As mulheres nunca estiveram ausentes da história, embora a historiografia oficial as tenha esquecido. Pesquisadoras(es) tem se debruçado sobre estudos da história das mulheres e suas lutas em todos os processos civilizatórios. Além disso, as mulheres têm garantido o seu lugar de cidadã na vida, no mundo e na própria história. No decorrer da história há uma relação entre gênero e poder que precisa ser estudada, revelada, reescrita, pois a história tradicional antropocêntrica e universalizante criou o mito do sexo frágil, da impotência feminina e da sua dependência existencial do masculino.
As produções teóricas relativas à História das Mulheres encontram-se ligada ao movimento de renovação da própria história que, distanciando-se da história tradicional de cunho positivista que se impôs no século XIX, se voltava a preocupar por traçar um caminho interessado muito mais pelos coletivos que pelos individuais, pela evolução da sociedade que pelas instituições, pelos costumes que pelos acontecimentos, pelas coletividades excluídas do que pelos grandes personagens1.
O nascimento de novas abordagens e perspectivas na história com a fundação dos Annales, em 1929, traz consigo uma nova agenda que conquistará um espaço fundamental para a emergência da história das mulheres: a crítica as narrativas históricas tradicionais, da história factual particularmente política ou econômica; a procura de colaboração com outras ciências; a substituição da história simplesmente narrada, pela história-reflexiva, problema.
A crítica do estatuto marginal em que a abordagem histórica tinha confinado as mulheres e a consciência que a história de mulheres se desenhava, sobretudo, na ausência e no silêncio que as envolvia, levou o movimento feminista desde a década de 1960 a lutar pela necessidade de visibilizar as mulheres e o seu protagonismo na história. O silêncio e a ausência teriam de ser rompidos através da militância do movimento feminista, buscando visibilizar o protagonismo e a sua marca, apagada pela cultura androcentrica no decurso dos acontecimentos históricos.
Muito dos paradigmas que orientaram o fazer historiográfico se assentava sobre o pressuposto de que a realidade era uma entidade objetiva e que, portanto, a consciência, a identidade e as ações dos sujeitos históricos estavam determinadas pelas condições materiais de existência. Por esse ponto de análise, a subjetividade e a conduta dos indivíduos eram simplesmente a expressão e o efeito da experiência do real e a tomada de consciência dos significados que esse real possuía. E, portanto, a linguagem com que os indivíduos se referem ao mundo em que vivem e o lugar que ocupam nele, definem sua identidade e seus interesses e dão forma expressiva a suas crenças, porém para esses modelos de análise, era somente um meio através do qual a própria realidade objetiva é reconhecida e enunciada.
Na História das Mulheres a dimensão da linguagem, dos discursos, passa a ser uma ferramenta de análise importante, não como meio de representação da realidade, mas operando como um sistema de significação, posto que intervém ativamente na produção de significados que se atribuem ao mundo real e a partir dos quais se organiza e dá sentido a prática. A linguagem não é só vocabulário, mas também discurso, isto é, um conjunto de formas conceituais, culturalmente estabelecidas, de perceber, aprender e fazer inteligível nosso contexto, nosso cotidiano. Em conseqüência, os conceitos lingüísticos não simplesmente se referem à realidade e a designam, como também contribuem para a elaboração da imagem que temos dela e, portanto, influem na maneira em que experimentamos o mundo e nosso lugar nele.
Enquanto narrativa, a História constitui-se como tradição e cânone do qual as mulheres não participaram de modo visível pelos caminhos tradicionais do fazer histórico. A teoria feminista procura investigar a fundamentação dessa ausência. É um modo de teorização que surge com pensadoras e revolucionárias, como por exemplo, Mary Wollstonecraft, em seus Escritos Políticos, nos quais crítica o sexismo dos pensadores homens (como o de Rousseau), ou como Rosa de Luxemburgo com sua originalidade de pensar o socialismo alemão, e que evolui até meados do século XX (presente nas concepções e práticas pedagógicas nas escolas) como teóricas que nem Simone de Beauvoir em seu O Segundo Sexo, alertando para os direitos das mulheres na base de uma reivindicação do ser e do pensar à vida pública e ao universo do discurso e do poder.
