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História da virilidade. A invenção da virilidade/ da antiguidade às Luzes v.1 | Alain Corbin, Jean-Jacques Courdine e Georges Vigarello

História da virilidade é co-dirigida por Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine, e Georges Vigarello, este último é diretor do primeiro volume, que ora nos ocupa (A invenção da virilidade – Da Antiguidade às Luzes), o qual reúne 15 pesquisadores, entre a história, literatura, e crítica cultural, provindos de ambiente acadêmico francês e estadunidense. Dividido em seis partes: Parte I – “Virilidades gregas”; Parte II – “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”; Parte III – “O universo bárbaro: mestiçagem e transformação da virilidade”; Parte IV – “O medieval, a força e o sangue”; Parte V – “O mundo moderno, a virilidade absoluta (séculos XVI-XVII)”, esta subdividida em oito capítulos de autoria diferente: “A virilidade e seus “outros”: a representação da masculinidade paradoxal”; “A virilidade dos clérigos”; “O calor dos homens – Virilidade e pensamento médico na Europa”; “Louis XIV ou a virilidade absoluta?”; “Do guerreiro ao militar”; “Confusão de gêneros e experiência teatral”; “O testemunho da pintura”; e “O viril e o selvagem das “terras descobertas”; e, por fim, a Parte VI – “As Luzes e a virilidade inquieta”, subdividida em três capítulos: “Virilidades populares”; “Jogos de “exercício” divertimento e virilidade”; e “Homens de ficção”. Introduzindo a obra tem-se “A virilidade, da Antiguidade à Modernidade”.

Geoges Vigarello, ao apresentar a obra, pesquisador da higiene, dos corpos, da beleza, dos santos, dos esportes, da obesidade (também pela editora Vozes em 2012 traduziu-se As metamorfoses do gordo – História da obesidade), diretor de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, com experiência em coordenação do Centro Edgar Morin, define que o objeto de interesse, a virilidade, atravessa os tempos, as sociedades, as culturas, os cotidianos, as sociabilidades, as ações individuais e coletivas, a economia, o urbano, o rural, modulando relações de poder ligado ao corpo e a códigos sociais internalizados na conjunção do antropos (coletivo humano). O vir latino expõe a parte máxima ou mais perfeita do homem. Afirmação de homem, a virilidade articula a ascendência social e sexual, legitimando a dominação masculina, através das organizações humanas. O vir (viril) é mais do que homo (homem): representa o homem sem falhas, distante das contradições e falhas, associados à subordinação. Da exposição da força física à contenção dos hábitos, são múltiplas imagens e ações viris. Perscrutar a formação histórica da tradição da virilidade é inserir-se no terreno móvel dos agentes e das culturas humanas, e às temporalidades lançarem-se questionamentos sobre o entendimento próprio de suas experiências em sociedade.

Maurice Sartre, professor emérito de História Antiga na Universidade François-Rabelais em Tours, França, especialista em história do Oriente-médio helenizado, é autor da Parte I da obra, explanando acerca do aprendizado social da virilidade, pautada sobre a andreía. Interrogando os modelos educacionais espartano, ateniense e cretense, mecionando os lacedemônios, entre a história da antiguidade grega em perspectiva civilizacional, os adestramentos voltados à formação de militares guerreiros, contendo ritos de iniciação sexual entre os jovens e os velhos, ensina ao controle da Eros para o exercício da política, do governo de si, defesa do lugar, controle da casa, para a máxima afirmação da virilidade com o domínio sexual da esposa e geração de varões sucessores. Ao explorar representações documentais dos textos à cerâmica, analisa a disseminação da andreía em toda ética social, definindo identidades, e marca os ritos de passagem do nascimento à consolidação da criança (paîdes), à juventude (néoi), e à vida adulta (ándres), observando as expectativas e as desconexões práticas com as normativas culturais, apresentando-as como dotadas de historicidade.

Jean-Paul Thuillier, professor de latim na Escola Normal Superior em França, pesquisador da história do esporte antigo e da civilização etrusca, apresenta a Parte II “Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus”. A língua latina, que comporá a civilização romana, adapta e altera inúmeras conceituações, tal como são diferentes os costumes e práticas sociais. Influenciada pela civilização etrusca, a sociedade romana atribui maior importância à mulher, que os gregos. O domínio da Urbs é masculino, embora boa parte dos lideres políticos sejam contraditórios (molles) na regência romana, após a conquista da Grécia, criando o dissensso e dando contorno à virilidade, esta possui significação. De vir extrai-se virilitas, representando tanto idade quanto os órgãos masculinos, o que o diferencia do adempta, eunuco, e o impotente (iners). Na cultura latina, os órgãos sexuais, a barba, os pêlos, fazem parte do repertório corporal que articula e publiciza a virilidade. A depilação é feminina, e afeminado o homem que a pratica. É prezado, ainda que minimamente, o asseio do corpo, barba, cabelos, e limpeza de unhas e dentes. Ao vir, contrasta. A cor da pele bronzeada, o trabalho sobre o físico (homo umbraticus), a prática de esportes em centros propícios (campus), como corrida, equitação, luta, boxe, natação com ou sem bolas, qualificam a virilitas. No pólo oposto estão os “delicados” (malacus), os “encaracolados” (cincinnatus), e “os que passam a vida na sombra” (umbraticulus), sendo considerado afeminado aquele com pele muito branca. O romano deve conter-se na expressão de suas emoções (inverso da impotentia sui), dominar-se (virtus), diferenciando-se do caráter colérico (gens impotens irae) atribuído a Gauleses e bárbaros.

Bruno Dumézil, pesquisador da Alta Idade Média Ocidental, membro-júnior do Instituto Universitário da França, e mestre de conferências na Universidade de Paris X – Nanterre, redige a Parte III. A virilidade bárbara impõe-se centrada numa negação da pax, da luxuosidade, e da beleza estética romana. Por volta do século IV, se estrutura entre os avanços da cristianização da sociedade, promovida pela política imperialista romana, e os contrastes entre a romanidade e germanidade. A ausência de segurança e a rudeza do meio natural torna necessário empunhar armas e defender a família, sua casa e sua liberdade. Eleva-se na virilidade bárbara o valor guerreiro da lança, escudo, coragem e disciplina. A castidade é prezada como qualidade de controle e hombridade. O casamento tem razões mais políticas que sensuais. Ser casto, entre os Francos, e bom guerreiro, até o casamento, dignifica o indivíduo pelo seu Rei, autoridade masculina. Sua casa de madeira é simples, sua alimentação também. Se a ocupação com futilidades não é bem vista, em geral recluso, ao seu contato com a civilização adere aos seus vícios, como jogos, bebidas, e mulheres. Nem sempre violentas, as diversões bárbaras estão ligadas a um mínimo de solidariedade entre o grupo. Sua virtude é ligada ao seu ambiente. À análise dos ritos fúnebres, armamentos, pentes, tesouras, e anéis de homenagem régia, são elementos de distinção viril que recobrem o túmulo dos machos. Os cabelos e os pêlos raramente são cuidados, dotando os objetos de valor. Às tumbas de mulheres, recobrem os utensílios domésticos, tecidos, e utensílios manufaturados. Do século VI em diante, há vários registros textuais bárbaros atestando as leis bárbaras proibirem a homossexualidade, o que demonstra um distanciamento da cultura romana, é certo que mais a passiva que a ativa, configurando como pecado contra Deus, não contra a identidade masculina individual, no que os monges condenam mais preocupadamente práticas da zoofilia. Há, entre os bárbaros, distinção do ardor sexual e valor viril. A honra do indivíduo representa a familiar, e, portanto, o equilíbrio entre famílias rivais prescreve ser evitada a adulteração, e duramente reprimida, quando não evitada. A vingança, em defesa da honra, é tanto masculina quanto feminina. Os Merovíngios aristocráticos do século VII, a este exemplo, casam-se e separam-se com frequência, imitando a dinâmica sexual das famílias reais. As violações, estupros e demais abusos impõe uma virilidade que a mulher deve internalizar, para justa defesa, sendo virtuosa ao combater violentamente seu agressor. Entre os Lombardos (longas barbas), as mulheres combatentes traziam cabelos amarrados diante dos seus rostos. Entre os Francos, há longos debates sobre a tolerância da ação militar feminina, para defesa do coletivo. A mulher deve ser, em geral, protegida pelos homens (mundium) bárbaros. À proteção, somam-se o dote e presentes (morgengabe). A prática do rapto eventualmente tem fim de acelerar a confirmação dos casamentos, na ausência de consentimento familiar.

