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História da Saúde / Fronteiras – Revista de História / 2011

Saúde e doença na história

A produção historiográfica relativa à história da saúde e da doença tem aumentado consideravelmente nas últimas décadas. Dissertações e teses, simpósios e a publicação de livros comprovam a relevância dos estudos dessa natureza. A atenção dado à temática tem sem dúvida débito para com as transformações da historiografia e a ampliação do campo do historiador, com a incorporação de novos objetos e abordagens que trouxeram para o cenário o homem doente e sua história.

Mas há também outros fatores que levam ao interesse pelo tema saúde e doença na história. Conforme observa Roy Porter, o “pavor da doença, potencial e efetiva, as dores das queixas agudas e das moléstias de longo prazo, e ainda o pavor da mortalidade figuram entre nossas experiências mais universais e assustadoras” [2]. Fato é que da mesma forma em que mobilizam os homens e as sociedades, as doenças também despertam a atenção do historiador, o qual busca reconstituir de várias perspectivas analíticas a história das doenças e suas representações, a história dos saberes médicos e das práticas de cura, bem como as políticas de saúde e os impactos das epidemias nas sociedades.

Na historiografia da doença e da saúde praticada atualmente, tais perspectivas analíticas superam a ideia da doença como fator unicamente biológico, incorporando outras dimensões das práticas científicas. A história da medicina transita assim entre a investigação dos fenômenos biológicos e as análises dos componentes políticos e sociais que exerceram influência no conhecimento das enfermidades e das terapêuticas; entre o conjunto de conhecimentos elaborados no laboratório e as demandas sociais da medicina [3].

Acrescente-se a tais dimensões, os trabalhos que se debruçam sobre os elementos culturais que permearam os saberes, ofícios e as práticas de cura, investigando outras maneiras de lidar com o corpo doente bem como as representações constituídas em torno das doenças. De maneira geral, os textos que compõem o presente dossiê incorporam tais perspectivas de diversas formas.

O artigo de Henrique Carneiro, “O saber fitoterápico indígena e os naturalistas europeus”, discute as diferentes formas pelas quais o conhecimento indígena acerca das plantas com propriedades farmacológicas foi interpretado pelos naturalistas europeus, avaliando o papel dos textos produzidos pelos portugueses, holandeses e naturalistas do século XIX na sistematização desse conhecimento “vegetalista”. O autor demonstra que embora não fosse um consenso entre os europeus, as formas de cura autóctones da América representaram uma contribuição valiosa dos saberes indígenas “para o nascimento de uma nova ciência experimental”. Henrique Carneiro chama atenção ainda para a relevância desses conhecimentos para a “etnobotânica” fonte da ciência aplicada à indústria farmacológica contemporânea.

Em “A prodigiosa lagoa de Sabará e as doenças das Minas do século XVIII”, André Nogueira por sua vez se detém sobre o universo da cura no cenário setecentista mineiro. Tendo por base o testemunho do cirurgião João Cardoso de Miranda e outros textos médicos da época, Nogueira procura reconstituir como as doenças eram compreendidas naquele contexto. Detém-se principalmente no exame das formas que eram descritas os males que acometiam os habitantes das Minas, principalmente escravos e forros que buscavam a cura nas águas miraculosas. Além de demonstrar os vários olhares sobre a “prodigiosa lagoa” e as doenças na Capitania das Minas, o autor incorpora análises teóricas que contribuem para elucidar os significados históricos do conceito de doença.

O texto de Reinaldo Guilherme Bechler, “Re-conhecendo Armauer Hansen: o cientista da lepra e o personagem histórico”, é um estudo sobre a trajetória de Hansen, a partir de suas pesquisas sobre a lepra na passagem do século XIX para o XX. Bechler situa o ambiente político e científico no qual ele se inseria e as estratégias científicas do médico norueguês para comprovar a tese transmissibilidade da lepra. Tendo por base pressupostos teóricos caros à historiografia das ciências, que se volta para investigação dos processos de construção dos fatos científicos e das estratégias utilizadas pelos cientistas para defender suas teorias, Bechler coloca em evidência os embates científicos sobre o agente causador da lepra e de que forma Hansen foi capaz de construir uma posição hegemônica e suas descobertas serem legitimadas cientificamente. Discute ainda as ressonâncias políticas e sociais das posições do cientista norueguês, o qual ofereceu argumentos científicos ao isolamento como forma de evitar a disseminação da enfermidade.

