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História do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária no Brasil: novas perspectivas | Kauan William dos Santos e Rafael Viana da Silva

Não raro o anarquismo fora apresentado como uma planta exótica importada para o Brasil; como um movimento pré-político fadado ao fracasso, caótico, essencialmente individualista e pequeno burguês; e de modo mais pejorativo, seus adeptos foram descritos como terroristas e assassinos insanos. De alguma maneira esses pontos, somados a diversos outros, foram compartilhados entre a academia e o senso comum forjando um conhecimento sobre o anarquismo, tomando como verdade narrativas que confirmam visões depreciativas, fazendo vista grossa às evidências empíricas, e contribuindo para mantê-lo no limbo da história, enclausurando a possibilidade de um conhecimento histórico construído sobre bases sólidas.

No entanto, esforços contrários (o qual o livro que apresento aqui é um exemplo) veem contribuindo para romper esse cerco, fazendo, a partir de novas perspectivas, a sua história e de suas estratégias, ou vetores sociais, como o sindicalismo de intenção revolucionária. O livro, uma coletânea, foi organizado pelos historiadores Rafael Viana da Silva, doutor pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Kauan Willian dos Santos, doutorando pela Universidade de São Paulo (USP), membros do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA) [1]. Além do prefácio, a obra conta com quinze capítulos de pesquisadores e pesquisadoras de diferentes lugares e universidades do país. Os artigos, em sua maioria, são parte de resultados de teses e dissertações recentes, “pesquisas que abordam a história do anarquismo e do sindicalismo revolucionário no país e suas conexões com outras regiões” (SANTOS; SILVA, prefácio, p. 9) e abarca um largo período histórico. Para além de uma contribuição acadêmica, a obra é também um esforço político de responsabilidade com o que representa o anarquismo.

Destacamos, a priori, aquilo que propõe o seu título, trazer uma História do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária no Brasil. Tornou-se comum reduzir as experiências anarquismo brasileiro às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse sentido, a obra começa [2] a romper com essa lógica e apresenta as experiências de outras partes do país, a exemplo dos estados do Ceará e da Bahia. Além da ampliação geográfica, as pesquisas tratam também de momentos em que a historiografia considerou o anarquismo ausente. Elas se distendem para além do principal marco temporal dos estudos sobre o anarquismo no Brasil, a Primeira República, e descreve sua existência posterior ao golpe de trinta, no período Vargas, no Pós-Segunda Guerra Mundial, na Ditadura Militar (1964-1985), na reabertura política até dias atuais (2016). Avança no entendimento de como se deu a militância em alguns momentos, possibilitando perceber que não esteve restrita à propaganda e às atividades culturais.

Novas abordagens e fontes são apresentadas, como os documentos do DEOPS, sem corroborar a visão dos que produziram esses documentos e com o cuidado de fazer uma história dos de baixo, buscando “questionar de outra forma os documentos e fazer coisas diferentes com eles”; (SHARPE, 2011, p. 59) [3] e o uso de ilustrações e gravuras de jornais anarquistas e anticlericais. Temas importantes e ainda ausentes da história, como a militância das mulheres anarquistas, são abordados. O debate acerca do anarquismo e sua relação com a organização, estratégia, luta de classe, raça, anti-imperialismo, revolução, partido, participação nos sindicatos, por exemplo, é posto e se contrapõe às versões que obscurecem essas relações.

Trata-se de uma obra coesa pela leitura que os autores fazem do tema. Isto ocorreu exatamente porque “A escolha dos autores condiz com estudos que tentaram descaracterizar e enfrentar equívocos anteriores e ainda apresentar novos parâmetros e visões para entendermos tais fenômenos no Brasil,” esses parâmetros e visões se referem “às teorias e procedimentos metodológicos, mas também no tocante aos recortes temporais e geográficos bem como na atenção nas ações dos personagens anarquistas”. (SANTOS; SILVA, prefácio, p. 9)

No primeiro capítulo, “O anarquismo e o sindicalismo de intenção revolucionária: da Associação Internacional dos Trabalhadores à emergência na América Latina”, Felipe Corrêa faz um estudo conceitual e teórico para definir o anarquismo, suas principais ideias e seus debates. Estabelece o processo de surgimento do mesmo, colocando-o como um fenômeno histórico, ao contrário de alguns autores que o tratam como a-histórico (CORRÊA, 2015, p. 69) [4]. Demonstra que a Aliança da Democracia Socialista (ADS), primeira organização anarquista da história, fundada em 1868, e a atuação dos seus membros na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que existiu entre 1864 e 1877, está relacionada com o surgimento, difusão e a consolidação do anarquismo em muitos continentes do globo. Apresenta ainda que a difusão do anarquismo na América Latina está vinculada à atividade da AIT, e a análise deste processo contribui para entender o que ocorreu no Brasil, o que é feito também no capítulo. Dentre outras questões, o tema da difusão do anarquismo volta a ser discutido em “’I Senza Patria’: padrões de difusão transnacional do movimento anarquista e sua recepção em São Paulo”, de Clayton Peron Franco de Godoy. O autor apresenta uma rede de interligações em São Paulo, Paterson (EUA) e Buenos Aires, sendo protagonizados pelos italianos, pelo menos a princípio, no transnacionalismo linguístico, contribuindo com a difusão do anarquismo. Ao tratar do caso de São Paulo, o autor desfaz o mito da síntese sociológica sobre a origem eurocêntrica do anarquismo no Brasil (BATALHA, 2012, p. 145) [5]. Para ele “A identificação desse circuito e de suas redes constituintes remove a ideia da Europa como centro irradiador único do movimento anarquista […]”. Assim, “[…] iluminando aspectos das relações internas do anarquismo transnacional como um movimento menos eurocêntrico e mais policêntrico”. (p. 93)

