Apresentar mais uma Edição da Revista Eletrônica História em Reflexão (REHR) é motivo de imenso orgulho e satisfação. Fruto de um esforço coletivo dos editores discentes do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados, dos membros do Conselho Editorial e do Consultivo, a cada lançamento a REHR tem dado passos relevantes na tarefa de se consolidar como meio de interlocução acadêmica na área de História em Mato Grosso do Sul, e no cenário brasileiro. Nesse sentido, destacamos a confiança dos autores de todo o país que contribuem com seus trabalhos e acreditam na seriedade e qualidade da Revista.
Em sua XIV Edição, a REHR traz o dossiê História das Religiões e Religiosidades. O estudo das manifestações religiosas conquistou espaço em diversas áreas do saber acadêmico no Brasil. Pode ser caracterizado como um campo de estudo “composto, fundamentado em um pluralismo metodológico, influenciado por especializações e tradições culturais e institucionais locais e enredado em uma teia de tensões epistemológicas” [1]. A temática é abordada em áreas como a Antropologia, Teologia, História, Sociologia, Geografia, Ciências da Religião, Filosofia, Psicologia, Comunicação, Medicina e muitas outras. De acordo Antonio Gouvêa Mendonça:
As relações com o sobrenatural condicionam os estilos, as normas e a práxis do homem nas suas relações uns com os outros e com a natureza. Mesmo onde a racionalização filosófica ou científica passa por alto na nomenclatura dos deuses, estão presentes configurações de poderes que desenham universos diferenciados pelos quais os homens lutam, às vezes, até as últimas consequências […] feitios que, embora, sob disfarces diversos, são poderes verdadeiramente religiosos [2].
Essa amplitude para estudo é reflexo do próprio campo religioso brasileiro, caracterizado por uma diversidade de crenças, instituições e práticas religiosas. O sagrado está por toda a parte no país. Diversidade que, infelizmente, mascara diversas práticas de intolerância religiosa, de grupos religiosos maioritários contra minoritários e vice e versa. As ideias, crenças religiosas extrapolam as paredes de igrejas, templos, terreiros, sinagogas etc., e se manifestam em esferas como a da política partidária. Basta recordar as últimas eleições presidenciais, na qual, temas como o aborto foram instrumentalizados por diversas lideranças religiosas em prol de um determinado candidato. Cabe lembrar ainda a presença da chamada bancada evangélica, no Congresso, e das polêmicas que recentemente envolveram o Deputado Marco Feliciano, Presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal.
Em 2014, será lembrado o cinquentenário do Golpe Militar, período recente da história brasileira, revelador de cicatrizes e feridas; período esse para o qual instituições religiosas, sobretudo cristãs, participaram ativamente dos “dois lados”. Esse momento histórico tem sido relembrado pelas mídias, especialmente devido à atuação da Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2012, e que possui um GT específico para investigar a participação de religiosos durante os governos militares, intitulado “O papel das igrejas durante a ditadura”. “Se conheceres a verdade, a verdade vos libertará”; oxalá esse GT tenha êxito.
No âmbito específico da História não é diferente. O estudo do sagrado passou de uma temática marginal há poucas décadas, especialmente devido a uma herança marxista da academia brasileira, para um campo fértil de estudos. O tema norteia diversos grupos de pesquisa, linhas de pós-graduação e periódicos e influencia uma diversidade de publicações.
E, por falar em publicações, no mês de outubro de 2013 em São Paulo, veio a público um caso curioso e que pode ser considerado um divisor de reflexões para o estudo acadêmico das religiões no país. Durante a sessão de lançamento de livros no I Simpósio Regional Sudeste da Associação Brasileira de História das Religiões, o historiador Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho, ao apresentar o livro de sua autoria intitulado “A grande onda vai te pegar. Marketing, espetáculo e ciberespaço na Bola de Neve Church” [3] informou aos presentes que um advogado da referida Igreja o procurara instantes antes tentando dissuadi-lo de lançar a obra, afirmando ao autor que o mesmo “iria ter problemas”. Conforme escreveu Eduardo Meinberg em uma rede social “a Bola de Neve já havia entrado com uma Ação de Indenização e um agravo de instrumento [dias antes da data agendada para o lançamento da obra]. A ação pedia que o livro não fosse publicado, que o evento de lançamento fosse cancelado, [e que o autor] não mencionasse mais o nome da igreja em trabalhos futuros, que retirasse de circulação o que [o autor já havia escrito] sobre a igreja, que retirasse a fanpage do livro do Facebook, e estipulava multa indenizatória de R$ 50 mil caso o livro fosse lançado e mais R$ 10 mil diários após o lançamento”. Felizmente, a ação e o agravo de instrumento foram indeferidos por um juiz e por um desembargador (isto antes da noite de lançamento) [4]. Mesmo com ganho de causa, o pesquisador informou nas redes sociais que nos meses seguintes se sentiu intimidado, amordaçado, constrangido. Esse caso teve diversas repercussões nas redes sociais, em periódicos de grande circulação nacional e nos círculos acadêmicos. A Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) [5] e o GT de História das Religiões e Religiosidades da ANPUH (GTHRR) divulgaram uma Carta Aberta em defesa da referida publicação.
