História Debates e Tendências/Economia-Espaço-Sociedade – Diversidades territoriais, conflitos agrários e desigualdades alimentares na Argentina e no Brasil nos séculos XX e XXI/2022

O “mundo rural” é heterogéneo e complexo. Argentina e Brasil mostram estas características através da organização dos seus territórios, da construção social do espaço e das suas diferenças regionais, associadas às agro-indústrias e à transição da agricultura para o agronegócio. Os conflitos sociais ligados ao sistema de propriedade da terra e a hierarquia variável dos seus atores sociais e corporações agrárias fazem parte desta diversidade, que se exprime também nas diferentes formas de fome e desigualdade nutricional em que os seus habitantes vivem.

A organização do território e a construção social do espaço definem a região. A espacialidade natural, que esteve em vigor até aos anos 60, deu lugar a uma “lógica social e institucional” do território (ECKERT, 1996). As “espacialidades diferenciais” dos anos 80 (CORAGGIO, 1987) tornaram-se “complexos territoriais”, que permitem conceber um diagnóstico regional que pode ser modificado com a aplicação de políticas corretivas (MANZANAL E ROFMAN, 1989).

Por outro lado, ao longo dos séculos XX e XXI, tem havido uma modernização capitalista significativa da agricultura na Argentina e no Brasil. As mudanças tecnológicas e produtivas no sector agrícola tiveram um impacto direto em ambos os territórios e produziram vários conflitos sociais. Neste contexto, surgiram novos atores e outros reconfiguraram-se para enfrentar os efeitos económicos e sociais da expansão do agronegócio.

Os conflitos agrários e a diversidade territorial resultantes são expressões da transição nutricional no Brasil e na Argentina. Com diferentes pontos de partida e diferentes políticas públicas implementadas em cada caso, é possível reconhecer a natureza complexa da luta contra a fome desde meados do século XX. A questão alimentar é uma preocupação global. Está ligado à industrialização dos alimentos, bem como às transformações na ligação entre produtores e consumidores (HOLT-GIMÉNEZ, 2017). As abordagens teóricas e estudos de caso mostram a composição da dieta como factor de desigualdade social, e também as mudanças na produção causadas por esta transformação da ligação com a alimentação, ameaçando a segurança alimentar e a soberania (FAO, 2018).

O poder e as políticas públicas geradas pelo Estado fazem parte deste quadro complexo e diversificado, como parte de uma rede permeável ligada a relações desiguais e como base de uma realidade múltipla e incerta que se baseia em continuidades e mudanças ao longo dos séculos XX e XXI. A abordagem proposta para os trabalhos que compõem este dossier baseia-se em três eixos:

  1. Planeamento territorial nas zonas rurais (construção social do espaço, desigualdades regionais e políticas públicas). As zonas rurais na Argentina e no Brasil, como “territórios possíveis”, são constituídas por processos, lugares e atores, que integram “uma agenda de problemas e tendências de análise” (BOZZANO, 2009. BARRIERA, E ROLDÁN, 2004. VELÁZQUEZ, 2008). Esta é uma questão-chave para a elaboração de uma história regional interdisciplinar como expressão de um “jogo de escalas” entre micro e macro história (REVEL, 1995: 125-143. LEVI, 2019).

Como parte deste debate, apresentamos a obra de María Celia Bravo para a Argentina e a de Silvana Winckler e Arlene Renk para o Brasil. O primeiro destes aborda a história regional do Norte da Argentina a longo prazo, analisando “A configuração espacial do modelo do açúcar de Tucumán, o colapso económico, a reconversão produtiva e o conflito social. Argentina (1870-1970)”. Este é um estudo histórico das políticas públicas que promoveram a modernização da indústria açucareira em Tucumán (1870-1895), a fim de as contrastar com as que provocaram a desarticulação económica e social desta agro-indústria (1956-1970). O parque industrial de Tucumán, que tomou forma no último terço do século XIX sob as políticas proteccionistas, o acesso ao crédito e o desenvolvimento dos caminhosde-ferro, são os eixos estudados pelo autor a fim de identificar a paisagem social modificada pela urbanização dos engenhos de açúcar e a formação de aldeias açucareiras em torno das estações ferroviárias. No final do século, o complexo açucareiro de Tucumán passou por um processo de reestruturação que resultou do governo autoritário liderado pelo General Juan Carlos Onganía, que levou a uma contração abrupta do volume de produção, concentração fabril e agrária, o encerramento de 11 engenhos de açúcar, o declínio das aldeias açucareiras, o crescimento do desemprego e da emigração. Estas políticas gerariam mudanças na organização do território e dos seus atores, que em breve seriam articuladas com movimentos de protesto dos sectores afetados do açúcar, dando origem ao aparecimento de novos atores empresariais. No caso do Brasil, Silvana Winckler e Arlene Renk, dos campos do direito e da antropologia social, também com uma perspectiva regional, abordam este eixo temático, centrando-se na questão dos “conflitos hidrológicos e ambientais no oeste de Santa Catarina”. O impacto sócio-ambiental e os seus conflitos é o tema central desta proposta de referência ao ordenamento do território e suas consequências, através de um estudo de caso específico que aborda os efeitos gerados pela instalação da central hidroelétrica de Foz do Chapecó, o papel desempenhado pelo Estado no financiamento do megaprojeto, os investimentos privados no domínio do hidronegócio e as mobilizações que tiveram como protagonistas os sectores sociais afetados. Um estudo bibliográfico e documental e a análise crítica de entrevistas interessantes realizadas em 2019 constituem a base desta contribuição original para o estudo do território.