As imbricações entre o campo da política e da ciência médica podem ser igualmente percebidas no caso do Brasil. Nessa perspectiva, o texto de Florisvaldo Paulo Ribeiro Júnior, “Trabalho, progresso e a sociedade civilizada. As práticas médicas e as figurações do sertão mineiro na Primeira República”, insere-se na perspectiva dos trabalhos sobre a relação entre os projetos sanitaristas e os projetos de modernização no interior do país, em particular as regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. O autor problematiza as formulações da medicina social que se constituíram sobre esse espaço, mostrando como os discursos investiam na possibilidade de construção da civilização e incorporação do trabalhador nesse processo. O artigo evidencia como o espaço do sertão foi objeto da ação higienista e civilizatória, na medida em que as “elites do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba se apropriaram das representações positivadas do sertão para reivindicar espaço nos arranjos políticos da República”. Sem perder de vista a conexão das medidas saneadoras com o projeto sanitarista, Florisvaldo Ribeiro Júnior discute as particularidades assumidas por esse projeto no âmbito regional e o papel das elites políticas nesse processo.

A discussão sobre o sanitarismo perpassa igualmente por outras dimensões, como as formas de difusão de hábitos de saúde entre a população. Ao longo dos séculos XIX e XX o saber médico assumiu uma feição normatizadora de hábitos e atitudes preventivos de conservação da saúde. Em “Entre manuais e artigos: campanhas para o público leigo sobre o fumo e seus males no Brasil na primeira metade do século XX”, Huener Silva Gonçalves e Deyse Marinho de Abreu realizam uma análise dos discursos contra o tabagismo produzidos no país na primeira metade do século XX, a partir das obras de editoras religiosas – Adventistas e Batistas – e da Revista Seleções do Reader’s Digest. Os autores mostram como discurso antitabagista teve, além dos componentes científicos, o reforço dos argumentos religiosos dos adventistas e outros grupos protestantes, que se preocuparam com um estilo de vida baseado na extirpação de hábitos considerados prejudiciais à saúde do corpo. O artigo também contribui para a reflexão sobre as forma de divulgação científica das pesquisas médicas por meio da Revista Seleções, que entre as décadas de 1940 e 70 publicaram vários textos relativos ao tema. Permite, enfim, observar o entrelaçamento entre os argumentos de ordem moral e da medicina.

O dossiê encerra com uma pesquisa que trata das necessidades e a utilização dos serviços de saúde pelos emigrantes brasileiros de Governador Valadares – MG para os EUA. Em “Demanda e utilização dos serviços de saúde no local de origem pelo emigrante e seus familiares”, Norberto de Almeida Duarte, Álvaro Escrivão Júnior e Sueli Siqueira, autores com formação distinta, demonstram o caráter interdisciplinar das pesquisas relacionadas ao campo da saúde. Analisando os impactos da saúde entre os emigrantes, o texto aborda a percepção construída por esses a respeito da Utilização de Serviços Saúde nos Estados Unidos e Governador Valadares. Os resultados da pesquisa demonstram que por várias razões, dentre elas as de ordem econômica e a confiança nos especialistas locais, os emigrantes revelam uma preferência pela assistência médica do local de origem. Além disso, o acesso aos serviços privados de saúde só se torna possível pelos ganhos obtidos com o trabalho nas cidades norte-americanas, que custeiam os planos de saúde dos emigrantes e seus familiares.

Sem esgotar o viés das possibilidades de pesquisa, o conjunto de artigos aqui apresentados indica algumas das perspectivas pelas quais a saúde e a doença na história e nas ciências sociais têm sido problematizadas. Com esse dossiê Fronteiras – Revista de história permite aos seus leitores a entrar em contato com pesquisas relevantes nesse campo historiográfico.

Agradeço aos autores que enviaram seus artigos e assim contribuíram para a divulgação de pesquisas relacionadas à temática; e aos editores a oportunidade de organização do dossiê.

Notas

2. PORTER, Roy. Das tripas coração. Uma breve história da medicina. Rio de janeiro, São Paulo: Record, 2004. p. 13.

3. CAPONI, Sandra. La historia de las ciências y el saber médico. História revista, 9 (2), p.161- 188, jul. / dez..2004.

Jean Luiz Neves Abreu – Professor do Instituto de História-UFU. Doutor em História-UFMG.


ABREU, Jean Luiz Neves. Apresentação. Fronteiras: Revista de História. Dourados, v. 13, n. 23, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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