Na transição entre século VII e VIII, novo ideal de homem advém, e por volta do século IX e X, se exprimirá com maturidade na sociedade feudal. O enfraquecimento merovíngio, a expansão aristocrática, a concepção de Poder como algo de natureza feminina que demanda então o controle masculino, relativa ascensão carolíngia, o combate a pagãos e sarracenos, a elevação da fé católica, a consideração da família como um clã de configuração patrilinear, massificação da cavalaria, surgimento de novas elites, rearranjam a virilidade. Autoridade régia, nobreza, cavaleiros, e clérigos passam a compor a sociedade feudal, notadamente hierárquica, masculinizada, viril, que se impõe sobre os camponeses, pobres e escravos. O resultado das mestiçagens desemboca numa flexibilizada perca de pilosidade e acentua à virilidade teor cultural e moral, perdurando largueza e proeza como valores essenciais da atividade guerreira bárbara, afirmando a moral cavalheiresca, e delimitando mais ainda a dominação do homem sobre a mulher. Claude Thomasset, professor emérito de História da Língua Francesa na Universidade de Paris – Sorbonne (Paris IV), que anualmente publica pela editora desta instituição os autos de seus seminários sobre civilização e história das ciências medievais, redige a Parte IV, analisando na literatura de cavalaria, as ideias sobre a construção do reconhecimento de qualidades que socialmente difundiriam os valores viris. O urso estaria entre as imagens mais proliferadas em toda a literatura medieval, indicando a força dos guerreiros, fazendo parte do imaginário e cotidiano social na Alta Idade Média. Os contos, encenados nas tabernas, entre o consumo de vinho, impregnam-se de mitos e narrativas sobre grandes feitos, as feridas, a boa morte, de personagens camponeses, vilões, e altos cavaleiros, que ora impressionam, ora servem como exemplo moral. Na medicina medieva, os sistemas explicativos diferem o corpo masculino do feminino, justificando dominação e subordinação, centrada na reprodução, o que desemboca em inúmeros estudos sobre o corpo, do sêmen aos temperamentos, resgatando a literatura da antiguidade e mesclando-a à influência árabe, perscrutando e formando a virilidade masculina.

O viril não se ilude, no exercício de seu domínio, tal como não ignora a própria fragilidade, ao aplicar sua força. A Parte V entra assim, nos estudos sobre a formação da modernidade. Multiplicam-se as presenças. O professor de Literatura Comparada e de Pensamento Francês, no estadunidense Darmauth College, em Massachusetts, Lawrence D. Kritzman, diretor do Instituto de Estudos Culturais Franceses, pesquisador da história cultural e intelectual da França do século XX abordando teoria literária e psicanálise, e literatura francesa do século XVI, especialista em história cultural, religiosa e política da Renascença. A professora da Universidade Paris I-Panthéon-Sorbonne, Jean-Marie Le Gall. Rafael Mandressi, historiador do corpo e da medicina na época moderna, pesquisador no Centre Alexandre-Koyré, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS). Articulando história política e cultural, Stanis Perez, com pesquisa sobre as representações em torno dos reis franceses e espanhóis nos séculos XVI-XVIII, sobretudo Louis XIV, historiador do corpo e da saúde, professor na Universidade de Paris XIII – Villetaneuse. Hervé Drévillon, especialista em abordagem sociocultural, na relação entre sociedade e o Estado, diretor no Instituto de Estudo Estratégico da Escola Militar e professor de História Moderna na Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne. Nadeije Laneyrie-Dagen, pesquisadora do corpo, especialista de História da Arte Moderna entre os séculos XI e XVII, professora de História da Arte na Escola Normal Superior. Estes autores compõem a Parte V da obra.

Na modernidade, a virilidade desfruta mais de controle, simbolismo. O homem define-se viril na diferenciação diante de homens fracos ou desajeitados, e das mulheres. Os clérigos transitam entre os soldados do Senhor e os afeminados solicitantes dos confessionários, em busca da manutenção contínua de renovação da moralidade casta ou se vendo diante das transgressões individuais dentro da instituição eclesiástica em sua disseminação continental. As tropas militares, os jovens, as moças, e mulheres, continuamente sob vigília. A virilidade como virtude conjuga a destreza, habilidade gerencial, ponderação, vigorosidade, contenção, coragem, comedimento, fertilidade, força física, segurança, maturidade, autocontrole, excelência, e virtuosidade.

O deslize e a insuficiência separa os fracassados dos bem sucedidos. Conforme há a variabilidade dos parâmetros de virilidade, entre sociedades guerreiras e sociedades civilizadas, os deslocamentos garantem ainda a permanência do ideal de virilidade como legitimadora do poder do homem sobre a mulher, não obstante a subjetividade feminina também é classificada dentro de critérios de virilidade prescritas pela ascendência masculina, ou paralela a tal estruturação. Homossocialidade, bestialidade, animalidade: os desvios do parâmetro civilizacional pautado no homem viril passam a limitar a virilidade ela própria. A leitura que os países formados em torno de reinos e cortes fazem de si e dos costumes dos estrangeiros, da “Índia” e da “América”, tende a diferenciar-se do Velho Mundo seu caráter rudimentar da gestação bárbara das mesmas nacionalidades que destituíram o império romano. Devida à vastidão de documentação utilizada e de referenciais, os estudos sobre modernidade poderiam ser mesmo publicados em unidade própria, posto que por ser polifônica, constrói uma obra dentro do volume.

A pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (CNRS – Ehess), historiadora dos arquivos judiciários, comportamentos populares, e das mulheres (séculos XVI-XVIII), Arlette Farge; Michel Delon, professor de Literatura Francesa na Universidade de Paris-Sorbonne, com extensa pesquisa na literatura setecentista e cultura das Luzes; e a coordenadora de grupo de estudos na Casa das Ciências do Homem, pela Universidade Paris-Nord, sobre saúde e saberes médicos difundidos socialmente na França (Século XVI-XVIII), Elisabeth Belmas, professora de História Moderna na Universidade de Paris XIII, encerram o tomo de História da virilidade, redigindo a Parte VI.