As narrativas históricas que ditam um discurso de “improdutividade” às mulheres, não podem ser avaliadas, sem a procura pelos aspectos que fundamentaram o imaginário social na história naquele período, bem como as representações que ditaram, em certos contextos históricos, que as mulheres eram seres do silêncio por sua própria natureza ou que, na divisão do trabalho, tenham ficado com as tarefas do corpo, da procriação, da casa, da agricultura, da domesticação dos animais, do servir-cuidar-nutrir, perdendo assim sua capacidade como sujeito.
A critica às narrativas históricas introduzida, sobretudo por algumas correntes feministas, de que a própria história de mulheres não teria sido idêntica para todas as mulheres provoca novas cisões, já não com uma história geral masculina que excluía as mulheres, mas com uma história das mulheres que, sem questionar os pressupostos hegemônicos, totalizantes, retirados do positivismo historicista, haviam invisibilizado não apenas as narrativas como também seu protagonismo na sociedade2.
Recentemente o historiador francês Roger Chartier3 (que nos brinda com um texto nessa revista) advertiu contra os perigos de se investir na diferença entre os sexos de uma força explicativa universal; de se observar os usos sexualmente diferenciados dos modelos culturais comuns aos dois sexos; de se definir a natureza da diferença que marca a prática feminina e da incorporação feminina à dominação masculina.
A história tem sido, desde sempre, o lugar da legitimação, do domínio. Virginia Wolff4 na sua celebre obra: “Um teto todo seu” aponta uma dimensão profundamente importante sobre a vida das mulheres: o espaço privado do quarto, das quatro paredes como espaço constitutivo de identidades, resistências, sonhos, desilusões, etc. O controle e a distribuição da palavra escrita, encarregada principalmente pelos homens letrados, os escritores, os cronistas, os historiógrafos, implicou num uso e abuso do poder simbólico em narrar, relatar, significar determinadas parcelas da realidade, parcela essa ligada diretamente aos triunfos, aos grandes feitos heróicos, com pretensões de superioridade e feitos de grande poder.
Produto esse, resultado da manipulação, do controle da palavra, da escrita, que assegurou a instalação do poder, da lei, do imaginário social na História (com H maiúsculo) e a legitimação de uma minoria social, que assegurou, determinou e confinou as ferramentas do pensar, não permitindo o livre exercício da autonomia do narrar e escrever das mulheres. O patriarcado teve como uma de suas funções na história, a construção e a reprodução de uma memória implacável, imóvel, endurecida controladora do poder epistêmico.
Essa história, no qual somos herdeiros(as) ainda nos cerca, nos acompanha, nos limita. Mas, nos espaços sociais dessas narrativas oficiais, também existiu um lugar, um outro espaço, dentro do hegemônico, e esse é o da História das Mulheres. Existiu nas profundezas do confinamento do pensamento, dentro dos muros mais sólidos, e talvez, mais intocáveis, num território marcado pela exclusão das capacidades do humano. Essa parcela (mais da metade da humanidade) miserável e confinada, nem sequer foi constituidora da memória. Esse longo processo histórico foi marcado pela desmemorizaçao e descorporalizaçao das mulheres, condição própria do poder masculino.
Esse foi, infelizmente, um requisito para que a história funcionasse através da memória e das narrativas tradicionais: que se fechem as portas e as janelas, para que os ouvidos não ouçam os murmúrios sem história, em um circulo que só teve sentido através do silencio, da não-palavra às mulheres. Uma história fora da historia, tem relação direta com a perda da memória histórica das mulheres e sua ausência no cenário humano.
