A corrente de ação e pensamento tributária à longa trajetória política e intelectual de Karl Marx e Friedrich Engels, desenvolvida por uma miríade de revolucionárias e revolucionários sob a sua inspiração, incorporada em diferentes organizações e reverberando em teorizações nos mais distintos campos, tem como uma de suas marcas a ampla difusão global. A circulação do marxismo acompanhou o próprio espraiar da sociedade burguesa: ao invadir todos os espaços do globo, não apenas a burguesia cria um mundo à sua imagem e semelhança, mas também desenvolve “um intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações. E isso se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se patrimônio comum”1. Neste sentido, não é de estranhar que a ampliação das comunicações e migrações para a América tenha sido acompanhada de uma série de ideias radicais críticas que, enraizando-se no solo local, inspiraram a classe trabalhadora a não apenas pensar a sua inserção e situação em um mundo cada vez mais integrado pelo capital, mas também propor como superá-las.
Objeto assim longevo, a história do marxismo no Brasil não é tema novo na historiografia nacional. Esforços para a sua elaboração remontam às iniciativas de militantes diretamente envolvidos na formação da própria tradição marxista brasileira. É o caso de Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PCB em 1922, que décadas após, já um experimentado quadro, narraria a trajetória da imprensa operária nos primeiros anos do século2. Discutir imprensa política é discutir esforço de organização a partir da circulação de ideias e da iniciativa de agitação e propaganda. É evidenciar como se trata de dar carne a um corpo de ideias, ou seja, tratar da própria constituição de um marxismo no Brasil e brasileiro.
As memórias dos primeiros organizadores também constituem um indício importante da longevidade do marxismo enquanto tema de estudos para historiadoras e historiadores brasileiros. Os relatos clássicos de Leoncio Basbaum e Octávio Brandão, para ficar nos mais conhecidos, dão conta de importantes episódios e processos da constituição organizativa inspirada por esta corrente de pensamento e ação3. Em termos propriamente historiográficos, a iniciativa de Edgard Carone foi pioneira: já conhecido pelos seus volumes dedicados à história da República, o autor também se esforçou na elaboração de compilações de fontes referentes ao movimento operário brasileiro, como um todo, e à trajetória do Partido Comunista, em particular. É de sua lavra também um volume, menos conhecido, no qual discute O marxismo no Brasil a partir das leituras que circularam neste país até 1964 e eram de sua biblioteca (em boa medida adquirida a partir das obras que, outrora, foram de posse do já citado Astrojildo Pereira). 4
Muitos foram os desdobramentos posteriores em torno do marxismo enquanto objeto histórico. A história do movimento operário, com forte desenvolvimento nos últimos decênios, traz suporte ao conhecimento da trajetória do marxismo no Brasil. Uma importante compilação, com o mesmo título deste dossiê, veio a lume entre os anos 1990 e 2000, levada a cabo por pesquisadores de diferentes formações, universidades e orientações políticas.5 Não há o que estranhar aqui, tampouco: é próprio do marxismo a diferença de caminhos na ação política que se inspiram em uma mesma tradição. Esta pluralidade da política radical está manifesta na amplitude de organizações políticas abordadas na referida coletânea: do incontornável PCB a diferentes organizações trotskistas, passando pelas trajetórias de grupos como a POLOP e a AP até os partidos contemporâneos. Teóricos marxistas os mais variados também são objeto de estudo: das leituras de Lenin, Althusser, Gramsci e Trotsky no Brasil aos estudos e reflexões nacionais de Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré.
É possível perceber que a história do marxismo no Brasil compreende em si uma vasta gama temática e tudo que isso implica a um rico labor historiográfico, como diversidade de fontes, abordagens, recortes regionais e temporais etc. O seu desenvolvimento atual, por sua vez, não poderia ser mais afortunado. Na seara dos estudos biográficos, pesquisas referentes a diferentes marxistas nos permitem o conhecimento de nuances como a forma das leituras realizadas, as sociabilidades no seio das agremiações, os percalços da clandestinidade etc.6 Os estudos sobre o movimento operário, já mencionados, dispensam apresentações. A circulação internacional de ideias e militantes, por sua vez, desponta como importante objeto de atenção da historiografia, enriquecendo a compreensão de um objeto, por excelência, internacional. 7
A relevância da história do marxismo no Brasil e dos estudos a ela dedicados contrastam com a dupla oposição que esta sofre. O antimarxismo é tão longevo quanto o próprio marxismo. As suas expressões também são múltiplas. As leitoras e leitores podem ter em mente, para ficarmos no tempo que nos toca viver, tanto o obscurantismo bolsonarista – expressão brasileira de uma reação fascista a nível global -, quanto as mais variadas formas de anticomunismo que penetraram no campo da esquerda nas últimas décadas. Sobre esta oposição, vale relembrar de variadas criações de espantalhos em torno de esforços passados, seja na política, seja na historiografia. No que toca o bolsonarismo, por sua vez, trata-se de uma vertente reacionária cujo modus operandi demanda o constante conflito, e o fantasma do comunismo é um inimigo dileto seu. Daí, por exemplo, as constantes remissões a Gramsci e o “marxismo cultural”.
Este dossiê, História do marxismo no Brasil, não poderia ser mais oportuno, portanto. A temática é sempre necessária, especialmente em um tempo em que o marxismo deve servir de reserva de energia crítica para a historiografia. As lições de Marx, Engels e tantos outros seguem sendo bússola nos períodos turvos de crise e reação. Mais do que isso, porém, conhecer como militantes e organizações que nos precederam em problemas que insistem em ser repostos no cenário brasileiro é imperioso, e aí reside a grande contribuição do presente volume de História e Luta de Classes. Para além da bem vinda ampliação do conhecimento histórico sobre teorizações acerca da particularidade racial da estrutura de classes brasileira e sua inserção na divisão internacional do trabalho ou sobre o papel das organizações de mulheres no seio do PCB, para ficar em poucos exemplos, é inegável que os desafios – de longa, média e curta duração – que nos são colocados em uma conjuntura de barbárie ampliada demandam esta atualização nas armas da crítica.