Além das publicações e grupos de pesquisa, é preciso citar os diversos eventos dirigidos a esses historiadores, mas que reúnem estudiosos das mais diversas áreas. Desses, é importante lembrar os encontros nacionais da Associação Brasileira de História das Religiões, realizados bianualmente. A ABHR foi fundada em 1998 com a instalação da Linha de Pesquisa Religiões e Visões de Mundo no Programa de Pós-Graduação em História da UNESP / Assis, e passou a ter caráter nacional em 1999 com a realização de seu I Simpósio, na mesma Universidade. Desde então, a Associação realiza seus encontros maiores a cada dois anos, reunindo grande número de pesquisadores. Nos últimos anos, a entidade foi subdividida em cinco regionais, que promovem igualmente os seus respectivos encontros. Outra contribuição importante da ABHR é a publicação da “Coleção ABHR”, livros que reúnem textos dos respectivos encontros nacionais da entidade. Uma característica dessas publicações é oferecer aos leitores subsídios teóricos para a abordagem das manifestações religiosas. A entidade também é responsável pela publicação da Revista Plura [6], criada em 2010.
É importante citar também as atividades do GT de História das Religiões e Religiosidades da ANPUH. Esse grupo completou 10 anos de fundação em 2013. Foi criado em 2003 na cidade de Dourados / MS, durante a realização do I Simpósio sobre Religiões, Religiosidades e Culturas [7], na então Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, sob a coordenação do Prof. Jérri Roberto Marin. Esse GT teve sua primeira reunião nacional durante o XXIII Simpósio Nacional da ANPUH, em Londrina / PR, em 2005, quando foi eleita a sua primeira gestão (2005-2007). O GT realizou o seu I Encontro Nacional em 2008, na cidade de Maringá / PR. Desde então, realiza os encontros nacionais a cada dois anos. Posteriormente, o GT também foi subdividido em regionais, que passaram também a organizar encontros. Além dos diversos eventos, o GT é responsável pela publicação da Revista Brasileira de História das Religiões 8, criada em 2008.
Em 2013, a Comissão de Estudos para a História da Igreja na América Latina (CEHILA), completou o seu 40º aniversário. Criada na cidade de Quito, no Equador em 1973, a Comissão reúne diversos estudiosos do cristianismo no continente Americano. Realiza encontros internacionais e a CEHILA-Brasil, também criada em 1973, promove encontros nacionais.
Uma característica dessas entidades dedicadas ao estudo das religiosidades é o deslocamento do olhar investigativo das instituições para as vivências e para as práticas religiosas no cotidiano. Nesse sentido, demanda dos estudiosos um olhar amplo, interdisciplinar; um ecumenismo teórico e metodológico. Esse desafio pode ser vislumbrado na diversidade de temáticas que se desdobram a partir do grande tema religião / sagrado, como pode ser conferido nos artigos do dossiê História das Religiões e Religiosidades dessa edição.
Abrindo o dossiê, Ipojucan Dias Campos compartilha o seu artigo intitulado Código Civil e Igreja: construções, discursos e representações (1916-1940). O autor interpreta as relações de força que se estabeleceram no início do século XX, com a aprovação do Código Civil de 1916, entre República e Igreja acerca da secularização do casamento e da separação conjugal. Assim, vislumbra como os tensos debates em torno da laicização foram intensamente apresentados e enfrentados pelas duas instâncias de poder; isso acontecia porque na ocasião estavam em jogo diretrizes em torno dos princípios por onde a família deveria trilhar a sua formação dita legal.
