A história dos conceitos e a história intelectual consolidaram-se, desde a segunda metade do século XX, como um dos principais campos de pesquisa da historiografia, dos seus focos e margens de inovação. Com efeito, sob o crivo e os desafios das ciências sociais, a tradicional história das ideias, desprovida de uma contextualização social, passou desde a década de 1950 por diversas mutações, geradoras de múltiplas vias e interrogações, num arco internacional de propostas metodológicas que tem enriquecido o debate sobre a História.
A genealogia complexa deste debate tem um mapa cheio de pontos e interseções. Dos estudos contextuais (Quentin Skinner e John Pocock) até a análise pós-analítica (Mark Bevir), em Inglaterra; do exame amplo e denso da historicidade e da semântica dos conceitos (Reinhart Koselleck, Joachim Ritter e Otto Brunner), na Alemanha; da variante pósestruturalista (Dominick Lacapra, David Harlan), empreendedora de uma história intelectual voltada para a problemática do texto, para além do contexto e da retórica, enquanto criadora de sentido, nos Estados Unidos, onde, mais recentemente, se vem pesquisado a história intelectual dentro de uma perspectiva da história global e do cruzamento transatlântico dos conceitos (David Armitage). Na França rearticula-se uma história conceitual a partir do estudo do político (Pierre Rosanvallon) e se examina as práticas e as trajetórias dos intelectuais ampliando o estudo em história intelectual (JeanFrançois Sirinelli). A historiografia ibero-americana começou a oferecer trabalhos nessa área de pesquisa a partir de redes de investigação como a Iberconceptos (Javier Fernández Sebastián). No Brasil, a pesquisa de João Feres e Júnior Marcelo Jasmim reatualizam a história das ideias em uma perspectiva hermenêutica, transatlântica e política.
No horizonte atual, o que é impressivo neste mapa, nas suas porosidades e encruzilhadas, ainda largamente por descobrir e criticar, num timing marcado pela equação crítica do global e do pós-colonial, é a forma com as discussões mais amplas sobre o estatuto do conhecimento histórico enquanto valor estratégico ganham outra dimensão, desconstruindo e reciclando as expetativas catastróficas dos futuros pós-históricos, integrando-os numa interrogação sobre as identidades históricas da humanidade, das suas linguagens e géneros, mutantes e interatuantes.
Assim, o presente dossiê história dos conceitos e história intelectual: conexões teórico-metodológicas pretende disponibilizar ao público leitor uma gama variada de reflexões a partir desse vasto campo historiográfico em construção: a história dos conceitos e a história intelectual. Os autores e autoras aqui reunidos mesclam inovação temática e sofisticação metodológica.
No primeiro contributo do dossiê, Nota sobre o estudo dos intelectuais: as contribuições teóricas de Bourdieu para o estudo de trajetórias intelectuais de agentes e instituições, Jefferson Telles Martins examina a temática sobre intelectuais e as perspectivas de análise metodológica sobre esse objeto. Para explorar seu objeto de investigação, o autor inicia sua reflexão a partir de duas hipóteses. Por um lado, analisa os aportes teóricos do sociólogo francês Pierre Bourdieu para a investigação dos intelectuais, tais como a prosopografia e o estudo de redes, por outro, averigua a possibilidade metodológica para a demarcação de um determinado grupo de intelectuais ser investigado.
Em O conceito de etnogênese: o dinamismo histórico das identidades coletivas, Leandro Goya Fontella investiga o caráter epistêmico do conceito de etnogênese na interseção entre história e antropologia. Com isso, o autor trabalha as narrativas que entendiam ao populações indígenas como vetor da substância de indianidade que abolia-se no aculturamento a partir da expansão colonial europeia. Desse modo, interroga o conceito de etnogênese e os conflitos na esfera das relações de dominação.
Refletindo sobre A história intelectual e a virada ontológica na antropologia, Carlos Henrique Armani propõe-se a examinar o aporte que o giro ontológico na antropologia oferece a história intelectual. Desse modo, o autor entende-a como uma réplica ao giro linguístico, ao propor a prioridade ao ente, o que fortalece seu caráter materialista e antihermenêutico.