  1. Os conflitos agrários (atores sociais nas disputas pela terra, o agronegócio e a agricultura familiar) estão ligados ao movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, dos rendeiros, das populações afetadas pela construção de centrais hidroelétricas, como demonstrou o estudo do eixo anterior, e das organizações representativas dos agricultores familiares, que produzem uma rica experiência de resistência e de organização social, liderando uma intensa luta pelos seus direitos, que merece ser estudada.

Pablo Voldkin é o responsável pela abordagem histórica da situação na Argentina durante as primeiras décadas do século XX, e apresenta o desafio de “Nem tudo o que reluz é ouro: condições de vida e protestos de pequenos agricultores na Pampa na Argentina, o “celeiro do mundo” (1900-1930)”. A proposta analisa as condições de vida e de trabalho dos pequenos e médios agricultores da região Pampeana durante o período agroexportador, ou seja, quando a Argentina era um dos principais exportadores de trigo e milho à escala mundial. Estes produtores, rendeiros e meeiros, foram os protagonistas na expansão da área cultivada, apesar das severas limitações no acesso à propriedade da terra e ao crédito bancário, bem como das imposições dos grandes proprietários de terras, empresas ferroviárias e empresas monopolistas de comércio de cereais. As primeiras e diversas medidas de protesto e organização – como a Federação Agraria Argentina (1912) – para tornar visíveis as suas dificuldades e conseguir reduções temporárias no montante das rendas e a aprovação de um número limitado de leis que não seriam insuficientes para temperar o padrão latifundista no sistema de propriedade da terra nesta rica região da Argentina são aqui analisadas, utilizando um importante registo de publicações periódicas da época. De outra perspectiva e com um âmbito mais contemporâneo, a questão rural e os seus conflitos são abordados pela antropóloga social Gabriela Otilia Margarita Schiavoni, para um território da tríplice fronteira no nordeste da Argentina. O estudo intitula-se “Alimentando agencia: La escala familiar de las organizaciones de producción de alimentos en Misiones (Arg)” (Agência de alimentação: A escala familiar das organizações de produção de alimentos em Misiones (Arg)). Este trabalho é interessante pelas fontes antropológicas que utiliza, pela actualidade do assunto que aborda e porque permite uma ligação direta com o terceiro eixo de estudo proposto neste dossiê, que é a produção de alimentos frescos na província de Misiones, aqui caracterizada como uma resposta dos pequenos produtores às mudanças ocorridas nas cadeias agroindustriais, geradas pela ruptura da regulação estatal nos anos 90. Como a autora argumenta, a produção e comercialização de alimentos pelos próprios agricultores foi um caminho concebido pela principal organização agrária da província (o Movimento Agrário de Misiones), mas também afirma explicitamente que o desenvolvimento desta atividade ao longo dos últimos 25 anos gerou um formato específico de agência: pequenas associações nacionais que se multiplicam sem aumentar de escala. Este artigo descreve com precisão as características de algumas destas organizações, utilizando dados do trabalho de campo etnográfico realizado em vários assentamentos rurais na província de Misiones, o que torna este estudo particularmente original.

