“A distinção entre biografia e história é tão antiga quanto a historiografia grega”. A frase sintetiza o estudo célebre em que Arnaldo Momigliano (1971) demonstra como tal diferenciação originária, ao contrário de interditar, possibilitou as relações de proximidade e / ou de distanciamento entre ambas. Na conformação da história e da biografia como gêneros discursivos, entre a Antiguidade clássica e a atualidade, tal distinção tornou-se uma de suas decorrências, carreando consigo debates e tensões acerca de suas idiossincrasias e interseções.
Se, por um lado, a biografia por vezes carregou o estigma – ou, quem sabe, a virtude – de se apresentar como uma narrativa híbrida ou “bastarda”, como ponderou Virgínia Woolf e outros que apostaram no valor cognitivo de narrativas vivenciais, no alvorecer do século XX; por outro, como sabemos, a história não perdurou como modalidade discursiva “pura” e inalterável, desde que começou a ser escrita entre os antigos.
Neste sentido, a função moral presente no modelo plutarquiano antigo de narração das vidas exemplares foi decisiva para manter a estreita conexão entre biografia e história, enquanto esta última permaneceu concebida como “mestra da vida”. O estatuto da biografia tornou-se problemático para os historiadores na medida em que a história adquiriu sua significação moderna, deixando de designar apenas os relatos históricos particulares para se converter em conceito “coletivo singular”, como agente e sujeito de si mesma.
A par disso, no século XIX, constituiu-se momento ímpar, no curso do qual biografia e história adquiririam formas e funções específicas, materializadas nos usos políticos e sociais da palavra impressa, em paralelo ao valor crescente do romance, nas suas experimentações inovadoras acerca das histórias de vida. Nesse mesmo período, muitos autores permaneceram firmes na convicção de que a história se fundava nos feitos dos grandes homens, compartilhando o ponto de vista contido no aforismo do inglês Thomas Carlyle de que “a história é a essência de inúmeras biografias”. Concomitantemente ao processo de modernização das práticas historiográficas, a escrita biográfica também incorporaria os imperativos dirigidos aos historiadores: dos biógrafos, passou-se a exigir que as suas narrativas fossem “verdadeiras”, ou seja, que estivessem apoiadas menos nas fórmulas retórico-poéticas de persuasão moral dos leitores, para se fundarem na autoridade das fontes e dos testemunhos diretos dos fatos relatados.
Ao longo do século XX, a vitalidade dos dois gêneros tornou-se uma evidência e, no caso da biografia, não é necessário reafirmar a sua notória popularidade e seu duradouro êxito no mercado editorial. Entre as décadas de 1920 e 1950, especialmente, tal êxito editorial se articulou às propostas da new biography, ou biografia moderna, aberta, como tal, a muitas – e polêmicas – experimentações, nas parcerias com a história e o romance.
Nos últimos trinta anos, entre os historiadores profissionais, a biografia histórica conquista espaço, cada vez mais, como opção metodológica para experiências bem sucedidas de pesquisa. Poderíamos perguntar, então, sob a inspiração do instigante artigo de Jacques Revel (2010), se a biografia nos coloca algum problema historiográfico. Em caso afirmativo, caberia seguir indagando se tal problema deve nos remeter às aporias teóricas que envolvem os binômios particular e geral / indivíduo e sociedade, ou se a questão se apresenta como sintoma de uma conjuntura específica da produção intelectual acadêmica. Nessa conjuntura, como destacado por Beatriz Sarlo (2005) – tempos de guinada subjetiva – as ciências sociais, nelas incluindo-se a história, vivenciam a proliferação de apropriações diversas da escrita biográfica, possibilitando, em complementaridade, a indagação provocadora de Leonor Arfuch (2010) acerca dos dilemas da subjetividade contemporânea.
No campo historiográfico, a biografia foi então instrumentalizada como recurso metodológico e narrativo para fazer frente aos modelos de macroanálise dominantes nas ciências sociais e, notadamente, à história social em sua vertente quantitativista. Neste sentido, Sabina Loriga, cujo trabalho se constitui em referência obrigatória sobre o tema, em entrevista que abre o dossiê, chama a atenção para duas “utopias” que, segundo ela, subjazem no aclamado retorno do biográfico nas últimas décadas: a primeira seria a da representatividade biográfica do indivíduo, investida do estatuto de ponte e espelho para a compreensão de categorias sociais mais abrangentes. Uma segunda utopia estaria na pretensão “realista” de apreender uma época ou uma civilização, reconstituindo cada um de seus elementos, através do método prosopográfico, para se chegar a “categorias interpretativas plenamente aderentes à realidade empírica”.
Usualmente, o tema das relações entre história e biografia vem sendo abordado como justificativa e desdobramento teórico secundário dos trabalhos de pesquisa biográfica, empreendidos no campo das ciências sociais. Diferentemente dessa perspectiva, a proposta deste dossiê, em diálogo com os interesses de pesquisa de suas organizadoras, foi aprofundar a discussão, trazendo-a para o âmbito das pautas de investigação que hoje perpassam a teoria da história e a história da historiografia. Nos artigos aqui reunidos, os contatos entre escrita histórica e escrita biográfica, abordados sob diferentes recortes cronológicos, apresentam-se como problemas primordiais de reflexão e de análise, procurando ilustrar o espaço fértil de questões que pode vir a ser ainda mais explorado.