Com Charles Darwin: ateísmo e evolucionismo no século XIX, Ricardo Oliveira da Silva explora a ideia evolucionista elaborada por Darwin no século XIX. Para isso o autor aborda duas obras, A origem das espécies (1859) e A origem do homem e a seleção sexual (1871). Para Silva, tal ideia evidencia uma ruptura na visão de mundo judaico-cristã ocidental e, assim, Darwin converte-se um parâmetro dos ateístas no século XXI.
Em Conceitos, intelectuais e ideias: o entrelaçamento de diferentes dimensões do campo da história, no caso do debate entre Eugênio Gudin e Celso Furtado (1950-1964), Neilaine Ramos Rocha de Lima foca o debate entre dois intelectuais nas décadas de 1950 e 60, Celso Furtado e Eugenio Gudin. A autora interpreta a constituição de diferentes entendimentos da dinâmica da história: o desenvolvimentismo de Furtado e o liberalismo de Gudin. Desse modo, a partir desse confronto intelectual a autora que analisar a vida política e a história intelectual do Brasil.
Por seu turno, Luiza Nascimento de Oliveira da Silva, em A ideia de defesa e conceitos nos tratados de arquitetura militar: instrumentos políticos (1650-1750), estuda a conexão entre a ideia de defesa para as cidades portuguesas dos séculos XVII e XVIII e um entendimento de poder assentado na ideia de regularidade para a urbanização e na administração política. Desse modo, para a autora, o estudo da arquitetura militar mostra a concordância entre Defesa e Estado.
Aos Bragança, Angola: a obra manuscrita de Oliveira de Cadornega como moeda de troca para permanecer em Angola (século XVII) examina a obra de História geral das guerras angolanas, de António de Oliveira de Cadornega. Priscila Maria Weber Weber quer compreender algumas experiências contextuais de Cadornega, tais como tributar sua obra a D. Pedro II e, também, o tramar uma ligação com a dinastia dos Bragança em seus escritos.
No oitavo e último texto do dossiê, Os processos migratórios do sul catarinense na perspectiva do Pe João Leonir Dall’Alba: operação discursiva e a mobilização de conceitos, Michele Gonçalves Cardoso e Emerson César de Campos dissecam os conceitos basilares que constituem a operação discursiva do padre João Leonir Dall’Alba. Portanto, os autores analisam certas obras do padre Dall’Alba sobretudo as que expõem os movimentos migratórios no sul catarinense.
Na secção de artigos livres, no primeiro artigo, Sentimentalismo e kitsch: pontos cegos no modernismo artístico, Gerson Luís Trombetta analisa, partindo do entendimento de Clemente Greenberg que distingue o modernismo por sua constituição “limpa” das formas de arte, o Kitsch como o exemplo dos componentes abdicados pela estética moderna. Dessa forma, Trombetta trabalha com o argumento que o Kitsch significa algumas tensões não resolvidas na concepção modernista de arte.
No segundo e último artigo livre, Saúde e Doença: A Resistência Médica durante a Ditadura Militar na Revista Saúde em Debate (1977), Éder Mendes de Paula analisa a ligação, no decurso da ditadura militar, entre os graus de penúria que afligiam o povo e as consequências deste fato no ingresso e fornecimento dos serviços de saúde e, também, a difusão de doenças nas camadas mais populares.
Cabe, finalmente, uma palavra semeada de expetativa: os organizadores esperam que os artigos aqui reunidos possam ser a fonte de novos pesquisas e objeto de novos temas, numa atenção redobrada às ideias, aos conceitos, aos seus produtores e agentes, numa combinação imensa de problemáticas históricas e sociais.
Uma boa leitura a tod@s!
Fabrício Antônio Antunes Soares – Universidade do Passo Fundo / Brasil.
Francisco Manuel Ferreira de Azevedo Mendes – Universidade do Minho / Portugal.
SOARES, Fabrício Antônio Antunes; MENDES, Francisco Manuel Ferreira de Azevedo. Editorial. História – Debates e Tendências, Passo Fundo- RS, v. 20, n. 1, jan / abr, 2020. Acessar publicação original [DR]
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