Com o advento do universo digital, a história dos objetos materiais, também metaforicamente designada como história tangível, é uma das muitas áreas, entre tantas, cada vez mais desprezadas das Humanidades. Como fonte de conhecimento, a história tangível apresenta vantagens e desvantagens. A principal virtude dos artefatos do passado é a relativa ausência de preconceito intencional e o seu maior grau de autenticidade. Por outro lado, o passado que se descortina nos objetos e fragmentos é de âmbito restrito e não têm vida própria, eles precisam dos relatos, das reminiscências e principalmente, das narrativas dos historiadores. Relíquias e artefatos materiais do passado também sofrem maior desgaste do que fontes impressas. Impressos podem disseminar- -se de modo irrestrito, mas artefatos físicos sofrem desgaste constante, logo se tornam irreconhecíveis nos tempos presentes e, não raro – reforçando aquela nossa crescente vocação pelo descarte – acabam no limbo dos refugos da história.
Daí a importante e oportuna publicação da História do Rio de Janeiro em 45 objetos, uma microhistória dos artefatos e da cultura material da cidade, em formato enciclopédico e escritos por 51 historiadores –, cada um elaborando uma narrativa em forma de crônica, relacionando os objetos aos eventos da história carioca e brasileira. Parcialmente inspirado no livro A História do Mundo em 100 objetos, do diretor do Museu Britânico, Neil MacGregor, o livro brasileiro é mais abrangente pois, não se limita ao acervo de um único museu, fornecendo um amplo panorama dos mais diversos aspectos da historia do Rio de Janeiro, desde a imagem de São Sebastião, – do século 16 – até o mais recente, que é um fragmento do viaduto demolido da Perimetral, que foi parte das reformas urbanas e da revitalização da zona portuária no ano de 2013. Também não se trata apenas de objetos excepcionais, que acabam virando relíquias pitorescas, mas de fragmentos significativos que relatam acontecimentos, personagens, paisagens, práticas e costumes desaparecidos do universo urbano carioca.
Embora muita gente saiba, a fôrma de pão-de-açúcar, feita de ferro e madeira –, que era um artefato corriqueiro nos engenhos da Guanabara no século 17, pois servia para o processo de “purga” na cristalização do açúcar – é o objeto que representa o maior legado econômico daquela época, pois foi ele que forneceu o nome à paisagem que, afinal, transformou-se no símbolo da cidade: o Pão-de-Acúcar. Mais antiga ainda é a imagem de São Sebastião, provavelmente trazida para o Rio, com a armada de Estácio de Sá, em 1565.
Mas saindo fora de tais relíquias consagradoras, nosso olhar desvia-se para objetos que evocam outras histórias, não muito benevolentes. Como as enormes traves de madeira que serviram para enforcar Tiradentes, em 1791: soterradas no antigo calabouço do Aljube (prisão eclesiástica) foram descobertas em 1893 e depois consagradas pelos republicanos que buscavam ansiosamente heróis para o novo regime – dessa necessidade de inventar heróis republicanos, inclusive, provém as dúvidas sobre a autenticidade. De qualquer forma, trata-se realmente de uma trave para os enforcamentos, comumente realizados na época, relembrando alguns dos mais lúgubres eventos da história brasileira. Mais artefatos de perversidade? Um aparelho de eletrochoque da década de 1930, utilizado no antigo Hospício D. Pedro II (depois, Hospital Nacional de Alienados) para controle de “internos problemáticos”, mas que acabou sendo utilizado como instrumento de tortura para homossexuais, usuários de drogas e, sobretudo, dissidentes políticos. Só não perdurou e nem foi mais utilizado graças às resistências da Dra. Nise da Silveira, em 1936, a qual introduziu tratamentos mais humanizados na mesma instituição que hoje, merecidamente, transformou-se no Instituto Municipal Nise da Silveira.