  1. As desigualdades alimentares (desnutrição/undernutrição) estão associadas à exclusão social. Os produtores, fornecedores e consumidores de alimentos fazem parte do cenário e são os seus principais atores. A formação da dieta como indicador de desigualdade social inclui novas formas de fome e desnutrição, porque combina o excesso de kcal com a falta de nutrientes críticos (RIEFF, 2016). A crescente mercantilização da produção alimentar imposta pelo agronegócio gera tensões que transcendem o mundo rural e mostra a correlação entre a redução da biodiversidade e a perda do carácter omnívoro da dieta.

Três artigos contribuem para a caracterização, compreensão e interpretação teórica, conceptual e estatística, através de estudos de caso e abordagens mais globais, para dar corpo a este terceiro e último eixo do dossiê proposto. O primeiro destes é um estudo do campo da sociologia da alimentação, com a contribuição de fontes estatísticas e teóricas atuais. O seu autor é o sociólogo Luis E. Blacha, que aborda a questão: “Agronegócios e desigualdade nutricional na Argentina (séculos XX e XXI). Dieta entre produtividade e exclusão social”. Nesta perspectiva, propõe-se analisar a composição da dieta argentina no século XXI como um fator de exclusão social. Ele compreende que se trata de um tipo de desigualdade social, desigualdade nutricional, que é determinada tanto pelo abastecimento alimentar como pelo acesso aos nutrientes. Enquanto que a fome inclui situações de falta (de nutrientes) bem como de excesso (de kcal), que podem ser reconstruídas a partir de mudanças no corpo dos consumidores. Desta forma, os alimentos industrializados produzidos a partir do modelo do agronegócio caracterizam-se por um sabor – entendido como uma construção sensorial complexa que transcende o sabor – que se torna parte da base da desigualdade nutricional. Neste sentido, este documento mostra como a oferta, acessibilidade e sabor são elementos significativos para a concepção de soluções alimentares, quando a dieta é valorizada como um factor de inclusão social. Um prazo mais limitado (2008-2022) é apresentado por Rolando García Bernado, da perspectiva do desenvolvimento económico, quando ele se refere ao “Acesso à alimentação e injustiça alimentar”. Revisitando a controvérsia da crise alimentar de 2008 à luz de 2022″, com enfoque na financeirização, variação de preços e produto agrícola bruto per capita. A frequência das crises alimentares no século XXI, que nos últimos anos tem sido influenciada pela pandemia da COVID-19 e pelo conflito russo-ucraniano, são as questões centrais que permitem ao autor delinear a dinâmica destas crises alimentares nas suas tendências a médio e curto prazo. Finalmente, e como resumo das realidades na Argentina e no Brasil, Antonio Inácio Andrioli apresenta o seu estudo sobre “As desigualdades alimentares na Argentina e no Brasil: um dilema do nosso tempo” da perspectiva da agroecologia. A soberania e insegurança alimentar, e especialmente a fome como causa de desigualdade, são os temas centrais da análise do autor, que visa avaliar a situação das desigualdades alimentares em ambos os países sul-americanos, que, como ele argumenta, têm “territórios ricos e famintos ao mesmo tempo”. A perda do poder de compra das suas populações, a concentração da terra, o fracasso das políticas públicas de combate à pobreza e a diversificação do modelo agro-exportador de mercadorias são algumas das causas que dão consistência às suas explicações, baseadas em estudos estatísticos e diagnósticos políticos, sobre a distribuição injusta do rendimento e o aumento da pobreza entre os atores sociais, tanto nas zonas rurais como urbanas.

Em suma, a proposta central deste dossiê sobre diversidades territoriais, conflitos agrários e desigualdades alimentares na Argentina e no Brasil durante os séculos XX e XXI é aqui apresentada a partir de diferentes campos disciplinares, contextos teóricos e regionais, mas convergentes, complementares, e com registos e interpretações que visam encorajar o debate académico, de modo a que os seus resultados possam tornar-se contributos para a implementação de políticas públicas plurais e equitativas.

O número desta revista é completado com três trabalhos sobre questões abertas que enriquecem, de outras perspectivas sociais, migratórias e ambientais, aspectos que não são abordados no dossier em análise. Do campo da geografia e das ciências sociais, Emanuela Gamberoni e João Carlos Tedesco propõem uma breve análise das “Dinâmicas históricas e causalidades da diáspora senegalesa – 1970-2010: breves apontamentos” (Dinâmicas históricas e causalidades da diáspora senegalesa – 1970-2010: breves apontamentos). Um tema de interesse atual que, através de estatísticas, cartografia e ilustrações fotográficas, pretende caracterizar e interpretar em termos demográficos, territoriais e ambientais ao longo de quatro décadas, as causas que produziram a intensa mobilidade da população senegalesa para novos destinos, e especialmente para a América Latina, em particular para o Brasil, como parte de um ciclo migratório – salientam os autores – que faz parte da sua própria dinâmica em busca de novos espaços, esperanças, oportunidades e horizontes como qualidades substantivas e simbólicas do ato migratório.