Se a construção dos bons modos se torna normativa viril, os populares, entre conflitos de ricos e pobres, destoam do modelo requisitado. Falar alto, beber desregradamente, não assumir os parâmetros de higiene, ausência de exposições do saber livresco, como todo tipo de descumprimento da moral política e religiosa passam a denotar uma “natureza” dos populares. Honra familiar, potência sexual, casamentos arranjados, prescrição de decência da mulher, e estímulo da exibição do macho nas atividades esportivas e sociabilidades ligadas à força e ao trabalho. Os teatros, a leitura de romances, a moral difundida pela pedagogia educacional. O ideal de ascensão intelectual pela Iluminação. As reformulações da ligação com a natureza. Expressões sentimentais encenadas ou manipuladas. Uma gama de relações entre os poderes que tensionam a realidade social pela cultura são apresentados pelos autores, situando a progressão e consolidação dos ritos modernos, quanto a criação de um refinamento, em meio ao remodelamento civilizacional diante da cultura do Antigo Regime, expressivamente tratado no século XVIII.

Percorrendo desde o século V a.C a meados do século XIX, a obra salienta seu caráter de referência e síntese de estudos clássicos e recentes, de muito fôlego na historiografia, lidando com fontes documentais as mais variadas, desde papiros, cerâmicas, inscrições de urnas funerárias, enciclopédias, manuscritos, correspondências, livros de diversos formatos, representações pictóricas, canções, poemas, além de inúmeros tratados médicos, religiosos, filosóficos, políticos, percorrendo formações imperiais da civilização grega, à romana, bizantina, aos bárbaros e consequentemente a formação continental e expansão ultramarina da Europa, analisando a vida pública e privada, do cotidiano aos sentimentos, procurando pelos espaços, tempos, e atitudes da vida humana, aonde a virilidade manifesta-se simbólica ou praticamente como conduta e código sociocultural antropológico. Recorte pretensioso, e por isto mesmo de leitura interessante, pelas possibilidades disseminadas para o público brasileiro e lusófono de se estudar a virilidade e a masculinidade como algo dotado de historicidade, longe de estar confortável em terreno de imobilidade.

Resenhista

Eduardo de Andrade Machado – Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: eduardo.deandrade@hotmail.com

Referências desta Resenha

CORBIN, Alain; COURDINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs). História da virilidade. A invenção da virilidade, da antiguidade às Luzes v.1. Petrópolis: Editora Vozes, 2013. Resenha de: MACHADO, Eduardo de Andrade. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.8, n.1, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]

BRAGA Douglas de Araújo Ramos (Aut), Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação/ poder e exclusão no Segundo Reinado (T), CRV (E), QUEIROZ Vanessa de Jesus (Res), História – UEG (Hsr), Instituto de Menores Artesãos, Séc. 19, Exclusão, América – Brasil

Resultado de uma pesquisa de iniciação científica que se tornou tema de trabalho de conclusão de graduação, o livro é fruto da monografia de Douglas de Araújo Ramos Braga- graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (COC-FIOCRUZ) e atualmente doutorando em História pela Universidade de Brasília (UNB) 1.

Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado concede centralidade às noções de “criança”, “infância” e “menor”, numa análise que busca entender a experiência institucional do instituto de vida efêmera que exerceu profundo impacto sobre os indivíduos que para ela foram enviados-retirados das ruas ou mandados por familiares que não tinham condições de criá-los. O que eram crianças? O que eram menores? Como e porque eram inseridos junto a outras figuras – homens, mulheres, livres, escravos, imigrantes, africanos livres de diversas idades – nas chamadas “classes perigosas”? O que era ser criança, o que era infância? São algumas das perguntas que norteiam as reflexões do autor, que insere sua problemática no debate maior acerca das políticas públicas de controle e esquadrinhamento social pelo Estado Imperial.

Em torno do argumento de que houve a ultrapassagem arbitrária por parte do Estado Imperial, na condição de poder máximo que autorizava e regia o funcionamento da instituição, do objetivo de educar indivíduos sob a égide da valorização do trabalho para um futuro que ia além dos muros daquele instituto correcional, Douglas Braga divide sua obra em cinco capítulos, acrescidos de um interessante anexo contendo breve cronologia de políticas e instituições voltadas à infância no Brasil.

No primeiro capítulo, intitulado Introdução, Douglas Braga contextualiza a pesquisa que resultou no livro em questão, bem como explicita sua metodologia de trabalho e apresenta categorias fundamentais as suas reflexões, ressaltando autores com os quais dialoga. O autor explica que as categorias de “criança” e “infância” têm de ser consideradas como partes de um contexto maior, onde junto aos ideais de progresso, civilização e modernização, também ganham destaque as classes pobres, que eram tidas como problema social do Estado, principalmente na segunda metade do século XIX – momento em que a urbanização e o crescimento demográfico seguiam linha crescente e rápida. Autores como Phillippe Ariès (1981) e Peter Stearns (2006) são mencionados para a discussão referente ao oitocentos brasileiro como momento de consolidação de novas ideias acerca das categorias referidas. Douglas Braga enfatiza sua concordância com o pensamento que as considera como construções históricas e sociais, não conceitos dados per se.

Em consonância com autores como Adriana de Resende B. Vianna (1999), o conceito de “menor”, para o século XIX, é apresentado como nova categoria jurídica e social e alvo das ações do Estado. Assim sendo, foi questão central para formulação de políticas públicas de intervenção e controle social do período. Nesta parte do livro, aparecem debates acerca da importância de trabalhar o conceito de “informação” sob uma perspectiva histórica, afinal “a informação já tinha uma importância estratégica para a realização de políticas institucionais do Estado em uma cidade escravista, que se queria moderna” (BRAGA, 2019, p. 16).

Evocando Peter Burke (1995), Douglas Braga afirma o valor para o trabalho histórico da consideração do escopo informacional produzido em âmbito institucional. Dos modos de produção aos modos de silenciamento e divulgação de informações, o historiador encontra rico campo para estudar fenômenos sociais dos mais diversos. As informações produzidas no âmbito do Instituto de Menores Artesãos (nos livros de matrícula, por exemplo) permitem perceber facetas do objetivo maior – que envolvia diversos saberes e poderes, como a medicina e a polícia –, de esquadrinhamento populacional pelo Estado Imperial.

No segundo capítulo, A criança e a ideia de infância – história e historiografia, é feito um breve panorama historiográfico acerca das ideias de “criança” e “infância”. O autor apresenta obras nacionais e estrangeiras que abordam as questões centrais já referidas. Alguns pontos tratados nesta parte são: diferenciação de aspectos naturais e históricos das categorias “criança” e “infância”; importância e transformações das noções e relações de “família”, “escola”, “adulto”; a separação das crianças por idades e classes; taxas de natalidade e mortalidade relacionadas a transformações nas concepções de ligações emocionais, dentre outros pontos que demonstram diferentes representações da infância, da criança e da juventude ao longo dos séculos (ao menos desde o medievo). Douglas Braga explica que considera como diferentes os conceitos de “criança” e “menor” e fornece algumas breves palavras, ainda que tal tema não seja objeto focal do livro, sobre as crianças escravas no Brasil do XIX e alguns anos antes.