Vagner Aparecido Marques, em seu artigo A Dupla Vida do Pesquisador: etnografia da conversão ao pentecostalismo de membros do PCC na zona leste de São Paulo apresenta algumas inquietações em campo, durante sua pesquisa realizada para o mestrado em Ciências da Religião pela PUC-SP. Os registros apresentados são resultado de entrevistas com Kadu, personagem principal da pesquisa, membro do PCC e de uma denominação pentecostal. O objeto central do trabalho está no questionamento referente ao ato da conversão ao pentecostalismo, sobretudo o binômio conversão = rupturas, que se sustentou como verdade fundamental ao longo de décadas na Sociologia da Religião e nos estudos sobre o pentecostalismo, mas que, em análises de campo, mostrou-se cada vez menos sólido. Ao converter-se ao pentecostalismo, Kadu não deixou de ser “irmão” do PCC para tornar-se “irmão” da igreja, e essa metamorfose em sua trajetória exigiu alguns cuidados no campo de pesquisa. Tais cuidados são discutidos no texto a fim de contribuir para a discussão sobre o papel do pesquisador no campo, seus posicionamentos, proximidade com o objeto e a necessidade de um distanciamento para análise dos dados e das fontes levantadas.
Em A „Orientação pelo Evangelho‟ e a Consolidação do Espiritismo no Brasil (1860- 1940), Ana Lorym Soares analisa o processo de introdução e consolidação do espiritismo no Brasil entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Seu objetivo é examinar a relação estabelecida entre o espiritismo e seus contestadores, entre os quais se pode destacar a Igreja Católica e instituições jurídicas, médicas e sanitárias brasileiras, de modo a evidenciar as táticas utilizadas para sair de uma situação de contestação e alçar-se a um patamar aceito entre as várias opções religiosas do Brasil.
No seu artigo Entre a Fé e o Crime: a atuação do Reformador e da Federação Espírita Brasileira diante dos processos criminais contra cidadãos espíritas (1891-1905), Adriana Gomes discute a atuação do periódico espírita Reformador e da Federação Espírita Brasileira diante de processos criminais que cidadãos espíritas se envolveram por adotarem práticas consideradas contrárias à ordem pública. Estes cidadãos passaram a ser inseridos pelas autoridades políticas, policiais e médicas no que juridicamente ficou denominado de charlatanismo e curandeirismo. No Código Penal de 1890 práticas espíritas foram criminalizadas nos artigos 156, 157 e 158, sobretudo, no artigo 157. Aos agentes sociais envolvidos nos processos criminais, sobretudo advogados e juízes, coube à tarefa de diferenciar conceitualmente o que era religioso e o que era magia. Assim como, o que era crença e o que era exploração num emaranhado de práticas e representações subjetivas do que se compreendia como sendo espiritismo.
Walter Valdevino do Amaral compartilha seu artigo “O Abecedário das Filhas de Maria”: práticas de uma religiosidade católica, que analisa o surgimento da Pia União das Filhas de Maria, sua organização e estrutura interna, seus ritos de iniciação e as suas regras comportamentais, com o objetivo de mostrar como esta associação foi fundamental, para a construção de modus vivendi a ser seguido pelas jovens católicas no final do século XIX e início do XX. Para tal análise, adota o conceito de habitus, proposto por Pierre Bourdieu; e a ideia de disciplina, sugerida por Michel Foucault.
O Rock e a Cultura Evangélica Juvenil: música & identidades é o artigo apresentado por Laís Cândida Ferreira. A autora analisa as formas de inserção do rock no cenário protestante brasileiro, bem como sua influência para a formação de identidades juvenis. Para tal objetivo utiliza como fontes de estudo as canções de duas bandas: Oficina G3, atuante no mercado nacional evangélico desde 1990, e Desertor, representante do cenário underground evangélico desde 1995. A análise das canções em seu conjunto, compreendendo questões estruturais e contextuais, mostrou que essas bandas estão dialogando de forma intensa com o mercado secular, tanto em questões estéticas ligadas à sua performance quanto técnicas, referentes à sua musicalidade. Por outro lado, as ideias que procuram ser transmitidas permanecem ligadas à tradição pietista, mesmo no caso da Desertor que tem letras ligadas à temática punk.