É dessa forma que os ensaios biográficos de Hannah Arendt, estudados por Renata Torres Schittino, revelam que as incursões da filósofa no gênero não derivavam de uma pretensão de oferecer retratos psicológicos de indivíduos “exemplares”, tampouco se orientaram pelo pressuposto de que as vidas de figuras públicas ilustres seriam o reflexo de processos históricos ou a encarnação de uma época, como supostos representantes de um Zeitgeist. A prática biográfica de Arendt explicita uma teoria da história, mantendo-se atrelada à reflexão de alcance filosófico mais amplo sobre a ação dos sujeitos no mundo e o jogo interminável de construção do sentido histórico dessas ações, seja pela historiografia ou pela biografia.
Por sua vez, a valorização recente das vidas de personagens comuns e “disparatados”, em abordagens como a da micro-história, não representou apenas um contraponto aos modelos historiográficos quantitativos da história social. Eliane Misiak, sob a perspectiva da teoria semiótica, oferece uma contribuição relevante para o aprofundamento da questão, demonstrando como o novo modelo de biografia também resultou de alterações na concepção dos valores a partir dos quais o indivíduo emerge como ator histórico.
Como abordar a singularidade de uma vida como problema de pesquisa em história, sem cair na tentação de pressupor as trajetórias individuais como amostras representativas do todo social? A indagação serviu de fio condutor para Adriana Barreto de Souza traçar um instigante exercício de reflexão não apenas sobre o seu próprio percurso de investigação, mas também sobre os desafios teóricos implicados nas apropriações da biografia como forma de elaboração da experiência.
Os usos da biografia como recurso narrativo ou como método investigativo pelos historiadores não constituem uma demanda da conjuntura intelectual recente, pois perpassaram o contexto letrado oitocentista, pautado pela elaboração das grande narrativas nacionais. Como exemplo paradigmático dessa instrumentalização, Evandro dos Santos analisa as inúmeras digressões biográficas e, em especial, aquelas dedicadas aos protagonistas heroicos da guerra contra os holandeses, como recurso heurístico fundamental na densa História geral do Brasil, de Varnhagen.
O lugar da biografia na relação entre figuração do autor, apreciação crítica da obra e a constituição de referências patrimoniais e artísticas, nos quadros da historiografia humanista, no século XVI, é analisado de forma perspicaz por Rejane Bernal Ventura, por meio da comparação entre o Dialogo della pittura intitolato l´Aretino, de Lodovico Dolce, e a obra de Giorgio Vasari, Le vite de´più eccellenti architetti, pittori et scultori italiani, da Cimabue, insino a´tempi nostri.
Quais seriam ou deveriam ser os limites entre liberdade e determinismo na elaboração narrativa da vida de um indivíduo? Essa questão, e outras dela derivadas, informam as interessantes reflexões de Alexandre de Sá Avelar sobre o potencial cognitivo da biografia para a escrita da história nas formulações de Wilhelm Dilthey sobre a constituição das “ciências do espírito”, no alvorecer do século XX.
Por fim, importa ressaltar que, sejam quais forem os contatos entre história e biografia, eles desvelam um problema recorrente, cuja formulação remonta à clássica disputa entre o geral e o particular, corolário da comparação aristotélica entre poesia e história, que orientou a hierarquização dos saberes no mundo ocidental. Caberia, então, lembrarmos que, resguardadas as suas especificidades, a afinidade inegável e desafiadora entre os que escrevem história e os que narram vidas, está precisamente na tarefa hermenêutica de construção de sentido para a experiência vivida, a partir das articulações possíveis, e nem sempre necessárias, entre o singular e o universal, entre as partes e o todo, entre o valor das ações de cada um e de tantos outros, no mundo.
Referências
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
CARLYLE, Thomas. Os heróis. 2ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1963.
MOMIGLIANO, Arnaldo. Les origines de la biographie em Grèce ancienne. Paris: Strasburg: Circé, 1971.
REVEL, Jacques. A biografia como problema historiográfico. In:_____. História e historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Ed. UFPR, 2010, p. 235-248.
SARLO, Beatriz. Tiempo pasado: cultura de la memória y giro subjetivo. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005.
WOOLF, Virginia. The art of biography. Atlantic Monthly, April, 1939.
Márcia de Almeida Gonçalves – Professora adjunta Universidade do Estado do Rio de Janeiro. agmarcia@uol.com.br
Maria da Glória de Oliveira – Professora adjunta Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro mgloriaprof@gmail.com
GONÇALVES, Márcia de Almeida; OLIVEIRA, Maria da Glória de. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.5, n.9, ago., 2012. Acessar publicação original [DR]
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