História das crianças no Brasil meridional | CARDOZO José Carlos da Silva Cardozo, Jonathan Fachini da Silva, Tiago da Silva Cesar, Paulo Roberto Staudt Moreira e Ana Silva Volpi Scott
O livro História das crianças no Brasil meridional, organizado pelos historiadores José Carlos da Silva Cardozo, Jonathan Fachini da Silva, Tiago da Silva Cesar, Paulo Roberto Staudt Moreira e Ana Silva Volpi Scott, publicado há quatro anos pela Editora Oikos em parceria com a Editora da UNISINOS, teve destaque no Prêmio Açoriano de Literatura em 2016. Agora, as Editoras supracitadas brindam o público leitor no ano de 2020 com uma segunda edição do livro em formato e-book, possibilitando uma maior circulação do conhecimento. Frisa-se, ainda, que a obra em tela é indiscutivelmente um referencial bibliográfico fundamental e determinante no campo da história social.
A obra descortina as várias histórias de pequenos indivíduos, meninos e meninas que, até então, estavam escondidos e esquecidos em documentos produzidos por adultos de múltiplas temporalidades. Tais fontes encontram-se espalhadas em arquivos de muitas regiões do Brasil, com uma presença maior da região Sul. Assim, a coletânea apresenta textos que pavimentam e pavimentarão o processo de consolidação da história da criança na América Latina.
Além disso, o livro anuncia um significativo estado da arte do objeto examinado, demonstrando uma crítica apurada e criteriosa sobre os trabalhos elaborados e publicados em décadas passadas, tanto no âmbito da historiografia brasileira quanto em escala internacional. A apresentação “Eu, sou Sofia… Aylan, Ana, Maria, João…”, com palavras iniciais dos organizadores, imprime, no leitor atento, a necessidade de estudar o passado humano por meio de problemas que ainda provocam os historiadores no tempo presente.
O prefácio é escrito pela professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Claudia Fonseca. A docente, como estudiosa da infância brasileira, expõe a qualidade da obra:
História das crianças no Brasil Meridional apresenta os resultados de trabalho de um núcleo já bem consolidado de pesquisadores, alguns já consagrados, outros mais jovens. São estudiosos que também desempenham um papel central em redes nacionais e internacionais através da organização de eventos e publicações acadêmicas […] (FONSECA apud CARDOZO et al., 2020, p. 12).
O livro está estruturado em cinco partes, a saber: História das crianças: caminhos e trilhas; Crianças nos tempos coloniais; Crianças: entre leis, direitos e justiça; Crianças: instituições, ensino e representações; e Crianças: violência e assistência. Tais seções são detalhadas em 17 capítulos que buscam atender a um amplo arco temporal, partido de análises realizadas na segunda metade do século XVIII, e se estendendo até a moderna e turbulenta década de 1920.
As fontes históricas utilizadas na elaboração dos capítulos foram de naturezas variadas: produzidas pela Igreja para registar nascimentos; fabricadas pelo Estado para arrolar pequenos prisioneiros em cadeias e calabouços do Império do Brasil; ou redigidas pela iniciativa privada, jornais que noticiavam assuntos sobre a vida de escravos de tenra idade.
À luz de uma leitura ampla da obra em tela, destacam-se os seguintes capítulos como amostragem dos excelentes estudos reunidos: “Um norte em comum: infância no sul do Brasil na produção historiográfica brasileira”, escrito em uma parceria entre Esmeralda Blanco B. de Moura e Silva Maria Fávero Arend; “Sem pai ou mãe: batismos de crianças naturais no Extremo Sul do Brasil (Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre, séculos XVIII e XIX)”, elaborado por Denize Terezinha Leal Freitas; seguidos por “Sem lar, viviam abrigados sob o teto da casa de seus senhores: experiências de vida e morte dos filhos do Ventre Livre (Porto Alegre, RS – 1871/1888)”, desenvolvido por Paulo Roberto Staudt Moreira e Natália Garcia Pinto; “Jovens pobres, jovens mansos, jovens expostos: menores de idade no Exército Imperial brasileiro”, redigido por José Ivan Ribeiro; e, por último, “Doenças, dolência e perfis da população infantojuvenil da Casa de Correção de Porto Alegre (1850-1888)”, elaborado por Tiago da Silva Cesar.
É importante ressaltar que o elo entre os capítulos supramencionados, além dos outros textos que compõem o denso livro, é a busca constante de revelar ao público leitor uma longa história da criança, mas, não apenas isso: evidenciam-se histórias de descriminações, conflitos, lutas, estratégias, acordos e negociações. Os capítulos são lentes de observação que focaram, sobretudo, na criança depauperada, bastarda, negra, parda, escrava, bem como nas brancas pobres com sangue mestiço e nas quase negras.