O autor Charles David Tilley Bilbao finaliza o dossiê com seu artigo La Mala Mirada: brujas y vacas. No trabalho, aborda um tema clássico dos estudos antropológicos: o mauolhado. Para isso, analisa como este fenômeno cultural se articula em relação aos animais, particularmente, na pecuária. Essas crenças, inscritas na religiosidade popular, tendem atualmente a desaparecer em certos contextos rurais, ao menos da maneira como o conhecíamos. Por esse motivo, realizou uma pesquisa sobre o tema na província espanhola de Asturias, com especial atenção aos métodos de prevenção e cura do mau-olhado em bovinos.
Na seção de artigos livres, Wilian Junior Bonete compartilha o seu trabalho intitulado Notas sobre o Conceito de Consciência Histórica e Narrativa em Jörn Rüsen e Agnes Heller. Consciência histórica é uma expressão que não representa um sentido comum a todos que dela fazem uso e está, muitas vezes, relacionada a realidades distintas e excludentes entre si. Isto porque possui mais do que um conceito, tornando assim difícil sua definição. O artigo enfrenta esse desafio e reflete sobre os fundamentos do conceito de consciência histórica e narrativa a partir das elaborações teóricas de Jörn Rüsen e Agnes Heller. Esses autores são privilegiados por conceberem a consciência histórica enquanto um fenômeno necessariamente humano, cuja operação mental articula passado, presente e futuro como forma de orientação e compreensão das experiências vividas pelo homem no tempo, no espaço, nas diversas circunstâncias da vida prática cotidiana.
No artigo Sexualidade e a História da Mulher na Idade Média: a representação do corpo feminino no período medieval nos séculos X a XII, André Candido da Silva e Márcia Maria de Medeiros apresentam discursos sobre as mulheres na Idade Média por meio de figuras distintas como de Eva, Virgem-Mãe e Madalena, associando-as à sexualidade e à sedução, que, para a época, constituíam formas absolutamente repreensíveis pela sociedade, estruturada pela cultura patriarcal e religiosa.
Nessa edição, a REHR teve a satisfação entrevistar o professor Luis Fernando Ayerbe. Ayerbe (UNESP), que possui larga experiência com pesquisa nas áreas de História das Relações Internacionais e Estudos Internacionais, atuando, em suma, com os seguintes temas: América Latina Contemporânea, Política Externa dos Estados Unidos e Relações Interamericanas. A entrevista e apresentação do professor foi realizada pelo editor Anatólio Medeiros Arce.
Finalizando a XIV Edição, a REHR apresenta duas resenhas: O Erotismo, de Georges Bataille, resenhada por Wallas Jefferson de Lima; e a obra Alcântara: alma e história, de autoria Albani Ramos e Sebastião Moreira Duarte, resenhada por Daniel Rincon Caires.
Convencidos de que os artigos publicados nesse dossiê contribuirão para um conhecimento acadêmico mais consistente, desejamos também que a leitura possibilite reflexões sobre a necessidade do respeito e da convivência com as diferentes maneiras do viver religioso / cotidiano do outro.
Boas leituras.
Notas
1. GEERTZ, Armin W. O estudo da história das religiões no mundo. In: SIEPIERSKI, Paulo D.; GIL, Benedito M. Religião no Brasil: enfoques, dinâmicas e abordagens. São Paulo: Paulinas, 2007. Coleção de estudos ABHR, 2ª ed.
2. MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, pentecostais e ecumênicos: o campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 1997.
3. O livro é fruto da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Atualmente o autor cursa o Doutorado em História na Universidade de São Paulo (USP).
4. Trechos do perfil de uma rede social utilizados com autorização de Eduardo Meinberg.
6. http: / / www.abhr.org.br / plura / ojs / index.php / plura / index
7. Nos anos de 2006 e 2009 foram realizadas as 2ª e 3ª edição desse Simpósio. Esses eventos reuniram nas cidades de Dourados (2003 e 2006) e de Campo Grande (2009) um grande número de estudiosos das manifestações religiosas, configurando-se como um dos maiores eventos da temática no país. Além dos anais dos encontros, foram publicados dois livros: “Religiões, religiosidades e diferenças culturais” (UCDB, 2005) e “Religiões e identidades” (UFGD, 2012), organizados pelo prof. Jérri Roberto Marin.
8. http: / / www.dhi.uem.br / gtreligiao / index.html
Fabiano Coelho (editor)
Carlos Barros Gonçalves (pesquisador convidado).
Dourados – MS, Primavera de 2013.
COELHO, Fabiano; GONÇALVES, Carlos Barros. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 7 n.14, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]
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