Em Informação e controle social no Rio de Janeiro oitocentista, terceiro capítulo do livro, o historiador analisa relações entre transformações urbanas ocorridas no Rio de Janeiro do século XIX e o surgimento das ditas “classes perigosas”. O papel da informação como instrumento imprescindível para as medidas de controle social implementadas pelo Estado Imperial ganha, também, centralidade nesta parte do livro. A partir de uma extensa bibliografia – Michel Foucault (sobretudo com o conceito de “sociedade disciplinar”), Michele Perrot, Irene Rizinni, Luiza Ribamar de Carvalho, Alessandra F. Martinez de Schueler, Peter Stearns, Adriana de Resende Vianna, Icléia Thiesen, dentre outros –, Douglas Braga percorre um caminho que compara processos de industrialização e modernização ocorridos na Europa e no Brasil do século XIX, bem observando como categorias a exemplo de “menor”, “indivíduo” e “crime” estavam também em movimento.

No Brasil do século XIX, o “menor”, junto aos vadios, bêbados e loucos, é inserido pelas elites nas chamadas “classes perigosas”, que punham em risco a visão do Estado Imperial Brasileiro, que almejava consolidar a nação brasileira daquele momento como moderna e civilizada. Transformações tecnológicas eram acompanhadas por transformações econômicas, socioculturais e políticas. A concepção de “menor” e seus estatutos acompanhavam as mudanças na dinâmica social, enquanto a educação disciplinar primária comandada pelo Estado era uma das políticas centrais de governança.

Compactuavam com o intuito do Estado Imperial outras elites profissionais, a exemplo de médicos e juristas. Polícia, escola, prisão e outras instituições são pensadas como instrumentos de manutenção da ordem social, a partir do controle e exclusão – da sociedade, da família e de outros espaços –, das classes perigosas. Além da punição e recuperação dos membros pertencentes a tais grupos, as mencionadas instituições e profissionais, a serviço do Estado e também de seus próprios anseios por lugar exclusivo e autorizado de atuação, preconizavam a prevenção contra a degeneração moral.

Em parte, substancial do capítulo aparecem importantes discussões sobre papel e essencialidade de um “sistema de informações”, conceito que Braga toma de empréstimo de Icléia Thiesen (2006), para manutenção da ordem desejada por elites imperiais, sobretudo o Estado. Produzir informação sobre um indivíduo era forma para melhor conhecê-lo e dominá-lo. Trata-se de uma relação direta entre saber e poder. A centralidade dos discursos médicos higienistas, a relação entre progresso, modernização, doença e desordem, informações sobre a Casa de Correção da Corte, o Asilo de Meninos Desvalidos e outras instituições que tinham o trabalho como princípio fundamental do controle e da ordem, também são tópicos abordados no longo capítulo, que bem demonstra que a ideologia do trabalho era, além de estratégia de controle dos menores e demais integrantes das classes perigosas, forma de afirmação da autoridade do Estado acima da própria família, bem como maneira de disciplinarização das classes populares a partir da educação de suas crianças.

O capítulo 4, O Instituto de Menores Artesãos (1861-1865) e a constituição de um sistema de informações, é o mais específico e relacionado diretamente à temática central – a existência do Instituto de Menores Artesão como instituição a serviço do Estado. Douglas Braga refere-se a tal ambiente correcional como a primeira instituição não-militar fundada na Corte com objetivo de recepção de menores e sua futura reinserção na sociedade como força de trabalho. Partindo da concepção de que nenhuma instituição surge do nada, o autor aponta a criação do Instituto como resposta à demanda, premente no século XIX, de criação de novos locais para recebimento de menores vistos como ameaças sociais em potencial. O grande propósito era corrigi-los e torna-los hábeis ao trabalho, logo úteis à sociedade. O objetivo relacionava-se, dentre outras motivações, à abolição do tráfico em 1850 e consequente urgência por mão-de-obra qualificada.

Ao longo do capítulo, o historiador nos conta sobre a estrutura e o funcionamento do Instituto, conceitualmente abordado como “instituição total”. Quanto à sua estrutura física, Douglas Braga nos conta que é possível observar alguns princípios do panóptico de Bentham: vigilância constante, internalização a valorização do trabalho, disciplina, religião, correção pelo trabalho, limpeza e manutenção da saúde faziam parte dos objetivos firmados para a instituição. O autor nos fala, ainda, sobre o regime de funcionamento que, em teoria, contava com separação de menores por sexo, idade, classes comportamentais e outros tipos de classificação. Explica, também, sobre a alimentação regrada, finalidade e vagas disponíveis, a disposição e hierarquia de internos e funcionários, além de outros aspectos regulatórios, a exemplo da proibição de castigos físicos, das idades e formas de admissão definidas pelo Decreto n. 2745 de 13 de fevereiro de 1861. O capítulo nos informa, ainda, que existia a possibilidade de que menores fossem devolvidos aos pais e tutores ou encaminhados como força de trabalho às forças militares e outras instituições imperiais ou a particulares.

Ainda no quarto capítulo são preconizadas as dificuldades de administração do Instituto. Segundo Douglas Braga, uma consistente evidência do problema eram os livros de matrícula preenchidos de maneira incompleta, o que demonstrava, além das referidas dificuldades, que a informação sobre os internos era fundamental para o controle dos menores, inclusive para casos de fuga e recaptura. Utilizando-se sobretudo de relatórios produzidos pelo diretor da instituição, o autor discute o funcionamento da mesma relacionando-o à produção sistemática de informações sobre os menores ali matriculados. Além disso, pondera sobre a circulação destes informes produzidos entre diversas instituições imperiais, a exemplo do Ministério da Marinha, do Ministério da Justiça e da Polícia. Os percalços da instituição também apareciam na grande imprensa. Problemas internos da instituição – que iam desde fugas e rebeldias até assassinatos – figuravam nas notícias diárias da Corte. Ponto central defendido por Douglas Braga é que os relatórios, que não raras vezes ressaltavam a necessidade de separação entre menores corrigíveis e incorrigíveis, produziam uma identidade social específica ao menor, um tipo de estigma (e aqui o autor se baliza nas perspectivas de Goffman – 1987 e Maria Julia Goldwasser – 1985) que ultrapassava o âmbito do Instituto de Menores Artesãos, perpassando pelas diversas administrações imperiais.

O autor apresenta documentação que evidencia que a despeito das diversas intempéries enfrentadas pelo Instituto, em seus primeiros anos de vida este recebia constantes pedidos de admissão por parte de pais esperançosos de que os filhos aprendessem a trabalhar e pudessem tirar a família da miséria em que se encontravam. Tal panorama foi substancialmente alterado com a chegada da Guerra do Paraguai, onde as dificuldades de contingente fizeram emergir a política de recrutamento forçado e esses menores, que não só em épocas de guerra poderiam ser encaminhados à Marinha e outras instituições, foram vistos como braços de auxílio da nação em sítio, muitos deles de fato enviados ao Cone Sul. Além da Guerra, os problemas administrativos habituais e a disparidade entre altas despesas e resultados efetivos resultaram na extinção do órgão em 1865.

Como colaborações principais do capítulo e do livro, notam-se dois apontamentos. O primeiro é o de que, diferente do que sugere parte da historiografia tradicional, foi o Instituto de Menores Artesãos (1861) e não o Asilo dos Meninos Desvalidos (1875), a primeira instituição não militar diretamente ligada ao Estado a receber menores tidos como ameaça em potencial. O segundo evidencia discrepâncias entre o objetivo do Instituto no papel e na prática. Muitos dos menores eram vistos como incorrigíveis, muitos não foram devolvidos ao seio de suas famílias e grande parte, antes de ser educada pelo viés do trabalho, foi enviada aos campos da Guerra, despreparada e sujeita aos perigos do campo de batalha.

