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História e Arqueologia: diálogos interdisciplinares/Dimensões – Revista de História da UFES/2022

Nos últimos anos, na esteira do spatial turning, 2 a História ampliou suas perspectivas metodológicas e documentais, afastando-se de uma tradicional lógica logocêntrica, o que a posicionou na seara dos estudos atinentes à cultura material e a associou intimamente a disciplinas com agendas afins de investigação, a exemplo da Arqueologia. A materialidade dos homens no tempo emerge, a partir deste momento, como elemento ativo na história. Os lugares ocupados pelos indivíduos são agora percebidos como espaços onde suas ações se desenvolvem, condicionando, não raras vezes, seus movimentos e evocando simbolicamente uma gama de representações. Dentro desta perspectiva, não é mais possível entrever os eventos pretéritos sem considerar o ambiente físico onde eles aconteceram. As paisagens e os lugares construídos, imaginados e apropriados pelos homens não são mais ignorados, sendo compreendidos como uma dimensão fundamental da história (BARROS, 2017; MARTINS; SILVA, 2019, p. 97-101).

O diálogo da História com a Arqueologia, contudo, foi construído por intermédio de um percurso difícil e de afastamentos mútuos. A utilização da cultura material como fonte histórica é um procedimento metodológico ainda recente na historiografia, caminhando pari passu com a própria ruptura com a ideia de documento-verdade – notadamente as fontes escritas e de caráter oficial. Em grande medida, todos os documentos históricos são hoje vistos como “monumentos”, no sentido de serem, antes de tudo, o resultado de uma construção das sociedades que os produziram e também das épocas sucessivas que os abrigaram, mesmo que de modo discreto, silencioso, até que alguém os devolva à luz (LE GOFF, 1996, p. 545). Nesse sentido, nas últimas décadas, os historiadores vêm cada vez mais diversificando o leque de seus corpora documentais, debruçando-se, não raras vezes, sobre artefatos materiais de toda ordem, percebidos, hoje, como vestígios “deixados” pelos homens no tempo e como fontes preciosas de investigação (BARROS, 2019, p. 15-17).

Concomitantemente a esta diversificação da matriz documental na História, no campo da Arqueologia também houve uma verdadeira revolução epistemológica a partir dos anos 1960, com o desenvolvimento da New Archaeology – também cognominada de Arqueologia processual –, 3 aproximando-se de um viés claramente antropológico (REDE, 2012, p. 137). Desde então, a Arqueologia afastou-se de uma perspectiva que a excluía do conjunto das demais ciências sociais e que a percebia somente como uma prática de campo, uma disciplina auxiliar que produzia dados empíricos para a posterior interpretação de historiadores, sociólogos e antropólogos. Atualmente, os arqueólogos, utilizando métodos próprios para investigar os artefatos materiais deixados pelo homem no tempo e no espaço, questionam-se eles próprios sobre o funcionamento e as transformações das sociedades pretéritas, necessitando, para tanto, de um constante diálogo com uma miríade de disciplinas com agendas de pesquisa comuns, tal como a História, a Geografia, a Sociologia, a Linguística, entre outras. Em suma, a Arqueologia, nas últimas décadas, se afirmou como uma disciplina que propõe investigações, problemas e inferências científicas, tendo como base empírica a cultura material (FLORENZANO, 2003; 2022, p. 17; FUNARI, 2010, p. 18).