A segunda contribuição para esta secção de temas livres pertence a Leonardo de Camargo Subtil, um especialista em direito marítimo, que – com uma abordagem histórica – propõe investigar, como parte do direito internacional, um tema original que tem sido pouco analisado pela historiografia. Trata-se do regime de proteção das baleias durante a primeira metade do século XX. A análise é essencialmente normativa com uma abordagem dedutiva e propõe considerar, como afirma o autor, “o regime jurídico da regulamentação da atividade baleeira” nos tempos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de compreender a possibilidade de conciliar “a estabilidade da indústria baleeira e a transformação através da proteção inicial da própria espécie baleeira”. As convenções, protocolos e acordos estabelecidos durante a década de 1930 tornam-se as principais fontes primárias deste interessante trabalho académico, que se refere a “A evolução históriconormativa do regime internacional de proteção às baleias antes da Segunda Guerra Mundial: Entre estabilidade e transformação”.

Finalmente, José Antonio Moraes do Nascimento apresenta um estudo histórico regional sobre a privatização dos territórios florestais através de um estudo de caso. Trata-se de “A contestação da identidade comunitária através da privatização dos territórios florestais comunitários do Rio Grande do Sul durante o século XIX”, com base na análise de documentos municipais, publicações oficiais da época, documentos oficiais e correspondência, que conferem originalidade à abordagem proposta. As suas abordagens e interpretações referem-se à relação com a identidade comunitária, privatização e áreas florestais comunitárias em meados do século XIX, quando a Lei de Terras de 1850 estava a ser discutida e aprovada. A impugnação da identidade comunitária que faz parte do discurso oficial da época incentiva a privatização de territórios, mas ao mesmo tempo, Moraes do Nascimento sublinha como se geram conflitos e tensões, que se agudizam no Norte do Rio Grande do Sul; ou seja, num espaço geográfico ao qual o autor dá centralidade neste trabalho de investigação.


Referências

BARRIERA, Darío y ROLDÁN, Diego (compiladores): Territorios, espacios y sociedades. Agenda de problemas y tendencias de análisis, Rosario, UNR Editora, 2004.

BOZZANO, Horacio: Territorios posibles. Procesos, lugares y actores, Buenos Aires, Lumiére, 2009.

CORAGGIO, José Luis: Territorios en transición. Crítica a la planificación regional en América Latina, Quito, Ed. Ciudad, 1987.

ECKERT, Denis: Ëvaluation et prospective des territoires, París, Reclus, 1996.

FAO: El Estado de los mercados de productos básicos agrícolas. El comercio agrícola, el cambio climático y la seguridad alimentaria, Roma, FAO, 2018.

HOLT-GIMÉNEZ, Eric: El capitalismo también entra por la boca: comprendamos la economía política de nuestra comida. New York: Monthly Review Press-Food First Books, 2017.

LEVI, Giovanni: Microhistorias, Bogotá, Universidad de los Andes. Facultad de Ciencias Sociales, 2019.

MANZANAL, Mabel y ROFMAN, Alejandro: Las economías regionales de la Argentina. Crisis y políticas de desarrollo, Buenos Aires, CEUR/CEAL, 1989.

REVEL, Jacques. Micro-análisis y construcción de lo social. En: Anuario IHES, núm. 10, 1995, p. 125-143.

RIEFF, David: El oprobio del hambre. Alimentos, justicia y dinero en el siglo XXI, Barcelona, Taurus, 2016.

VELÁZQUEZ, Guillermo Angel: Geografía y bienestar. Situación local, regional y global de la Argentina, luego del censo de 2001, Buenos Aires, Eudeba, 2008.


Organizadores

Noemí Girbal-Blacha – CONICET/CEAR-UNQ, Argentina.

Emerson Neves da Silva – UFFS, Brasil.

Lisandro Rodríguez – CONICET- FHyCS/UNaM, Argentina.


Referências desta apresentação

GIRBAL-BLACHA, Noemí; SILVA, Emerson Neves da; RODRÍGUEZ, Lisandro. Apresentação. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 22, n. 3, p. 5-11, maio/set. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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