Como partes derradeiras do livro, encontramos uma brevíssima conclusão – onde o autor reafirma seus principais argumentos e reflete sobre possibilidade e necessidade da continuidade de pesquisa sobre o tema trabalhado, e um anexo que resume de forma sucinta a cronologia de políticas e instituições voltadas à infância no Brasil (1734-1990). O livro de Douglas Braga carrega, dentre outros, o mérito de ser um trabalho inicial que além de destacar interessante temática de pesquisa, aponta questões e caminhos para prossegui-la. O autor bem demonstra que o Instituto de Menores Artesãos, a despeito de sua existência relativamente efêmera, produziu um sistema de informações que nos permite inseri-lo no arsenal das ações postas em prática pelo Estado Imperial com objetivo de controle social, a partir do esquadrinhamento da sociedade. Nas análises do historiador, a categoria de “menor” foi alvo específico do olhar definidor das políticas estatais.

Os argumentos do autor chamam atenção para a necessidade de cuidado no tratamento de categorias como “infância”, “menor” e, em última instância, “Estado” e “classes perigosas”. Tais conceitos devem ser vistos como categorias diretamente ligadas às dinâmicas sociais, culturais, políticas e econômicas dos contextos nos quais eram construídas, e também ajudavam a construir. A questão da infância no século XIX brasileiro, como tratada por Douglas Braga, é interessante para a constatação de que as definições legais, morais e culturais sobre o assunto “infância” não apenas definiam seus alvos mais imediatos – crianças, menores –, mas definiam também ações estatais que evidenciavam uma sociedade hierarquizada para além das categorias de adulto e criança. A riqueza e a pobreza eram também atributos fundamentais para as definições de perigo e lugar social. Além do Estado, médicos, juristas, professores, jornalistas, famílias e outras figuras apareciam nos amplos debates que envolviam infância, informação, controle social e outras facetas do problema.

As questões levantadas na obra de Douglas Braga retomam, sob um outro olhar – semelhante, porém não igual –, interessantes reflexões já propostas por obras clássicas, a exemplo de Roberto Machado et al no livro Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil (1978)2, em que os autores bem discutem a medicina social como parte resultante e atuante na rede de poderes e saberes que buscavam disciplinar a sociedade brasileira do século XIX a partir da hierarquização e normatização de indivíduos e espaços (a exemplo da escola, da prisão e do próprio hospital). A bibliografia utilizada se movimenta entre livros mais antigos e mais recentes, o que colabora para a realização de uma das contribuições mais importantes do trabalho historiográfico que é a retomada, revisão e incremento de posicionamentos consolidados ou não, que circulam sobre as temáticas propostas.

Por fim, merece destaque a forma pela qual o autor considera a informação como conceito histórico que necessita de ser contextualizado por significar várias coisas diferentes. “Sistema de informações” nos dias de hoje e no século XIX indicam coisas diversas. Toda informação é produzida por pessoas com intuitos específicos, bem como circula e costuma ser recebida de maneiras variadas. Analisar esses processos é rico caminho para compreender lógicas de funcionamento social. Contudo, existem limites, sobretudo quando pensamos que as principais fontes utilizadas pelo autor eram documentos escritos. Com alguma concisão, exemplos de tais limites são ressaltados por Douglas Braga ao longo do livro, a exemplo da explicação (p. 19) de que as informações sobre as crianças eram produzidas por olhares adultos.

Mais do que uma boa descrição da primeira instituição imperial não militar a receber crianças com objetivo correcional pelas vias do trabalho, Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado é uma leitura que fornece importantes apontamentos iniciais de uma questão cuja trajetória histórica é ainda importante e não resolvida nos dias atuais. Trata-se de pensar como o Estado formula e administra as ações voltadas ao tratamento de crianças pobres e abandonadas. Além disso, como e porque essas figuras recebem determinado lugar social.

Notas

1 O autor é ainda: especialista em Aplicações Complementares às Ciências Militares pela Escola de Formação Complementar do Exército e professor do Colégio Militar de Brasília.

2 MACHADO, R., et al. Danação da Norma: medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1978.

Resenhista

Vanessa de Jesus Queiroz – Doutoranda em História pela Universidade de Brasília (UnB); bolsista de Doutorado do CNPq. E-mail: vanessa_djq@hotmail.com

Referências desta Resenha

BRAGA, Douglas de Araújo Ramos. Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado. Curitiba: CRV, 2019. Resenha de: QUEIROZ, Vanessa de Jesus. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.8, n.2, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

GREEN James Naylor (Org), QUINALHA Renan (Org), CAETANO Marcio (Org), FERNANDES Marisa (Org), História do Movimento LGBT no Brasil (T), Alameda (E), PINTO Rhanielly Pereira do Nascimento (Res), História – UEG (Hsr), História do Movimento LGBT, América – Brasil, Séc. 20-21

No ano de 1978 nascia o movimento homossexual brasileiro (MHB). Iniciado no contexto dos anos de chumbo1, o movimento emergia da renovação cultural e problematização do pensamento da esquerda brasileira. Aliando-se aos movimentos de mulheres e feministas, ao movimento negro, à pauta ecológica e a alguns setores da chamada “nova esquerda”, o movimento surgia num processo de contestação proveniente ao movimento de liberação homossexual iniciado na Argentina em 1967 e nos Estados Unidos em 1969 2.

A coletânea de artigos organizada por Marisa Fernandes3, James Green4, Renan Quinalha5 e Marcio Caetano se esforça em preencher uma lacuna historiográfica que tem se desanuviado nos últimos anos. Em forma de 30 capítulos partindo da perspectiva de que o movimento homossexual no Brasil surgia através da emergência do Lampião da Esquina (1978-1981) e do grupo Somos paulista, os ensaios debatem as contradições dos discursos de memória sobre o período e reacende pontos até então esparsos em obras como Além do Carnaval (2000) e Devassos no Paraíso (2018).

Contendo 30 artigos a coletânea coloca em evidência relatos de ativistas-pesquisadores do movimento que hoje denominamos como LGBTI+6. Desse conjunto de textos, 10 discutem especificamente a arena política e cultural da primeira década do movimento. As narrativas sobre o período e as perspectivas políticas do grupo Somos são discutidas nos textos de João Silvério Trevisan, James Naylor Green, Edward MacRae, Rita de Cassia Colaço Rodrigues e Ronaldo Trindade estabelecendo as características do início do movimento sob o prisma de um rizoma identitário que aos poucos começava a estabelecer uma crítica ao padrão bofe/bicha (MACRAE,1990).

Estes textos efetuam uma discussão complexa dos aspectos liberacionistas do movimento, isto é, de sua cooptação ou não por alguns setores da esquerda do período. Além disso, Trindade em sua contribuição A invenção do ativismo LGBT no Brasil: intercâmbios e ressignificações, contesta a ausência do diálogo entre as influências dos movimentos latino-americanos na trajetória brasileira e a maciça discussão sobre a influência do Gay Power norte-americano, sem de fato minimizar a sua presença.

Sua crítica surge como um ponto fundamental entre historiadoras e historiadores que nos últimos anos vem ampliando a lupa interpretativa sobre aqueles primeiros anos. É neste sentido que os textos de Renan Quinalha, Rafael Freitas Ocanha, Michele Pires Lima, Patrícia Melo Sampaio, Helena Vieira e Yuri Fraccaroli amplificam a dimensão interpretativa sobre a relação entre as violências sofridas e as resistências protagonizadas por estes sujeitos historicamente subalternizados. Estes últimos trabalhos evidenciam, sobretudo, a continuidade da agência do aparato repressivo do Estado, seja em sua ação direta ou através de sua ausência seletiva, no período consideravelmente mais “calmo” da ditadura.

