História do Cone Sul | Amado Luiz Cervo e Mario Rapoport
Este livro que acaba de ser trazido a público, História do Cone Sul, vem cumprir importante missão. Trata-se de obra coletiva, realizada por professores e pesquisadores da Universidade de Brasília e da Universidad de Buenos Aires, que pretende expor “uma nova visão do assunto”, à luz dos avanços mais recentes do conhecimento histórico e da própria realidade política regional. Do ponto de vista da criação e propagação de ideologias, a história das relações internacionais na América do Sul padecia de males de origem, que por força da repetição irrefletida de certas visões e conceitos, não acompanhava a evolução intrínseca verificada na sub-região desde o final da década de 1980. Assim, entre os objetivos dos autores estava também “redigir um texto didático para servir ao ensino de História nas universidades e nas escolas”, o que, além de necessário e urgente, preenche incômoda lacuna que insistia em nos acompanhar.
A propósito do título do livro, um dos autores assinala que o nome Cone Sul é “objetável”, pois, além de associar uma forma geométrica a um ponto cardeal, sem aludir a qualquer categoria histórica, política, econômica ou cultural, a denominação corresponde a “concepções estereotipadas do espaço”, em geral relativas a “elucubrações geopolíticas clássicas”. A questão do nome, ainda segundo o próprio livro, permanece “como uma matéria pendente” e, quer me parecer, não invalida nem põe em risco o conteúdo da obra, muito mais importante e relevante do que qualquer debate estéril sobre um conceito que, se não é consensual, ao menos identifica e remete o leitor, pela via do senso comum, ao objeto de estudo a que se refere, conforme uma rápida passagem pelo sumário pode provar.
O Capítulo I, escrito por Carlos María Birocco e Eduardo Azcuy Ameghino, é dedicado aos séculos XVII e XVIII, englobando geopolítica, poder, economia e sociedade nas colônias do Rio da Prata e no Brasil. Nesse período, salta aos olhos a saga da Colônia do Sacramento, fundada em 1680, ponto focal do embate luso-espanhol no estuário do Prata por décadas a fio. Como se sabe, os portugueses, embalados pelo mito da ilha-Brasil, postulavam que o território brasileiro possuía “fronteiras naturais” que delimitariam grosso modo a massa compacta de terra que se estende generosamente do rio Amazonas ao Prata. A praça-forte de Colônia, tantas vezes conquistada pelos espanhóis, tantas outras reconduzida ao domínio português, dominou o espírito dos contemporâneos quando da barganha negociada pelo Tratado de Madri, vivamente contestada em Portugal à época de Pombal. Mais tarde, a presença da corte de D. João VI no Rio de Janeiro daria sobrevida a essa contenda na fronteira sul, cujo desenlace levaria ainda a nova confrontação militar em torno do controle da Banda Oriental logo nos primeiros anos de vida do Brasil independente.
A questão da Cisplatina, esta pesada herança do período colonial, não se esgotou com a independência do Uruguai, em 1828, e a solução diplomática do “algodão entre cristais”, como assim se referiu Lord Ponsonby ao novo Estado. A Guerra Grande (1839-1852), que teve início como um conflito nacional uruguaio entre os colorados de Fructuoso Rivera e os blancos de Manuel Oribe, transformou-se depois em intricada questão regional, com o envolvimento direto da Argentina e do Brasil. São complexos e tortuosos os caminhos da política platina no período, factualmente muito rica e de difícil reconstituição. A tarefa com que se defrontou Francisco Doratioto não era assim das mais fáceis, a julgar pelo título do Capítulo IV (Formação dos Estados nacionais e expansão do capitalismo no século XIX), mas aquele autor dela se desincumbiu com a habitual expertise, em especial no que se refere aos meandros mais obscuros e às flutuações características das relações internacionais no Prata.
No que tange à análise da interação entre o Cone Sul e a América Latina, apenas esboçada no Capítulo III, de autoria de Edmundo Heredia, maior destaque merecia ser dado aos momentos de efetiva aproximação político-diplomática entre essas “duas entidades históricas”, tomando por base os marcos históricos desse processo de conhecimento recíproco. Quando Chanceleres de países da América do Sul se associaram a alguns de seus colegas na América Central, por exemplo, pela união dos Grupos de Contadora e de Apoio, em 1986, novo fato político de grande alcance teve lugar com a criação de um singelo “mecanismo permanente de consulta e concertação política”, que passaria a ser conhecido como Grupo do Rio. A primeira reunião de cúpula do Grupo, no ano seguinte, aprovou o Compromisso de Acapulco para a Paz, o Desenvolvimento e a Democracia, que, mais do que seu texto poderia sugerir, consubstanciava movimento diplomático inédito, pois era então a primeira vez em que mandatários latino-americanos se articulavam em torno de temas políticos de interesse comum, em um foro regional próprio, de alto nível, sem a presença dos Estados Unidos.