Nos marcos da Primeira República, Anderson Romário Pereira Corrêa, em “Sindicalismo revolucionário e anarcossindicalismo nos Congressos Operários do Rio Grande do Sul (1898–1928)”, analisa os meandros das disputas nestes congressos e a participação dos anarquistas daquele estado nos Congressos Operários Brasileiros. Revela que além da estratégia do sindicalismo revolucionário, que é a principal estratégia para o período de 1906 a 1920, os operários gaúchos optaram, em um momento dos anos 20, pelo anarcossindicalismo. Atestando a atividade anarquista e do sindicalismo revolucionário no hoje Nordeste, Victor Pereira, em “Militância anarquista e verbo de fogo: Pedro Augusto Motta, sindicalismo revolucionário e imprensa libertária no Ceará dos anos 1920”, demonstra como se desenvolveu o anarquismo e o sindicalismo revolucionário no Ceará, abordando a circulação de ideias no interior daquele Estado e a conexão do militante Pedro Motta com outras cidades do Brasil e outros países, em suas múltiplas atividades como a palavra impressa e o seu “verbo de fogo”, a atuação nos sindicatos e formação de organizações. Por sua vez, Kauan Willian dos Santos, em “‘Guerra à guerra’: raça, antimilitarismo e organização política anarquista durante a primeira guerra mundial”, apresenta a experiência de grupos anarquistas de São Paulo, enfatizando seus posicionamentos frente à Primeira Guerra Mundial, ressalta os debates acerca do antiimperialismo, as questões étnicas e as experiências transnacionais. Trata da atuação desses grupos em eventos como os de 1917 e as iniciativas de formação de uma organização política anarquista.

Acrescentando à discussão do anarquismo a ação feminina, Samanta Colhado Mendes, em “Anarquismo e feminismo: as mulheres libertárias no Brasil (1900 – 1930)”, traz o importante papel das mulheres anarquistas. Estas participaram ativamente das lutas da classe operária, tanto ao lado dos homens como em organizações de classe composta apenas por mulheres. A autora mostra ainda que estas mulheres problematizaram internamente a opressão de gênero, suas divergências com o feminismo liberal e suas iniciativas de educação, essenciais para superar a condição a que estavam sujeitas.

Em “‘Anarquismo e Revolução’: militância anarquista e a estratégia do sindicalismo revolucionário no Brasil da Primeira República”, Tiago Bernardon Oliveira, traz um panorama geral da trajetória anarquista, apresentando como eles conseguiram aprovar o sindicalismo revolucionário como insígnia da COB no Primeiro Congresso Operário Brasileiro e a atuação para inserção desta estratégia junto aos operários do país; apresenta as avaliações das suas estratégias, buscando um meio que fosse além da atuação econômica, ou estritamente sindical, e pudesse alavancar a revolução social, como a tentativa de articulação das vanguardas, a formação das organizações (Partido Comunista de 1919) e as insurreições desse período. Aponta problemas internos e conjunturais que conduziram ao enfraquecimento em fins da Primeira República, e a permanência do sindicalismo revolucionário como proposta para o movimento.

No trânsito entre períodos e espaços, Caroline Poletto em “Imaginação subversiva em circulação: imagens anarquistas como instrumento político e o transnacionalismo imagético na imprensa anarquista e anticlerical brasileira, argentina e espanhola (1897 – 1936)”, traz um estudo do transnacionalismo e da circulação das ideias do anarquismo, através da iconografia dos jornais anarquistas e anticlericais, demonstrando que a partir das utilizações das “imagens políticas” contribuiu para que o anarquismo fosse, em diferentes períodos e locais, alimentado e (re)-significado por meio da circulação transnacional.