Desse modo, novas narrativas começam a ser incorporadas ainda sobre esse período, mesmo que ainda muito pequenas frente aos inúmeros textos que discutem amplamente a homossexualidade masculina como tema central do debate. Marisa Fernandes, ao discutir o protagonismo das mulheres lésbicas neste mesmo período histórico, deixa evidente a urgência de ampliação sobre os estudos dos ativismos lésbicos e feministas-lésbicos no Brasil trazendo sobretudo o aspecto da dupla militância em evidência.

É a partir dessa ideia de múltiplas militâncias que o texto de Benito Bisso Schmidt emerge. Intitulado de “João ama Pedro! Porque não?”: a trajetória de um militante socialista em tempos de redemocratização, o historiador dá visibilidade à experiência vivida por Zezinho, homossexual e socialista, deixando evidente as dificuldades da abordagem e da experimentação da convergência entre o debate sobre sexualidades e a esquerda política no período de redemocratização no Partido dos Trabalhadores (PT) de Porto Alegre. Em certa medida, seu trabalho nos lembra também a excepcional trajetória de Herbert Daniel7 publicada no mesmo ano dessa obra.

Herbert e Zezinho podem nunca ter se encontrado, mas partilhavam os reflexos e as ambiguidades da velha e da pretendida nova esquerda no Brasil. Através destas dinâmicas de continuidades e descontinuidades que Cristina Câmara, Luiz Mott e Rodrigo Cruz avançam temporalmente o debate. Câmara coloca a agenda política do grupo Triângulo Rosa em destaque enquanto Mott traça sua própria trajetória paralelamente ao surgimento do Grupo Gay da Bahia. As contribuições destes dois grupos se conectam e interseccionam à medida em que mergulham na política institucional brasileira que é habilmente descrita por Rodrigo Cruz ao evidenciar as eleições de 1982.

Presente também nesses autores está a discussão focalizada no trabalho de Marcio Caetano, Claudio Nascimento e Alexsandro Rodrigues. Os autores, ao discutirem o papel da epidemia de AIDS e seus efeitos nos movimentos, se conectam à trajetória do decano do movimento LGBTI+, o Grupo Gay da Bahia e de seu interlocutor mais próximo, o já mencionado Triângulo Rosa. A discussão sobre os efeitos do surgimento do vírus HIV e da epidemia de AIDS na segunda metade da década de 1980 parece ser fundamental para trabalhos que pensem a trajetória do movimento LGBTI+ no Brasil.

Estes autores deixam evidente a necessidade de ampliarmos as linhas de interpretação sobre os significados e as experiências históricas de sujeitos que atravessaram os anos do trauma ainda não superados pela comunidade LGBTI+ brasileira e também pela ausência e contínua estigmatização dos sentidos sociais que o vírus ganha no debate público até o presente. Ao mesmo tempo os regimes de visibilidade sobre as questões da comunidade parecem nos últimos anos ter se alterado através da inclusão de narrativas não hegemônicas dentro do próprio movimento e também fora dele.

Deste modo, Ana Cristina Conceição coloca em evidência as especificidades das mulheres negras e lésbicas dentro do movimento. Em seu texto estas dinâmicas intragrupo saltam à história. Nessa mesma tendência, Elias Ferreira Veras traz à tona o regime de visibilidade das travestis através do debate do tempo farmacopornográfico. Seguindo sua narrativa historiográfica de acomodação desses sujeitos históricos em um espaço e tempo específicos, as narrativas de Jaqueline Gomes de Jesus, João W. Nery, Alexandre Peixe e Fabio Morelli viabilizam a discussão das trajetórias políticas de travestis e pessoas trans na história do movimento LGBTI+ brasileiro, incorporando uma temática espinhosa dentro da própria comunidade e do movimento.

Agrupadas as especificidades históricas de parte da sopa de letrinhas, o debate de Moacir Lopes de Camargos marca o processo de transição entre a primeira geração e o reacender do movimento LGBTI+ utilizando e repensando as paradas como um elemento fundamental para tal virada. O texto de Camargos se articula diretamente com as propostas de aproximação com o presente através das discussões propostas nos últimos anos.

Tais discussões se alargaram através da agenda política atual do movimento, isto é, da luta em companhia ao Estado para uma construção de uma lei pela criminalização da homofobia e transfobia. Este debate é transcrito no ensaio de Paulo Roberto Iotti Vecchiatii e alargado nas discussões de Lucas Bulgarelli, Luma Nogueira de Andrade e Bruna Andrade Irineu. Ambos os autores trabalham a partir de um estabelecimento da agenda atual de luta do movimento.

Irineu traz consigo as últimas disputas e tensões dentro do movimento com um recorte temporal que tem como pano de fundo o início da crise política da qual ainda estamos inseridos. Bulgarelli e Andrade se organizam discutindo este mesmo panorama, seja através do espectro da conjuntura nacional, seja pela atuação da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura.

De forma geral, os efeitos deste livro se articulam e apresentam outras agendas possíveis, apontando os últimos trânsitos entre a academia e a política ao estabelecer a discussão sobre o crescente questionamento colocado dentro dos estudos queer e suas possíveis pontes dentro de um movimento LGBTI+. Essa articulação ainda parece ser tímida, como apresenta Leandro Colling, mas pode garantir algumas leituras de maior efetividade do quadro necropolítico ao qual os(as) LGBTI+ estão inseridos(as).

Dessa forma, a obra História do Movimento LGBT no Brasil é uma obra que se pretendeu ambiciosa e que se articula no lugar da intersecção entre o passado e os desafios do presente. A coletânea de artigos sugere que o debate sobre sexualidades e gênero precisa ainda se complexificar nos próximos anos caso queira de fato falar através da sigla LGBTI+. Compreender as violências simbólicas referentes à bissexualidade dentro da dinâmica intragrupo ou ainda evidenciar a dura batalha médico-judicial na qual historicamente a trajetória de intersexos deve adensar e diversificar o debate.

Notas

1Aqui estamos delimitando como os “anos de chumbo” a ditadura militar que se iniciou em 1964 no Brasil. Ver: FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.47, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882004000100003&script=sci_arttext. Acesso em 2 ago. 2019.

2 Aqui, nos referimos ao processo iniciado em 1967 com a formação do grupo Nuestro Mundo e posteriormente em 1969 com a formação da Frente de Liberação Homossexual na Argentina. Já no contexto norte-americano estamos nos referindo à revolta de Stonewall e a formação do Gay Front Liberation.

3 Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, a pesquisadora e ativista tem efetuado contribuições aos estudos lésbicos e participou ativamente do Grupo Somos, o primeiro grupo de liberação homossexual no Brasil.

4 Professor na Universidade de Brown nos Estados Unidos, o brasilianista tem inúmeros trabalhos sobre História da Homossexualidade no Brasil.

5 Professor do Departamento de Direito da Universidade do Federal de São Paulo tendo como sua pesquisa de doutoramento as dinâmicas da censura e violência a população LGBT no período ditatorial.

6 Diferente dos autores do livro utilizamos a nomenclatura para abarcar o grupo de dissidentes das normas de gênero e sexualidade impostas em nossa sociedade. São eles: lésbicas, bissexuais, gays, transexuais, travestis, intersexuais, queers. Para um aprofundamento sobre a sigla ver: REIS, Toni. (Org.). Manual de Comunicação LGBTI+. Curitiba: Aliança Nacional LGBTI/GayLatino, 2018.