Tendo como base a análise da cultura material, tanto historiadores como arqueólogos, presentemente, a percebem como todo aquele segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem em um determinado contexto histórico (MENESES, 1983, p. 112). Por apropriação, pressupõe-se os artefatos materiais como simultaneamente produtos e vetores de relações sociais: produto porque resultam da ação humana, de processos de interações sociais que criam e transformam o meio físico; vetores porque constituem um suporte e um condutor para a efetivação das relações entre os homens, impondo-lhes possibilidades e limites específicos (REDE, 2012, p. 147). A perspectiva do mundo material como uma instância ativa, como um agente histórico que interfere nas ações humanas, aproxima de forma umbilical os protocolos de investigação de historiadores e arqueólogos. Ambos se interrogam sobre a cultura material e a utilizam como fonte, ambos a concebem como elementos fulcrais para a compreensão das sociedades no passado. O diálogo interdisciplinar entre História e Arqueologia se coaduna numa necessidade mútua de auxílio e de interlocução. Ao arqueólogo, é mister se debruçar sobre as múltiplas interpretações históricas e acerca das próprias querelas historiográficas relacionadas com o período compreendido pelos artefatos estudados, fato que leva muitos autores, a exemplo de Ulpiano de Meneses (1983, p. 113), a denominar a Arqueologia como uma espécie de “História da cultura material”. Ao mesmo tempo, os dados materiais trazidos à luz pela Arqueologia têm o potencial de confirmar, complementar e mesmo contradizer as informações das fontes históricas tradicionais, franqueando à História possibilidades mais amplas de compreensão do passado (FUNARI, 2010, p. 86).

Tendo em vista esta inevitável interlocução entre as duas disciplinas, propomos o Dossiê intitulado História e Arqueologia: diálogos interdisciplinares. Nos diversos artigos ora publicados pela Revista Dimensões, destacam-se percepções histórico-arqueológicas que evidenciam uma multiplicidade de objetos de investigação, remontando a épocas tão díspares quanto a Antiguidade greco-romana e o período colonial e imperial na Província do Espírito Santo. A pluralidade de interpretações produzidas pelos autores que contribuíram com o Dossiê demonstra a vitalidade da cultura material, e do próprio diálogo entre História e Arqueologia, como pedra angular de uma necessária e bem-vinda renovação historiográfica.


Notas

2 “Por virada espacial compreende-se o princípio segundo o qual a estrutura arquitetônica e urbanística, ou seja, os arranjos físicos dos edifícios, monumentos, percursos, nós, margens, não devem ser interpretados como uma arena inerte na qual a vida social se desenrola, mas sim como um meio através do qual as relações sociais são produzidas e reproduzidas” (MARTINS; SILVA, 2019, p. 97).

3 A partir da década de 1980, com o influxo de influências da linguística e das críticas ao estruturalismo, há a emergência de um novo paradigma arqueológico, denominado de pós-processual. Desde então, os dados da cultura material foram também interpretados em sua dimensão representativa e simbólica, abrindo novos possibilidades de inferência ao campo da Arqueologia (REDE, 2012, p. 140).


Referências

BARROS, J. A. Fontes históricas: introdução aos seus usos historiográficos. Petrópolis: Vozes, 2019.

BARROS, J. A. História, espaço, geografia: diálogos interdisciplinares. Petrópolis: Vezes, 2017.

FLORENZANO, M. B. B. Arqueologia clássica e Ciências Humanas. Anos 90, n. 17, p. 13-22, 2003.

FLORENZANO, M. B. B. Arqueologia e história na concepção moderna da cidade grega. Caminhos da História, n. 1, v. 27, p. 14-26, 2022.

FUNARI, P. P. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010.

LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.

MARTINS, M.; SILVA, G. V. Cidade antiga e sociedade: narrativas e diálogos interdisciplinares. Atas do II Congresso Histórico Internacional: as cidades na história – sociedade, p. 75-108, 2019.

MENESES, U. B. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História, n. 115, p. 103-117, 1983.

REDE, M. História e cultura material. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 131-150.


Organizador

Belchior Monteiro Lima Neto – Professor adjunto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), do qual é Coordenador pelo biênio 2021-2023. Pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano, seção Espírito Santo


Referências desta apresentação

LIMA NETO, Belchior Monteiro. Apresentação. Dimensões – Revista de História da UFES. Vitória, n. 49, p. 5-8, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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