No pós-golpe de 1930, Rodrigo Rosa da Silva, em “Anarquistas e sindicalistas em São Paulo: repressão política e resistência nos anos 1930”, mostra a resistência dos anarquistas frente aos problemas do novo contexto, como a repressão do Estado e o novo modelo de sindicato, prosseguindo com o sindicalismo revolucionário. Assinala que a atuação anarquista não esteve ligada apenas aos círculos culturais e demonstra o vigor deste em organizações como a Federação Operária de São Paulo (FOSP). Por sua vez, “Sindicalismo e militância anarquista no Rio de janeiro e São Paulo (1945 – 1964)”, de Rafael Viana da Silva, analisa a experiência anarquista no pós-guerra ao ano do Golpe Militar e fortalece também a visão de uma atuação anarquista para além da propaganda e do culturalismo, ainda que ressalte a importância de ambos. O anarquismo nesse período foi muito ativo, como demonstra o autor, com a atividade da sua imprensa, a tentativa de reorganização da sua luta sindical, as iniciativas de realização de congressos e formação de organizações.

Sobre o anarquismo na ditadura militar brasileira, o historiador João Henrique de Castro Oliveira, no artigo “Anarquismo, movimento estudantil e imprensa alternativa: a trajetória do jornal o inimigo do rei (1977–1988)”, analisa a atuação dos anarquistas por meio do jornal o Inimigo do Rei (1977-1988) no processo de transição democrática, demonstrando uma articulação dos anarquistas de várias partes do país, como Bahia, Rio de Janeiro, entre outras. A atuação dos anarquistas no período fica evidente também em “Ideias, crítica e combate: o anarquismo na ditadura militar brasileira (1964 – 1985)”, no qual Rafael Viana da Silva demonstra que, mesmo com sua capacidade de ação reduzida, o anarquismo esteve presente nesse período com publicação de jornais, atuando em centros de cultura, mas também presente nas lutas do Movimento Estudantil Libertário e teve, em alguns momentos, sua resistência silenciosa.

Avançando, João Henrique de Castro Oliveira, em “Libera… Amore Mio: imprensa anarquista em tempos de consenso neoliberal (1991 – 2011)”, analisa a nova empreitada comunicativa dos anarquistas do Rio de Janeiro a partir do periódico Libera… Amore Mio. Destaca as discussões sobre teorias e as práticas anarquistas, assim como a luta contra o neoliberalismo e a busca de inserção junto aos trabalhadores em condições de precarização. No penúltimo capítulo, o artigo desenvolvido por Bruno Lima Rocha, Mariana Affonso Pena e os organizadores da obra, intitulado “‘Ou se vota com os de cima ou se luta com os de baixo’: presença e a (re) organização do anarquismo em tempos neoliberais no Brasil (1980-2013)”, os autores e a autora, tratam do momento de reorganização do anarquismo brasileiro após a dura experiência da ditadura. Apresentam a importância de inúmeros grupos, como a Ação Global dos Povos, as lutas contra globalização e anticapitalista e a aproximação de militantes anarquistas do Brasil com a Federação Anarquista Uruguaia (FAU) para o processo de reorganização.

Finalizando, Rogério de Castro, em “Autogestão e mutualismo: as escolas dos movimentos sociais numa fricção entre tempos (1906-2016)”, analisa as experiências das ocupações das escolas pelos estudantes secundaristas de São Paulo na luta contra o seu fechamento arbitrário divulgado pela Secretaria de Educação, aproximando-as àquilo que preconizava as escolas Modernas do início do século XX e a educação do sindicalismo revolucionário na Primeira República.

Deste modo, o livro desponta como uma das principais obras sobre o anarquismo no Brasil. Importante leitura para os que se interessam pelo tema, é indispensável para as/os pesquisadoras/es daquela ideologia e de suas estratégias. É dever destas/es, analisar o amplo contexto, de maneira detida e séria, sobretudo, outros componentes do movimento operário; assim, é indicado também para os estudiosos de outras vertentes do movimento operário ou de objetos que se aproximam do que o livro aborda, incluir nas suas análises, sérias e aprofundadas, o anarquismo. Neste sentido, a obra é uma boa sugestão.

Por fim, por tratar de um tema discutido ainda sem muito rigor, destaco a importância da obra, ao disponibilizar elementos para uma discussão rigorosa e fazer a crítica necessária à historiografia hegemônica que coloca o anarquismo preso no passado. Possibilita, assim, romper cada vez mais o cerco.

Nota

1 https://ithanarquista.wordpress.com/

2 A maioria dos artigos do livro abordam as experiências de São Paulo e Rio de Janeiro, por isso consideramos essa empreitada ainda no começo.

3 SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In. BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. – São Paulo: Editora Unesp, 2011.

4 CORRÊA, Felipe. Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo. – Curitiba: Editora Prismas, 2015.

5 BATALHA, Claudio H. M.. A História da Classe Operária no Brasil: trajetórias e tendências. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2012.


Resenhista

Igor Ribeiro dos Santos – Professor da rede pública de ensino, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas.


Referências desta resenha

SANTOS, Kauan Willian dos; SILVA, Rafael Viana da (org.). História do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária no Brasil: novas perspectivas. Curitiba: Editora Prismas, 2018. Resenha de: SANTOS, Igor Ribeiro dos. O anarquismo rompendo o cerco. Crítica Histórica. Maceió, v.11, n.21, p.469-474, jul., 2020. Acessar publicação original [DR] 

Itamar Freitas

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