7 Ver: GREEN, James Naylor. Revolucionário e gay: a extraordinária vida de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão. 1ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

Referências

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.47, 2004. Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882004000100003&script=sci_arttext >. Acesso em 2 ago. 2019.

GREEN, James Naylor. Além do Carnaval: a homossexualidade do século XX. 1ed. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

____________________. Revolucionário e gay: a extraordinária vida de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão. 1ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

MACRAE, Edward. A construção da igualdade: igualdade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

REIS, Toni. (Org.). Manual de Comunicação LGBTI+. Curitiba: Aliança Nacional LGBTI/GayLatino, 2018.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil da colônia à atualidade. 4.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

Resenhista

Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto – mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: rhaniellypereira@hotmail.com

Referências desta Resenha

GREEN, James Naylor; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa (Orgs.). História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018. Resenha de: PINTO, Rhanielly Pereira do Nascimento. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.9, n.1, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

SOUZA Vanderlei Sebastião de (Aut), Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência/raça e nação no período entreguerras (T), Unicentro (E), GERMINATTI Fernando Tadeu (Res), História – UEG (Hsr), Renato Kehl, Eugenia, América – Brasil, Ciência, Raça, Nação, Séc. 20

O autor da obra é o historiador Vanderlei Sebastião de Souza, professor adjunto do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), do Programa de Pós-Graduação em História pela mesma instituição e do Programa de Pós-Graduação em História Pública da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). É graduado em História (2002), com mestrado (2006), e doutorado (2011) em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz.

Assim, o livro denominado Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras (2019), é dividido em quatro capítulos, sendo o prefácio da obra assinado pelo sociólogo Robert Wegner, professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ). Fazendo uma análise do processo metodológico instrumentalizado pelo autor, Robert Wegner afirma que “além de ser um livro bem escrito e embora denso, de agradável leitura, atinge uma técnica exemplo na articulação entre o desenvolvimento do argumento e a utilização das fontes” (p. 24-25).

No primeiro capítulo intitulado A eugenia no Brasil e a questão social no início do século XX, Vanderlei de Souza começa trazendo em ótica a construção da ciência eugênica no estado brasileiro e sua aplicabilidade enquanto medida de restauração da ordem social-nacional. Assim, debruça-se acerca da discussão da implantação das ideias e práticas eugênicas no Brasil, compreendendo especificadamente o período entre guerras, ou seja, o período que abraça o espaço temporal entre duas Guerras Mundiais (1919-1939), momento chave para a expansão do pensamento eugênico, o qual recebera amplo apoio da intelectualidade e atenção dos órgãos de imprensa. O recorte temporal aqui é essencial ao estudo e análise das propostas de ideais eugênicos postos em prática no Brasil, bem como analisar também o esforço intelectual em incorporar pela cientificidade o “sentido nacional”.

Ao longo do capítulo, fica explícita a emergência de uma nova configuração de sociedade e forma de pensar que estava em voga, cabendo aos intelectuais a tarefa de colocar no papel as novas características da nação que seria projetada racionalmente, mediante legitimação biológica dos preceitos médicos e apreço às teorias da saúde pública. Percorrendo a conjuntura histórica existente no contexto brasileiro no que tange ao pensar o Brasil enquanto país, buscava-se construir sua identidade nacional lidando ainda com problemas históricos mal resolvidos, dentre os quais encontrava-se a mestiçagem, a péssima higiene dos brasileiros, déficit de habitação, o analfabetismo etc.

A propósito, Vanderlei de Souza enquadra a questão social como um dos principais traumas que suscitavam o debate por parte dos intelectuais e que incentivou grande número deles em adotar ideais eugênicos. Nesse momento do texto, as apuradas reflexões do autor são calcadas na discussão acerca do incômodo da intelectualidade com a indefinição do Brasil enquanto nação. Isso posto, sincronizado com o olhar do autor, está a condução do entendimento por Renato Kehl (1889- 1974) a respeito dos problemas sociais brasileiros, uma vez que o Brasil do início do século XX, estando habitado por uma população negra, miscigenada, indígena e sertaneja, era colocado em dúvida o sucesso dessa nação.

Nesse livro, encontram-se ancoradas questão pendentes ao pensar a eugenia no Brasil e no mundo, envolvendo intelectuais, médicos sanitaristas, jornalistas, políticos e profissionais liberais que depositavam no movimento eugênico a esperança de melhoria da raça brasileira. O Brasil era, assim, um país multirracial à espera de sua libertação, que viria pela melhora da raça e pela instauração de uma verdadeira identidade nacional. A questão central voltava-se pela raça e era pelo pensamento do problema racial que o país entraria nos trilhos da modernização e civilidade. Não obstante, consoante observado, era na raça, para ela e por ela, que se encontrava o caos, e concomitantemente, a salvação para a nação.

Não deixa de ser notável que o autor logrou êxito em contextualizar o momento histórico que seria influenciador da ótica analítica formada por Kehl, posto que a singularidade teórica desse médico-intelectual favorecera a aplicação de política eugênica nas instâncias de vida dos brasileiros. Evidencia-se que o panorama analisado se volta ao “poder” de influência da intelectualidade na construção da nação, de modo que não menos verossímil é que, em sintonia com esse quadro é que se dá o avanço das pesquisas epidêmicas, bacteriológicas e sanitaristas. “Se até então, a mestiçagem e o clima eram vistos como as principais causas da degeneração racial, a ciência demonstrava, agora, que o atraso do país estaria relacionado às doenças e à falta de saneamento” (p. 56-57).

O autor destaca e apresenta também que exemplo mais latente dessa nova percepção é o escritor Monteiro Lobato que sintetiza bem a questão do “Brasil doente” ao escrever o conto Urupês1, publicada originalmente em 1918, no qual expõe o sertanejo Jeca Tatu como um ser fraco, ignorante e impossível de evoluir. Contudo, como sugere Vanderlei de Souza, Lobato altera sua visão ao entender o Jeca como um ser inacabado, fruto do abandono, mas que, com cuidado, poderia evoluir se exposto a melhor higiene e boa educação. “A guinada teórica assumida por Monteiro Lobato transformou-se em símbolo de um amplo movimento nacionalista que ganhava força junto à elite intelectual e política brasileira” (p.58).

Assim, mantida essa perspectiva teórica, a eugenia de fato enquanto um projeto político chegara ao Brasil na década de 1910, sob projeção de Renato Kehl em realização de uma extensa campanha de divulgação, como bem destacado pelo autor da obra, em São Paulo no ano de 1917 o trabalho de Kehl rendeu uma ampla conferência, em que “[…] procurou destacar nesta conferência os principais fundamento da eugenia, principalmente o estudo da hereditariedade, a educação eugênica, a seleção conjugal, o direito relativo à eugenia, à higiene e ao saneamento” (p.64).

No capítulo seguinte, cujo título é Renato Kehl: um eugenista em formação, os artifícios narrativos operados pelo autor conduzem a argumentação a reconstruir a imagem de Kehl enquanto médico, pesquisador, propagandista da ciência eugênica e cidadão brasileiro. A rigor, com o desenvolvimento do texto, o autor compõe os traços da trajetória intelectual do médico voltando-se ao recorte temporal de 1917 a 1927, período em que Kehl inicia sua campanha de divulgação da eugenia e atua como médico higienista no Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Conforme reforça Vanderlei de Souza “nesse contexto, […] Renato Kehl acionou estratégias políticas e intelectuais com o objetivo de estabelecer uma estreita identidade entre o seu nome e as ideias e discussões relacionadas à eugenia” (p.116).