Sendo assim, o primeiro capítulo aqui destacado expõe um amplo, crítico e cuidadoso estado da arte sobre a produção historiográfica em que a criança é tomada como objeto de análise. O texto define a década de 1990 no Brasil como um verdadeiro divisor de águas na produção historiográfica, período em que meninos e meninas de outras temporalidades são postos no centro das problemáticas.
Tal capítulo aponta a relevância das teses de Doutorado e das dissertações de Mestrado desenvolvidas nos muitos Programas de Pós-graduação brasileiros após os anos de 1990. Isso permitiu que uma coletânea que procurava garantir unidade à história da criança no Brasil fosse reconhecida com o Prêmio Casa-grande & Senzala, ofertado pela Fundação Joaquim Nabuco, em Pernambuco.
O texto destaca um aspecto metodológico de suma importância para os aspirantes a historiadores que desejam devassar arquivos e se debruçar sobre velhos documentos do passado humano: a natureza das fontes. Segundo as historiadoras Esmeralda Blanco B. de Moura e Silva Maria Fávero Arend:
O repertório de fontes documentais que têm subsidiado os estudos sobre a história da infância no Brasil pode ser desmembrado em três grupos: as que tratam sobre as crianças, as que foram produzidas para as crianças e as que foram geradas pelas crianças ou por pessoas adultas sobre a infância (MOURA; AREND, apud CARDOZO et al., 2020, p. 47, grifos do autor).
Em vista disso, a jovem pesquisadora Denize Terezinha Leal Freitas toma como base de sustentação documental para sua pesquisa as atas de batismo, ou seja, os documentos produzidos sobre crianças recém-nascidas. São fontes paroquiais elaboradas ao longo dos séculos XVIII e XIX por sacerdotes católicos na jurisdição eclesiástica da freguesia da Madre de Deus no Extremo Sul da América portuguesa. O intuito de Denize Freitas é investigar um padrão comum nas sociedades portuguesas e espanholas no Antigo Regime: a ilegitimidade. Assim, faz-se necessário ressaltar a relevância desse trabalho. Apesar de existirem inúmeros estudos sobre a bastardia na historiografia brasileira, muitas são as regiões do nosso país que dispõem de documentos paroquiais de batismo, mas não há projetos de pesquisa sobre o assunto. Por isso, o estudo de Freitas trata-se de um texto que soma em conhecimento e provoca novos exames do passado.
A ilegitimidade é analisada por Freitas em suas naturezas, tanto entre a população de livres abastados e depauperados como entre o contingente de pessoas escravas e forras. São explicitados os percentuais de nascimento dos filhos legítimos, seguido dos filhos ilegítimos e das crianças recém-nascidas abandonadas entre os anos de 1772 e 1822, descortinando taxas elevadíssimas de ilegitimidade entre os descendentes de mulheres cativas.
A título de exercício empírico, foi examinada por Freitas uma coleção de 3.821 atas de batismo de pessoas escravizadas, o que permitiu identificar um percentual de 84,3% de ilegitimidade – isso representa, em números absolutos, 3.219 casos. Entre os 8.131 batistérios consultados de recém-nascidos registrados na condição de pessoas livres, arrolou-se um número de 1.438 de filhos ilegítimos, correspondendo ao percentual de 17,7%. Segundo a pesquisadora, esses números dizem muito sobre o acesso ao casamento para os indivíduos mais pobres do mundo colonial.
Já o capítulo construído em colaboração entre Paulo Roberto Staudt Moreira e Natália Garcia Pinto examina um tema bastante abordado na historiografia brasileira: os efeitos e as dinâmicas possibilitadas pela Lei Imperial do Ventre Livre de 1871. O estudo proposto pelos historiadores aproxima as lupas de observação investigativa das cozinhas senhoriais não somente da povoação de Porto Alegre, mas também da povoação de Pelotas, fazendo uso de fontes elaboradas pela iniciativa privada (jornais da época) e pelos documentos oficiais do Estado Imperial, passando inclusive pelas atas de batismo e de óbito. Essa análise estruturada por Moreira e Pinto traz para a ordem do dia os pequenos indivíduos que legalmente não eram mais escravos, mas que poderiam ficar por longos anos sob a dominação dos proprietários de suas mães. Os pesquisadores consubstanciam as experiências sociais em que os filhos do Ventre Livre viviam momentos ou de certa invisibilidade ou como uma presença opaca.
O capítulo produzido por José Iran Ribeiro teve por finalidade examinar e discutir cuidadosamente a participação de menores de idade nos quadros do Exército Imperial brasileiro. O historiador encontra, na estrutura da corporação oitocentista, a reprodução da lógica de uma sociedade legalmente desigual, profundamente marcada por questões raciais e sustentada economicamente por um sistema escravista que perdurou oficialmente até 1888.