É citado no livro, por mais de um autor, o ponto de inflexão representado pela I Conferência Internacional Americana, em Washington, realizada a convite do Secretário de Estado norte-americano, James Blaine, em 1889-90, quando estavam maduras as condições para a expansão econômica continental dos Estados Unidos. A Conferência pretendia discutir, entre outras coisas, medidas para fomentar o comércio entre os países americanos e examinar a possibilidade de uma união aduaneira continental, mas teve poucos resultados práticos no campo econômico. Seu maior significado para o sistema interamericano se relaciona com o componente ideológico subsidiário que passou a simbolizar. Se tomarmos a idéia de ideologia como discurso destinado a camuflar interesses próprios sob as vestes de uma doutrina calcada em valores por todos compartilhados, causa funda impressão a acolhida que receberá depois o pan-americanismo no contexto latino-americano, a despeito da oposição argentina na Conferência. Na Apresentação do livro, o leitor é lembrado de que não se estriba nos fatos históricos a noção de que “a América Latina não tem destino próprio”. Com certeza terá sido assim, mas em que medida o poder das idéias não influenciou ou conduziu os destinos dos países latino-americanos? E de onde vinham essas idéias?
No Capítulo II, sobre a dimensão regional e internacional da independência, Amado Luiz Cervo observa que “toda a América, ao moldar suas instituições e sua conduta externa na cultura dos imigrantes europeus, se via e era vista como próximo parente político dos europeus, integrando-se ao Ocidente liberal através de valores, regras jurídicas, tratados e acordos moldados pelos europeus e aceitos com pouca resistência.” (p. 117). No caso do pan-americanismo, que ganhou corpo em 1889-90, seus princípios norteadores foram utilizados em vários momentos por países da América Latina para justificar certas atitudes ou orientações de política no século XX (idéias de solidariedade continental, harmonia e concórdia entre países irmãos, etc.). Seria o caso de se perguntar: decidimos por nós mesmos ou tão-somente atendemos a interesses de terceiros? As ideologias não estão apenas nos textos secundários de História. Elas permeiam nosso mundo e moldam nossa percepção a todo momento e, nesses tempos de globalização e de “consensos de Washington”, tal questionamento não parece estar de modo algum deslocado.
Mario Rapoport e Eduardo Madrid dividem o encargo de passar em revista as relações entre os países do Cone Sul e as grandes potências, tema do Capítulo V. O texto cobre basicamente o século XX, desde a época das economias primário-exportadoras, anterior à Primeira Guerra Mundial, até a globalização e o fim da Guerra Fria, passando pela fase de apogeu e crise da hegemonia norte-americana pós-1945. Quanto ao papel dos Estados Unidos no continente, a Ata de Chapultepec, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) são alguns exemplos muito conhecidos do poder estrutural daquela potência, cujo exercício de hegemonia não se baseia apenas na força militar e no poderio econômico, mas também na “superestrutura ideológica” que encontra eco nas lideranças dos outros países que supostamente estão sendo vítimas dessa dominação. Enfrentamos de novo o dilema em se saber se a legitimidade que os Estados subordinados conferem à ordem estabelecida é resultado da coerção do hegemônico ou de decisão própria, por entender que essa mesma ordem lhes pode trazer benefícios.
As relações regionais são abordadas no Capítulo VI, que encerra o livro, escrito por Moniz Bandeira. Centrado nas iniciativas de integração, o capítulo põe em perspectiva o processo de unificação dos espaços econômicos e os fatores que levaram o Brasil e a Argentina “da rivalidade à integração”. Resta saber como evoluirá o Mercosul diante do processo de negociação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), cuja constituição no futuro, mutatis mutandis, fará retornar a lembrança da mencionada I Conferência Internacional Americana. Aliás, em um momento em que se aproxima o centenário da troca de visitas entre os Presidentes Julio Roca ao Brasil, em 1899, e Campos Salles à Argentina, em 1900, menção deve ser feita a este que seria talvez o maior legado histórico do governo José Sarney em termos de política externa, ou seja, a superação do paradigma da divergência pelo paradigma da integração.
Nesse sentido, este livro é a própria materialização do Mercosul historiográfico, a partir do eixo Brasília-Buenos Aires. O “encontro das capitais”, poderíamos chamá-lo assim, sela no âmbito acadêmico a cooperação argentino-brasileira, já muito anteriormente defendida em versos por Francisco Octaviano de Almeida Rosa, pelos idos de 1866, na poesia citada por um dos autores do livro: “O majestoso Prata bem claro nos ensina, nesta junção feliz de rios tão distantes, que os sul-americanos, por uma lei divina, devem viver unidos, se querem ser gigantes; descem as suas águas das duas cordilheiras, dos Andes argentinos, das Serras brasileiras, e, como dois amigos unidos peito a peito, abraçam-se no encontro e têm o mesmo leito.” Assim como Brasil e Argentina estão fadados a chegar ao século XXI “unidos ou dominados”, o livro História do Cone Sul está predestinado a se tornar referência obrigatória para todos aqueles que desejam ter uma visão histórica abrangente sobre como isso se tornou possível após quase cinco séculos de relações internacionais no continente sul-americano.
Resenhista
Eugênio Vargas Garcia
Referências desta Resenha
CERVO, Amado Luiz; RAPOPORT, Mario (Orgs.). História do Cone Sul. Rio de Janeiro: Revan. Brasília: EdUnB, 1998. Resenha de: GARCIA, Eugênio Vargas. Revista Brasileira de Política Internacional, v.41, n.2, 1998. Acessar publicação original [DR]