Com o objetivo de criar uma rede de expansão do pensamento eugênico, Renato Kehl toma a iniciativa de fundar a Sociedade Eugênica de São Paulo. Em sessão inaugural no Salão Nobre da Santa Casa de Misericórdia no dia 15 de janeiro de 1918, aberta por Kehl, nomeado Secretário geral da Sociedade, compareceram médicos, jornalistas, juristas e autoridades políticas. Contudo, Renato Kehl entedia que era necessário expandir o pensamento eugênico também no Rio de Janeiro, então Capital Federal e, para tanto, elege o também médico Belisário Penna (1868-1939) para liderar a Campanha na cidade carioca, numa ampla rede de médicos e intelectuais envoltos num projeto de pensar a raça, a higiene e o saneamento.

Por este viés, a conjuntura da narrativa proposta parte a mergulhar nos meandros das próprias intenções de Kehl em assumir a liderança do movimento eugênico e tomar para si a responsabilidade de coordenar a campanha ao lado dos demais intelectuais. O autor do livro buscando referendar o argumento referente ao olhar do intelectual acerca da eugenia, evoca que “Renato Kehl acreditava que, à medida que a eugenia fosse aceita por um número maior de intelectuais, tanto essa ciência quanto ele próprio poderiam ocupar legitimamente a posição dominante no pensamento do médico brasileiro” (p. 139- 140).

Trata-se, não por acaso, de um momento histórico-chave para compreensão do movimento eugênico no Brasil, especialmente décadas de 1910 e 1920. Por esse viés, a narrativa é direcionada a atingir o desenvolvimento do pensamento científico, bem como o olhar da intelectualidade acerca da eugenia. Observa-se que ao lado de Renato Kehl, estavam Oliveira Vianna e Azevedo Amaral, que juntos iriam se colocar a favor da aplicação do projeto eugênico, mantendo em ação a comunhão do discurso autoritário e racialista no pensamento social brasileiro.

É plausível de argumentação que, visando Renato Kehl e seu esforço na busca em construir sua rede de intelectuais no fortalecimento do projeto eugênico, o autor envolve a teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), no que se volta às práticas sociais empregadas por Kehl, sendo elas políticas e intelectuais, devendo ser compreendidas “[…] como práticas ou estratégias que constituem as relações de poder e de lutas concorrenciais num dado campo, pelas quais um cientista ou um intelectual, como um agente social, legitima suas concepções e seu espaço no interior do campo científico” (p.157). A sistematização teórica de Bourdieu assumida por Vanderlei de Souza é essencial ao percorrer da obra, mas em destaque, ela se apresenta incisivamente nos capítulos dois e três, com a articulação do campo científico e relações simbólicas que os agentes sociais estabelecem.

Por seu turno, no capítulo três, cujo título é A hora da virada: a “higiene racial” alemã e as lições de eugenia, a questão da higiene racial é melhor delimitada, posto que Renato Kehl ao realizar uma viagem para a Alemanha em 1928, retorna ao Brasil com novos entendimentos do pensamento eugênico. Nesse ponto é que o autor foca na obra Lições de Eugenia 2, publicada por Kehl em 1929, lançada dias antes da realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. “Kehl acreditava que sua obra poderia ser o parâmetro científico que permearia as discussões do congresso, definindo com antecedência aquilo que considerava serem as questões centrais […]” (p. 217).

Constituindo-se um verdadeiro “manifesto”, trazia 12 lições amparadas nas reflexões dos principais eugenistas e movimento eugênicos, em especial o programa eugênico alemão. Portanto, pelo que indica os dizeres do autor, tem-se aí enquadrado que “[…] essas novas ideias assumidas por Renato Kehl consistiam na transposição do Brasil para um modelo de eugenia que se formava, principalmente, na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos” (p. 228). Não obstante, é nesse fluxo que Vanderlei de Souza elenca e constrói a trama narrativa retomando a trajetória do pensamento racista-biológico na consolidação do movimento eugênico nos anos 1920, pensando suas influências externas, que muitas vezes mantinham e carregavam as concepções simbólicas de caráter racial e racista.

O último e quarto capítulo intitulado como “Quem é bom já nasce feito”: a eugenia “negativae o racismo científico em Renato Kehl, é reforçada a forma pela qual Kehl acaba assumindo o determinismo biológico enquanto caminho de teoria calcado nos preceitos da hereditariedade. Nesse contexto, para o “bem dos indivíduos”, eles deveriam se casar com alguém do mesmo tipo racial, uma das principais medidas eugênicas, visto que “segundo Renato Kehl, as leis mendelianas possibilitariam que os jovens casais pudessem ‘prever com certa precisão’ como seria a sua descendência, evitando o nascimento de ‘proles indesejáveis” (p. 281).

Ou, nesses termos, acabam sendo adotados por Renato Kehl argumentos a favor da forte contestação à mistura racial e, concomitantemente, acontece o incentivo à segregação de raça devido à proximidade com o racismo científico. Outrossim, não esquecendo das discussões travadas na conjuntura do início do século XX, o autor lembra das argumentações envolvendo a raça e a imigração que se findaram nas políticas de restrição. Mantendo-se esse panorama de raciocínio, já à caminho da conclusão da obra, torna-se perceptível que uma das questões latentes do pensamento de Renato Kehl é raciocinar a raça miscigenada brasileira e projetar a política de imigração como forma de branqueamento. Para ele “[…] o governo deveria, portanto, proibir que ‘elementos inassimiláveis’ tivessem entrada franca em solo brasileiro, principalmente os indivíduos negros e amarelos […]” (p.279).

É plausível expor o entendimento de que a leitura do livro em sua ampla abordagem contextual e teórica oferece ricas contribuições ao desbravar a vida e o pensamento de Kehl, refletindo a amplitude e a complexidade da discussão do estudo eugênico. Nesse ínterim, reforça-se que os estudos do autor abrem espaço para a ampliação e o aprofundamento de pesquisas similares no campo da história da ciência.

Em suma, a obra escrita em leitura fluída, prazerosa, é essencial no que tange ao estudo da história da ciência no Brasil, o historiador Vanderlei de Souza constrói uma conjuntura narrativa buscando abarcar o contexto histórico do início do século XX, refletindo a potencialidade intelectual do médico paulista Renato Kehl na construção de propostas para pensar o Brasil, que permitem refletir a eugenia que emerge enquanto elemento fundamental nesse processo de reconstrução brasileira. Por fim, a organização da obra e o bom amparo às fontes favorece uma leitura agradável e de fácil assimilação da discussão proposta.

Notas

1 LOBATO, Monteiro. Urupês. 9.ed. São Paulo: Brasiliense, 1957. Série Obras Completas de Monteiro Lobato.

2 KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Rio de Janeiro. Editora Francisco Alves, 2º Edição, 1929


Resenhista

Fernando Tadeu Germinatti – Mestrando em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). E-mail: Germinattifer@outlook.com


Referências desta Resenha

SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras. Paraná: Unicentro, 2019. Resenha de: GERMINATTI, Fernando Tadeu. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.9, n.2, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

Itamar Freitas

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