Ao longo das páginas escritas por Ribeiro, fica exposta uma história social explicitada com qualidade, em que, com muita facilidade, é possível notar como os indivíduos menores de idade eram tratados diferentemente no cotidiano das tropas. Alguns poucos meninos com menos de 10 anos eram agraciados e privilegiados inicialmente com a condição de cadete, considerando que eram crianças brancas, nascidas em famílias de prestígio político e, por vezes, parentes de oficiais de grande patente. Já os outros meninos de cor e talvez os adolescentes, egressos da mais profunda pobreza e com as raízes familiares na escravidão, eram tratados como cativos, submetidos a toda sorte de humilhações, péssima alimentação e castigos. Ribeiro revela, com base em documentos, que a vida do menor pobre e negro nas tropas brasileiras do século XIX conduziu vários adolescentes à morte. A exemplo: quando eles eram obrigados a trabalhar à noite, trancados em recintos manuseando pólvora para a produção de munições à luz de velas. Quando acidentes ocorriam, resultando em explosões e na morte dos pequenos soldados do Império, os processos investigativos eram instaurados e os fatos apurados. Mas, segundo o autor, as vidas dos pequenos depauperados e de pele negra tinham pouco ou valor algum, pois o que versava nos autos conclusivos dos processos militares que examinavam as causas dos acidentes com crianças nos Arsenais da Guerra, era que a culpa permanecia exclusivamente na irresponsabilidade dos pequenos militares com seus ofícios.
Por último, o capítulo tecido por Tiago da Silva Cesar tem como missão expor o mínimo do cotidiano de uma instituição correcional, entre tantas que existiram no século XIX. Pontualmente, o pesquisador elegeu a Casa de Correção de Porto Alegre durante a segunda parte dos anos oitocentistas, destacando o perfil da população infantojuvenil que ocupava aquele espaço disciplinador de corpos, além de examinar as doenças que provavelmente corroeram aquelas vidas. O autor embala o leitor em uma escrita agradável, descrevendo ambientes totalmente desprovidos de sentimentos de humanidade, repletos de indivíduos marginalizados desde suas origens. Em uma investigação suficientemente sustentada em documentação, o historiador disponibiliza, em suas páginas, gráficos, tabelas e fotografias expondo uma dura realidade que se estende por uma longa duração – e impacta o leitor.
Dois aspectos revelados por Cesar devem ser realçados sobre o mundo dos calabouços do Império do Brasil: primeiro, a população carcerária sulina, entre os anos de 1850 e 1888, era majoritariamente composta por pessoas depauperadas e miseráveis, solteiros, não brancos, mas escravos ou indivíduos com origem na escravidão, tendo idades que se estendiam de 9 a 21 anos; segundo, o contingente da Casa de Correção de Porta Alegre apresentava sinais de lotação extrema já no período oitocentista – uma triste realidade que iria se expandir por todo o século XX e adentrar no século XXI.
Por fim, caso caiba uma leve crítica: a categoria “juventude e infância” deveria ter surgido no título da obra. A publicação em tela não se preocupa unicamente com as crianças nas múltiplas temporalidades, mas também observa como elas eram tratadas e descritas por adultos, fazendo surgir, aos olhos do presente, várias infâncias. E o mesmo vale para a juventude.
Resenhista
Thiago Nascimento Torres de Paula – Pós-Doutor em Educação pela UFRN (PNPD/CAPES/2017-2018), Doutor em História pela UFPR (2016), Mestre em História pela UFRN (2009), Bacharel e Licenciado em História pela UFRN (2005). Atualmente é Analista de Ciência, Tecnologia e Inovação da FAPERN (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte), membro do Grupo de Pesquisa vinculado ao CNPq LEHS/UFRN (Laboratório de Experimentação em História Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), membro externo do Comitê de Pesquisa e Pós-Graduação do IFAM, Docente Colaborador da Pós-Graduação Lato Sensu do IFRN, Colaborador do Núcleo de Formação de Professores da SEEC-RN e titular da Cadeira de número 96 do IHGRN (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte).
Referências desta Resenha
CARDOZO, José Carlos da Silva; SILVA, Jonathan Fachini da; CESAR, Tiago da Silva; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; SCOTT, Ana Silva Volpi (Orgs.). História das crianças no Brasil meridional. 2ª ed. São Leopoldo: Oikos; UNISINOS, 2020. Resenha de: PAULA, Thiago Nascimento Torres de. A relevante história das crianças: um objeto de análise para múltiplas temporalidades (séculos XVIII, XIX e XX). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.12, n. 24, p. 515- 520, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]