Já a terrina com a imagem do Morro do Castelo, evoca uma das muitas paisagens desaparecidas da cidade, cuja destruição já foi dramaticamente narrada por escritores sensíveis como Lima Barreto. Para os aficionados pelo futebol, até mesmo a bola do milésimo gol de Pelé integra a coletânea. Mas, embora também haja dúvidas sobre a sua autenticidade – pois o autógrafo do jogador registra 11 de novembro enquanto o gol ocorreu no jogo Vasco da Gama X Santos, em 19 de novembro de 1969 – o objeto está exposto junto à rede do mesmo gol e, serve como pretexto para uma narrativa que acaba por cobrir a história de importantes eventos esportivos na cidade. É possível também aproveitar a crônica sobre outros objetos ligados à vida musical e festiva da cidade, como a incrível escultura representando o Sambódromo; as batutas de Villa-Lobos ou o Tritonicon de Anacleto de Medeiros – um instrumento de sopro, fabricado em metal e composto de um sistema de quinze chaves – que o famoso clarinetista utilizava quando esteve à frente da Banda do Corpo de Bombeiros da cidade, entre 1896 e 1907. A saia usada por Carmem Miranda, em apresentações nos Cassinos cariocas no final dos anos 1930 – idealizada por J. Luiz Borgerth e inspirada em Di Cavalcanti – também é tema de uma ampla reconstituição de época e da história dos espetáculos. Até a “Boneca Barbie e seus amigos do Rio”, um conjunto de bonecas que evoca o ícone da cultura pop do século 20, desde a sua criação norte-americana em 1959 – comparece e serve de pretexto para uma crônica sobre o imaginário das praias cariocas e sobretudo, para mostrar como a relação dos homens e mulheres com os prazeres do mar se alterou ao longo dos tempos. Há ainda uma flor positivista, peça curiosíssima, bordada por Bernardina Botelho de Magalhães, filha de Benjamin Constant. E mais: a câmera fotográfica de Marc Ferrez, a vitrine usada na Exposição Internacional de 1922, as xícaras de café do antigo Estado da Guanabara e até mesmo o pince-nez de Machado de Assis.
Ao ressuscitar o modo de vida de milhões de pessoas que não deixaram vestígios guardados, os artefatos não apenas compensam o preconceito que superestima as fontes escritas como também tornam o conhecimento histórico mais pluralista e público. É o que se percebe no capítulo sobre os estandartes do clubes abolicionistas de 1880, os quais, por terem sido retirados para restauração, escaparam milagrosamente do incêndio que atingiu a Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Ou do curiosíssimo rola-rola de favela, da década de 1940: um barril, envolvido por borrachas de pneu de caminhão e um vergalhão para puxá-lo que servia para o transporte de água morro acima. Não foi, portanto, apenas “a lata d’água na cabeça”, imortalizada pelo samba do mesmo nome, gravado por Marlene em 1950, que simbolizou a extrema precariedade da vida nas favelas e morros cariocas.
Os objetos – todos eles acompanhados de suas imagens – e suas histórias quase sempre antecedem a escrita e revelam dimensões da vida humana não captadas pelo registro textual, possibilitando reconhecer vozes não contempladas em suportes escritos. Ao narrar a história destes artefatos em seus locais de origem – lugares que na atualidade ganharam outros nomes e outras funções – o livro como um todo permite articular uma verdadeira cartografia da história da cidade e dos seus inúmeros recantos. Como os objetos existem em diferentes instituições e museus, o livro também pode servir como um inteligente roteiro de acervos espalhados pelo Rio de Janeiro, ampliando a nossa concepção de patrimônio cultural urbano, quase sempre dominada apenas pelos bens materiais imóveis.
Talvez o maior símbolo da importância desta publicação seja o Vaso de cerâmica Tupinambá, provavelmente datado do ano 850 D.C. – e consumido pelo desastroso incêndio do Museu Nacional, em setembro de 2018. O receio é que a imagem – e a belíssima crônica que o acompanha – talvez acabe se transformando no único registro que sobreviveu: uma relíquia, literalmente
Resenhista
Elias Thomé Saliba – Historiador, professor titular da USP e autor, entre outros livros, de Raízes do Riso (São Paulo: Companhia das Letras, 2002) e coordenador do site humorhistoria.wordpress.com
Referências desta Resenha
KNAUSS, Paulo; LENZI, Isabel; MALTA, Marize. (Orgs.). História do Rio de Janeiro em 45 objetos. Rio de Janeiro: FGV Editora; Faperj, 2019. Resenha de: SALIBA, Elias Thomé. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ano 27, n.27, p. 183-186, 2019. Acessar publicação original [DR]
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