Assim, e como diria Paul Veyne5, o que deve ser privilegiado pelo historiador passa a ser dado pela temática que ele recorta e constrói, e não por um consenso teórico exterior à problemática, como acontecia antes quando se trabalhava com o conceito de modo de produção, por exemplo, ou ainda, quando a preocupação maior com o passado advinha de suas possibilidades em dar respostas à busca da Revolução. Somos permeados pela realidade no qual estamos inseridos e somos resultado dela.
Esse número da revista Fronteiras pontua reflexões e pesquisas sobre a História das Mulheres e os Estudos de Gênero. Nestes anos todos, a revista manteve o seu propósito de ampliar as fronteiras dos debates acadêmicos no campo dos estudos historiográficos, através da publicação de artigos, ensaios e resenhas que apresentam reflexões teóricas consistentes e inovadoras, com bibliografia atualizada. Finalmente, quero dizer que esses artigos da revista FRONTEIRAS, é um esforço conjunto de pesquisadoras envolvidas com a História das Mulheres e os respectivos temas transversais.
Especialmente nesse número temos o privilégio de contar com a contribuição de um texto do Historiador Roger Chartier. Ele é um dos mais conhecidos historiadores da atualidade, com obras publicadas em vários países do mundo. Sua reflexão teórica inovadora abriu novas possibilidades para os estudos em história cultural e estimula a permanente renovação nas maneiras de ler e fazer a história. Chartier foi professor nas universidades Princeton, Montreal, Yale, Cornell, John Hopkins, Chicago, Pensilvânia, Berkeley. Roger Chartier escreveu muitas obras. Referenciamos aqui algumas publicadas no Brasil: “História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes”; “Cultura escrita, literatura e história”; “Formas do sentido – cultura escrita: entre distinção e apropriação”; “Os desafios da escrita”; “A aventura do livro”; “À beira da falésia”; “Do palco à página”; “A ordem dos livros”; “História da leitura no mundo ocidental”; “Práticas da leitura”, dentre vários artigos.
Esse texto que apresentamos ao leitor da revista Fronteiras, inédito na versão portuguesa, é referente à Palestra Pouvoirs et limites de la notion de représentation proferida pelo professor em 7 de maio de 2010 no Colloque franco-allemand “Représentation / Darstellung”, realizado pelo Institut Historique Allemand de Paris. O contato bem como a autorização para a publicação do referido texto com o Professor Roger Chartier foram feitos por André Dioney Fonseca e Eduardo de Melo Salgueiro, ambos ex- alunos do programa de Pós Graduação em História da UFGD. A coordenação editorial da revista agradece ao Professor Roger Chartier a autorização para publicação deste texto no Brasil, e aos ex-alunos Me. André Dioney Fonseca e Me. Eduardo de Melo Salgueiro, pelo cuidadoso acompanhamento das diferentes etapas, até que fosse publicado o texto em nossa revista.
O Dossiê “História das Mulheres e Estudos de Gênero” conta com a contribuição de artigos de pesquisadoras da Universidade de Jaén (Espanha) através do Departamento de Culturas e Línguas Mediterrâneas, juntamente com o programa de Doutorado “Mujeres, Gênero y Estúdios Culturales” que prontamente aceitaram o convite para escrever e refletir sobre a História das Mulheres a partir da perspectiva literária e histórica. Desde já nosso especial agradecimento a Dra. Encarnacion Medina Arjona (coordenadora do Dept. de Cultura e Línguas Mediterrâneas) da Universidade de Jáen / Espanha pelo esforço e dedicação na reunião dos textos das pesquisadoras espanholas.