Os artigos apresentados nesse número da História e Luta de Classes refletem a diversidade dos estudos marxistas e sua riqueza em termos historiográficos no Brasil. O primeiro texto é Escravidão e capitalismo na obra de Clóvis Moura, de Gabriel dos Santos Rocha, que apresenta um necessário resgate da obra desse historiador, pioneiro em uma perspectiva marxista nos estudos sobre escravidão e sua vinculação com a lógica do capital internacional. O segundo texto é A concepção política e estratégica de luta armada do PCdoB (1962-1976), de Gabriel Luiz Duccini Puia, que aborda as concepções do Partido Comunista do Brasil desde sua fundação até a Chacina da Lapa, abordando a linha geral da organização a partir dos debates contidos em seus documentos internos.
O artigo seguinte é Feminismo, Marxismo e Anticomunismo: estratégias de mulheres na Democracia Racionada (1945-1956), de Guilherme Machado Nunes, que traz para o debate o papel das militantes e organizações femininas vinculadas ao PCB no pós Segunda Guerra Mundial, mostrando o engajamento e participação ativa das militantes nas lutas populares daquele período. O quarto texto apresentado é Elementos para a História da Ação Popular no Ceará: uma análise a partir da atuação na Guerra das Castanheiras (Fortaleza, Ceará – 1968), de Marcelo Henrique Bezerra Ramos, que trata de uma importante greve de trabalhadoras da indústria de óleos, destacando a influência de militantes da AP na organização da categoria. Por último, o artigo Historiografia marxista na pós-graduação de História da Universidade Federal Fluminense nos anos 1970, de Wesley Rodrigues de Carvalho, traz questões importantes sobre a difusão do marxismo nos meios acadêmicos a partir da analise das primeiras dissertações desenvolvidas no Curso de Mestrado em História da UFF.
Esta edição completa-se com dois outros artigos e duas resenhas. O artigo “Fascismo Brasileiro: do Integralismo ao Bolsonarismo”, de Diorge Konrad, propõe uma reflexão sobre a pertinência do uso do conceito de fascista e realiza um balanço histórico do fascismo brasileiro, para então discutir o fascismo bolsonarista. Por sua vez, Elaine Bortone, no artigo “A indústria farmacêutica e a Ditadura Empresarial-Militar (1964- 1967)” desvela a intervenção do setor industrial farmacêutico da burguesia brasileira na articulação golpista que redundou no Golpe de 1964 e durante a ditadura civilempresarial-militar. A resenha de Rômulo Costa Mattos discute o livro Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, de Marcelo Badaró Mattos, e a resenha de Aruã Silva Lima apresenta o livro “The Red International of Labour Unions (RILU) 1920 – 1937”, de Reiner Tosstorf.
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Esta edição é finalizada em meados de março, quando pouco mais de um ano depois dos primeiros casos registrados no Brasil, em meio ao colapso sanitário que se generaliza, o país registra já 290 mil mortes por Covid-19 nos subdimensionados números oficiais, resultado das políticas genocidas do governo Bolsonaro. O negacionismo convertido em política oficial segue produzindo seus frutos e, entre avanços e recuos, o projeto de fascistização que se expressa nas reiteradas ameaças de fechamento político e nas manifestações antidemocráticas, permanece como ameaça que precisa ser denunciada e combatida.
Março de 2021
Notas
1 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. “Manifesto Comunista”. IN: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LENIN, Vladimir. Manifesto Comunista; Teses de Abril. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 25.
2 Originalmente uma conferência na Associação Brasileira de Imprensa em 1947, o referido texto veio a lume em uma publicação clandestina do PCB em 1970, sendo publicado novamente em Novos Rumos, de mais fácil acesso. Cf: PEREIRA, Astrojildo. “A imprensa operária no Brasil”. N. 18-19. Novos Rumos. Marília, 1990, pp. 82-88.
3 BASBAUM, Leoncio. Uma vida em seis tempos (memórias). São Paulo: Alfa-Ômega, 1976; BRANDÃO, Octávio. Combates e batalhas. (Memórias). Vol. I. São Paulo: Alfa-Ômega, 1978.
4 CARONE, Edgard. O marxismo no Brasil (das origens a 1964). Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.
5 VV. AA. História do marxismo no Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 2007. 6 volumes.
6 PRESTES, Anita. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2015; PERICÁS, Luiz Bernardo. Caio Prado Júnior: uma biografia política. São Paulo: Boitempo, 2016.
7 BARTZ, Frederico. Movimento operário e revolução social no Brasil: ideias revolucionárias e projetos políticos dos trabalhadores organizados no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Porto Alegre entre 1917 e 1922. Tese (Doutorado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2014; LIMA, Aruã. Comunismo contra o racismo: autodeterminação e vieses de integração de classe no Brasil e nos Estados Unidos (1919-1939). Tese (Doutorado em História Social). São Paulo: USP, 2015.
Organizadores
Gilberto Calil – Editor.
Carlos Fernando Quadros – Coordenador do dossiê.
Frederico Bartz – Coordenador do dossiê.
Marcelo Badaró Mattos – Coordenador do dossiê.
Referências desta apresentação
CALIL, Gilberto; QUADROS, Carlos Fernando; BARTZ, Frederico; MATTOS, Marcelo Badaró. Apresentação. História & Luta de Classes, ano 16, v.31, p.5-8, mar.2021. Acessar publicação original [DR]
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