O dossiê que ora abrimos apresenta diálogos e reflexões sobre gênero e sentidos históricos atribuídos a/por mulheres negras no campo do pós-abolição como um problema histórico, evidentemente seguindo os passos trilhados anteriormente no texto homônimo de autoria de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos (2004)1. Se naquele momento os balanços e perspectivas incidiam especialmente nas experiências de homens escravizados e seus descendentes, hoje as pesquisas têm se debruçado por vezes até exclusivamente sobre a compreensão das experiências de mulheres negras, enquanto sujeitas que viveram as emancipações e as décadas imediatas à abolição, mas também aquelas que se depararam com os significados de ser negra em décadas posteriores e no tempo presente, pois, ao que os estudos indicam, o pós-abolição ainda alcança nossos dias. Não obstante, chamamos atenção para dois outros pontos. A pluralidade dos espaços geográficos das pesquisas aqui apresentadas, nos permitindo melhor acessar conhecimentos sobre a Amazônia e a região norte de uma forma geral, sem deixar de lado novas pesquisas sobre espaços que já figuravam no cenário, como a região sudeste. Entendemos que essa pluralidade vem para mostrar as potências das discussões, ainda mais quando ampliamos o mapa e nos permitimos também fazer imersões além fronteiras, em um movimento de ida e vinda, como tão bem nos aponta a entrevista do dossiê com a historiadora Juliana Barreto Farias.
Como o dossiê evidencia, as pesquisas que trazem em seu centro gênero e feminino negro dialogam ainda com as noções que extrapolam a raça, incluindo as intersecções de classe e geração, principalmente. Assim, fazem imersões que nos permitem acompanhar experiências, projetos, trajetórias e atuações em áreas já bem conhecidas das historiadoras e historiadores do campo, como o associativismo e a educação. Mas também naquelas cujas investidas de pesquisas sistemáticas são mais recentes, como sobre esportes, artistas e poetas.
Neste sentido, em seu artigo, Júlio Claudio da Silva percorre o caminho trilhado pela atriz Léa Garcia, desde o ingresso no Teatro Experimental do Negro até sua estreia no cinema brasileiro. Seu objetivo é compreender por meio de entrevistas e matérias publicadas em periódicos, como a carreira dessa atriz – marcada pelos estereótipos raciais e de gênero atribuídos pela crítica especializada à mulher negra – pode fornecer uma abordagem inovadora para observarmos as estratégias de resistências e alianças protagonizadas por Léa Garcia, e não apenas pelas lideranças masculinas do movimento negro, na luta contra o racismo, bem como na abertura e ampliação para espaços e temáticas negras nos palcos e nas telas do cinema brasileiro.
Já o artigo de Luara dos Santos Silva analisa a história de vida da professora e escritora negra, de classe média, Coema Hemetério, discutindo seus limites e “possibilidades de fala” na tentativa de driblar as hierarquizações raciais e de gênero no espaço público, impostas por crenças pretensamente científicas, que destacavam a inferioridade de negros e mulheres, no alvorecer do século XX.
Abordando ainda a temática da educação, Jucimar Cerqueira dos Santos e Mayara Priscilla de Jesus dos Santos analisam o alcance de inúmeras medidas e iniciativas femininas de criação de escolas noturnas para mulheres na Bahia, como alternativas para o enfrentamento dos preconceitos machistas e racistas da época, destacando a trajetória de Maria Odília, “a primeira mulher negra a se formar na FAMEB (Faculdade de Medicina da Bahia) em 1909”.
Cláudia Maria de Farias discorre sobre ao processo de inserção, permanência e ampliação da participação das mulheres negras no campo esportivo brasileiro, nas décadas de 1940 e 1950. A análise dos relatos orais das atletas olímpicas negras Melânia Luz e Deise Jurdelina de Castro revelam as intersecções do gênero, classe, raça/etnia e geração e o protagonismo de mulheres negras no pós-abolição.
O cotejo dos estatutos de clubes, periódicos, processos crimes, possibilitou a Juliana da Conceição Pereira analisar o comportamento moral e as regras de conduta adotadas nos bailes dos clubes dançantes cariocas entre as décadas de 1880 e 1920. As fontes pesquisadas revelam como as variáveis de raça, classe e gênero foram selecionadas pelos articulistas em seus artigos para justificar os crimes perpetrados contra as frequentadoras dos bailes.
Geilza da Silva Santos enfrenta o desafio de tentar localizar o lugar da mulher negra no pós-abolição. Para desenvolver tal tarefa debruçou-se sobre as transformações pelas quais passou a história das mulheres, suas contribuições e o legado do feminismo negro. Uma análise sobre as mulheres negras da comunidade quilombola Senhor do Bonfim, no munícipio de Areia, Estado da Paraíba, foi tecida a partir dos censos do munícipio, do relatório antropológico produzido pelo INCRA, bem como das memórias de duas moradoras do lugar no tempo presente.
João Marinho da Rocha apresenta uma vigorosa história das emergências das identidades étnicas e do movimento social quilombola do Rio Andirá, Estado do Amazonas. Seu trabalho reúne relatos orais das mulheres quilombolas, diretamente envolvidas no processo de luta pelo reconhecimento de direitos e lança luz sobre a presença negra e suas lutas no pós-abolição da Amazônia.
Encerrando este número da revista, Marina Vieira de Carvalho nos brinda com uma abordagem envolvente e bastante inovadora. Ao analisar o imaginário pornô-erótico sobre a mulher negra no pós-abolição carioca, a autora compara os discursos e conflitos produzidos sobre o corpo feminino nas narrativas ficcionais normativas e colonizadas do periódico Rio Nu (1898-1916) e naquelas criadas pela poesia erótica transgressora de Gilka Machado, mulher afrodescendente e pobre. Assim, a autora reconstrói um aspecto pouco explorado na história do pós-abolição, evidenciando o “novo feminino” da escrita de Gilka, que dá voz sobretudo às mulheres das camadas populares, recusando o aprisionamento e a “natureza maldita do corpo feminino negro”.
Em tempos tão difíceis, de inúmeros retrocessos e perdas de direitos duramente conquistados, as pesquisas aqui apresentadas sobre a história das mulheres negras demonstram a vivacidade e os avanços da escrita da história do pós-abolição, além de apontar outras tantas possibilidades abertas pela Lei 10.639, de 2003 que, voltada à educação antirracista, instituiu a obrigatoriedade do ensino da História da África e da cultura Afro-brasileira, reconhecendo a importância das lutas dos africanos e africanas, bem como de seus descentes, na formação da sociedade brasileira.
Nota
1 RIOS, Ana Maria; MATTOS, Hebe Maria. “O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas”. TOPOI, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004, pp. 170-198
Cláudia Maria de Farias
Fernanda Oliveira da Silva
Júlio Cláudio da Silva
As organizadoras e o organizador
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