Contamos também com a contribuição da Dra. Cleci Fávero que nos apresenta uma analise original sobre os produtos da cultura popular de origem camponesa, observando como uma dada sociedade atua, no sentido de apropriar-se de algumas manifestações culturais, adaptá-las a seus interesses e transformá-las em tradição – um processo nem sempre consciente, mas eficiente, de construção de identidade. Neste artigo, podemos entender que os objetos, os mais variados, podem ser eleitos como valiosos elementos de pesquisa, quando o objetivo é a elaboração de uma história cultural. Por outro lado, ao buscar os significados possíveis para o discurso não verbal, uma investigação direcionada a objetos de natureza semelhante aos apresentados pode apontar para estudos do imaginário e do simbólico de uma determinada cultura.
O artigo da Dra. Ana Maria Colling “As primeiras médicas brasileiras mulheres à frente de seu tempo”, nos mostra como as primeiras médicas brasileiras foram mulheres que ousaram ultrapassar a barreira da educação e das profissões estritamente masculinas e chocar-se contra o bloco de representação que as rodeava e as impedia de acesso à educação e ao trabalho. Este texto conta a história destas mulheres à frente de seu tempo, e como o saber popular feminino, da chazeira, parteira, curandeira, são excluídos quando são criados os cursos de medicina, se deparando com a separação entre saber e poder.
O texto “Movimentos de mulheres: (re)construindo subjetividades femininas em Teresina – Piauí” da Dra. Claudia Cristina da Silva Fontineles e Me. Jayra Barros Medeiros, analisa os encaminhamentos promovidos pelos grupos femininos no cenário teresinense e as interfaces dos movimentos de mulheres com questões de ordem política e comportamental da sociedade da época, usando como metodologia de pesquisa consultas em documentos oficiais, em fontes hemerográficas e em fontes orais.
A Dra. Eliane Martins de Freitas, no texto “Mulheres de ‘má conduta’: discurso jurídico e relações de gênero- Catalão / GO -1890-1941” procura compreender as representações de feminilidade presentes no discurso da Justiça nos casos em que esta instância foi chamada a intervir em processos envolvendo homens como agressores e mulheres como vítimas sejam nos casos de crimes contra a pessoa (homicídios, tentativas de homicídios e lesões corporais) seja nos crimes contra a honra, ou chamados “crimes sexuais” (estupros e defloramentos), na Comarca de Catalão no período de 1890-1941.
Já por sua vez, o artigo intitulado “Adelina e Carlita: adultério, divórcio e poder judiciário em Belém no final dos oitocentos”, do Dr. Ipojucan Dias Campos, nos remete a uma leitura das relações extraconjugais e de divórcios de duas mulheres no século XIX, identificando as representações dos discursos auferidos sobre a vida privada das mesmas, bem como as relações de poder e de gênero que estas vivenciaram no respectivo processo. Finalmente agradeço a todas(os) pela colaboração à revista FRONTEIRAS.
Boa Leitura!
Notas
1. A utilização que aqui se faz da expressão “história das mulheres” assume e representa a algumas das múltiplas correntes e concepções existentes neste campo historiográfico desde o seu significado original até as abordagens teóricas dos estudos feministas, história do gênero, não tendo por isso nenhuma conotação particular com alguma das correntes atrás referidas. É exatamente pela multiplicidade de correntes e abordagens que a História das Mulheres se firma profundamente no cenário epistemológico contemporâneo. Uma semelhança da opção que foi tomada, por exemplo, na extensa obra História das Mulheres no Ocidente dirigida por George Duby e Michelle Perrot.
2. Ver importante artigo a respeito: PEDRO, Joana M.; SOIHET, Raquel. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 27, n. 54, p. 281-300, 2007.
3. CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e dominação simbólica (nota crítica). In: Cadernos Pagu – fazendo história das mulheres, Campinas, Núcleo de Est. De Gênero / UNICAMP, (4), p. 40-42, 1995.
4. WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
5. VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70, 2008.
Losandro Antonio Tedeschi – Professor Doutor
Organizador do Dossiê “Histórias das Mulheres e Estudos de Gênero”
TEDESCHI, Losandro Antonio. Apresentação. Fronteiras: Revista de História. Dourados, v. 13, n. 24, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]
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