outro”.
Igualmente basilar para o estudo das imagens técnicas, a multitemática Lucia Santaella nos brinda com a discussão acerca dos registros gerados e/ou modificados com uso da tecnologia digital. Tratam-se, diz ela, de argumentos sobre as “incertezas conceituais acerca das categorias ontológicas e semióticas da fotografia” que decorrem de sua natureza metamórfica observada à luz da noção de “aparelho”, de Vilém Flusser.
Esse teórico é, aliás, a ponte para pensar o inconcebível na imagem de Joe Heydecker. Diogo Andrade Bornhausen apoia-se em escritos flusserianos ainda inéditos para tratar da fotografia como meio para uma crítica à imaginação banalizada por meio da problematização do fotodocumentário sobre as condições vividas pelo povo judeu no Gueto de Varsóvia (1941) como via para entendimento da realidade.
Rodrigo Leistner e Sílvia Mateus, por sua vez, ponderam sobre redes sociais, história e memória afrorreligiosa no que consideram híbrido de álbum fotográfico e diário: o Facebook. Ele e ela questionam como aquela comunidade faz uso dessa tecnologia para divulgação cultural de religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul a partir de uma vídeo montagem de várias fotografias antigas.
Na esteira da constituição da memória, Francisco Alves Gomes, José Victor Dornelles Mattioni e Maria Conceição de Sant’Ana Barros Escobar nos estimulam a refletir sobre a trajetória das fantasmagorias do passado no acervo da família Fortunato, constituído entre os anos de 1920 a 1990, suas fotografias, santinhos e recortes de jornais descartados, de São Paulo à Roraima.
Seguindo para Londrina, o Paulo César Boni compartilha entusiasmado relato sobre a história da cidade fotodocumentada de 2001 a 2020. O amor pelos espaços urbano e rural por meio de micro-histórias visuais plurais é arrazoado a partir das transformações paisagísticas eternizadas nos registros de projeto original desenvolvido pelo Curso de Especialização em Fotografia da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Finalmente, os contornos entre Arte e Imaginário são debatidos sob a égide das influências renascentistas sobre a fotografia jornalística contemporânea e a partir do pensamento da pensadora Susan Sontag. Em “Fotojornalismo: entre a História, a Arte e o documental”, Vinicius Guedes Pereira de Souza e Maria Eugênia Sá Martin da Natividade discorrem sobre como registros de crises nacionais e internacionais são inspirados e/ou derivados de obras clássicas que habitam o imaginário coletivo. Eis um menu de encher os olhos e provocar a mente, não?!
Na seção de artigos livres, encontram-se elencados quatro textos que versam sobre racismo e esporte, na pesquisa que aborda a Liga de Futebol que homenageia José do Patrocínio, de autoria de Christian Ferreira Mackedanz, Daniel Vidinha da Silva, Luiz Carlos Rigo. Nesse texto, a importância daquela liga é abordada no momento pós-abolicionista na cidade sul rio-grandense para os operários e negros de baixa rende em face ao elitismo local a partir da comunicação como objeto de pesquisa, por meio de jornais e periódicos.
Em seguida, Nelson Tomelin Jr. e Maria do Rosário da Cunha Peixoto escrevem sobre a cidade amazônica de Coari e o impacto resultante dos mutirões que pleiteavam moradia própria, advindos do campesinato em busca de solo firme, evitando os estragos das enchentes dos rios. Em “É Uma Comunidade. É Uma Coisa Comum”, os testemunhos orais e as memórias traduzem os modos de viver e ser desses trabalhadores.
Ainda sob a ótica da memória enquanto ethos, Marcella Gomez Pereira, Felipe Eduardo Ferreira Marta e Edson Silva de Farias lançam luz à formação de movimentos sociais e à reforma agrária na parte sul da Bahia: suas relações com as técnicas agroecológicas durante os processos de ocupação, bem como o papel da educação como ferramenta de transformação em contextos de conflitos de terras.
“E isto atéqui tive que vos escrever por vosso avisamento”, quarto e último artigo da seção, é assinado por Jerry Santos Guimarães e Marcello Moreira e versa sobre a análise do segundo cronista-mor da corte portuguesa, Gomes Eanes de Zurara, no período medieval.
Duas resenhas encerram este volume da Projeto História. Na primeira delas, “Um capítulo na história da esquerda brasileira”, o livro “O horizonte vermelho” é abordado. Publicado pela Editora Sulina, em 2017, e assinado por Frederico Bartz, o texto é enfocado por Carlos Quadros. Na sequência, a análise de “Gordos, magros e obesos”, de Denise Bernuzzi de Sant´Anna, publicado pela editora Estação Liberdade, em 2016, por Renato Marcelo Resgala Júnior em “À mesa farta, a fome e a gula”.
Desejamos que você, cara leitora/leitor, aprecie a leitura deste conjunto de ideias.
Até breve,
Estefania Knotz Canguçu Fraga (PUC-SP)
Maria Thereza Soares (IEMA/ UERJ)
Diogo Azoubel (Seduc-MA/PUC-SP)
SOARES, Maria Thereza; AZOUBEL, Diogo. Apresentação. Projeto História. São Paulo, v.70, p.3-6, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF]