História da saúde e das doenças: instituições, discursos e relações de poder / História – Debates e Tendências / 2021

A saúde e as doenças não podem ser pensadas como conceitos estanques, a complexidade que envolve o estar são ou doente tem uma relação direta sobre como as sociedades interpretam e assimilam esses dois estados. Assim, a conceituação também está envolvida nas relações de poder, nas disputas discursivas que dizem respeito aos diversos comportamentos referentes à multiplicidade de doenças existentes.

O saber médico precisa ser problematizado nos diversos contextos, possibilitando ver como os discursos se articulam e garantem a sua condição de existência. Neste sentido, as representações sociais sobre as doenças estarão diretamente relacionadas com os mecanismos de controle, definição e exclusão dos indivíduos em diferentes conjunturas históricas.

Destarte, as instituições hospitalares têm um papel importante como legitimadoras das práticas médicas de cura, a partir desses espaços os sentidos sociais de certo e errado são considerados o limiar entre vida e morte ou outra interpretação: liberdade e aprisionamento. Esta função garantiu o último estágio de processos de exclusão, de estereotipação e segregação em relação às doenças, pois garantiam que uma higienização social realizasse uma limpeza ou limitava os indivíduos aos julgamentos sociais referentes às suas enfermidades.

Segundo Ana Bock (2006) cada cultura constrói suas próprias zonas patológicas, é no interior das relações que se estrutura uma teia capaz de atender determinados interesses através dos saberes. É preciso complexificar as relações discursivas, “elas estão, de alguma maneira, no limite do discurso: oferecem-lhe objetos de que ele pode falar, ou antes (pois essa imagem da oferta supõe que os objetos sejam formados de um lado e o discurso, do outro), determinam o feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar de tais ou tais objetos, para poder abordá-los, nomeá-los, analisá-los, classificá-los, explicá-los etc.” (FOUCAULT, p. 51, 2008)

A articulação do discurso médico, portanto, ocorre em relação a outros enunciados que perpassam as relações de poder nos diversos contextos históricos. Medicina e Política, por exemplo, constituem laços que reverberarão socialmente pelo senso comum, pela literatura, pela urbanização, pelas ciências do comportamento, entre outras.

Esses enlaces são primordiais para garantir a manutenção de determinados grupos no poder, para estabelecer uma relação entre doenças e religião, doenças e comportamento, doenças e desvios sociais, etc. A condição de existência do que se determina saúde e enfermidade está relacionada com a maneira pela qual os enunciados se articulam com outros.

A imagem escolhida para ilustrar o dossiê, por exemplo, representa essas diversas possibilidades de sentido e articulações do discurso médico. “Professores da Faculdade de Medicina”, foi o título dado por Adrien Barrére a esta charge de 1905 composta figuras que representam: a elite, a pesquisa de remédios, a eugenia, a presença política por trás dos médicos, entre outros a serem observados.

Isso possibilita pensar as diferentes formas com que os enunciados da medicina se articulam socialmente e, este repertório de pesquisas aqui disponibilizado, corroboram na problematização da temática da saúde e das doenças com uma diversidade de proposições que é o seu maior ganho.

A reunião dessas / desses diferentes pesquisadoras / pesquisadores garantiu uma pluralidade de abordagens que suscitam reflexões a partir de interessantes perguntas de pesquisa. Eis aqui a apresentação dos textos de destacada qualidade.

O louco e a loucura em Goiás no século XIX são abordados em A identificação do louco e da loucura em Goiás na segunda metade do século XIX, de Leicy Francisca da Silva. A autora realiza interpretação dos textos jornalísticos e dos relatórios dos administradores, buscando observar como nestas fontes o sofrimento mental é conceituado, como são classificados aqueles que o sofrem e quais as discussões sobre o modo e espaço para trata-los. Nesta busca pelo louco e pela loucura, a pesquisadora se deparou com questões judiciais o que contextualizou o indivíduo em situações de violência, crime, suicídio e abandono.

Ainda sobre a “medicalização” dos comportamentos, a caça às bruxas é abordada no texto, Doenças, Lutas Sociais, Medicina Tradicional e a Caça às Bruxas, de Roseli Tristão Maciel e Vera Lúcia Pinheiro. A pesquisa propõe pensar a partir da emergência do capitalismo, a violência das classes privilegiadas e a submissão da população à Lei dos Pobres. Este aspecto é problematizado em relação ao fenômeno da caça às bruxas, que dizimou milhares de mulheres que exerciam a medicina popular no cuidado da saúde dos pobres. Abrange ainda, as experiências acumuladas pelas mulheres no tratamento das doenças no Brasil, na sua diversidade étnica e cultural formada pelos povos indígenas, afrodescendentes e portugueses e a teia de conhecimentos materializados sob a forma de uma medicina rústica, parte da nossa cultura atual.

A pesquisadora Dilene Raimundo do Nascimento nos apresenta uma discussão acerca da peste no Brasil, em duas cidades portuárias, Santos e o Rio de Janeiro. Em A peste aporta em Santos e Rio de Janeiro, o foco se dá na construção da narrativa científica sobre a peste bubônica nestas urbes, nas quais o impacto de uma epidemia ocasionou e impulsionou tanto um forte debate em torno da doença quanto a busca de soluções científicas e sanitárias para as graves consequências locais de sua erupção.

As plantas medicinais compõem a estrutura do artigo de Mário Roberto Ferraro, intitulado A seção de plantas medicinais na Exposição Agrícola e Industrial de Goiás (1866). O autor busca listar as plantas medicinais plantadas ou consumidas em Goiás e exibidas na Exposição Agrícola e Industrial da província de Goiás realizada em 1866 e mostrar suas indicações terapêuticas. O pesquisador observa que boticários e médicos não participaram da exposição, o que lhe possibilitou elaborar a seguinte questão: quais as fontes do saber médico que inspiraram a elaboração do catálogo? É na busca por essas elucidações que se dão os caminhos do texto.

Todas as questões apresentadas nos textos até o momento os localizam em período anterior à concepção de saúde pública no Brasil, neste sentido, para atentarmos a essas questões o pesquisador Eduardo Sugizaki nos apresenta, Do nascimento da saúde pública à saúde coletiva: reativar a contra-história. Nesta composição o autor busca apontar uma história da historiografia sobre o nascimento da saúde pública, já conhecida no Brasil, para apontar reducionismos. Procura esclarecer a posição de Rosen pela explicitação do salto da sua abordagem em relação a de Sigerist. Apresenta a recepção genealógica que Foucault faz de Rosen para desvelar uma transformação do direito público. Pautado na análise do debate teórico, o autor busca reativar a compreensão da genealogia de Foucault para compreender o nascimento da saúde coletiva no Brasil.

Nos transportando para o estado da Bahia, Ricardo dos Santos Batista apresenta, O estigma da sífilis: Bahia, 1920-1930. Partindo dos textos médicos e jornais o autor procura investigar os mecanismos que levaram à construção de um estigma da doença na Bahia. Assim, aborda como os ideais eugênicos perpassaram tais discursos e auxiliaram a compor a noção de monstruosidade e deformidade presentes nas representações analisadas.

Investigando a relação entre o discurso médico e as questões políticas, Rildo Bento de Souza abre o caminho para visualizarmos Goiás, no momento da discussão sobre a transferência de sua capital, ocorrida nos anos de 1930. Anamnese, Diagnóstico e Terapêutica: O Discurso Médico na Transferência da Capital de Goiás, analisa o discurso do médico e político de Pedro Ludovico Teixeira, para justificar a construção de uma nova capital no Estado de Goiás no início da década de 1930, com base em dois documentos: o Relatório de 1933, e um opúsculo com a transcrição de uma palestra de 1966. Em um momento de crise, Pedro Ludovico descreve a cidade como a um doente para legitimar a construção de uma nova urbe que viesse a representar os discursos de higiene e salubridade no estado.

Tomando como ponto de partida esse período conturbado de 1930, Luiz Alves Araújo Neto estende o recorte até os anos de 1970 para nos apresentar, Do projeto unificador à fragmentação prática: a cancerologia e os cancerologistas no Brasil (1930 – 1970). O autor procura discutir o processo de especialização médica em torno do câncer no Brasil entre os anos 1930 e 1970, especificamente o projeto de desenvolvimento de uma especialidade que reuniria conhecimentos e práticas no combate à doença, a cancerologia.

Pensando na doença que assola o mundo e tem seu ápice nos anos de 1980, Eliza da Silva Vianna aborda a representação social da aids, considerando as relações de poder presentes na produção de discursos sobre a doença no artigo intitulado, Aids a contrapelo: experiência da doença e relações de poder. A autora utiliza textos literários do escritor brasileiro Caio Fernando Abreu, em que a doença aparece como temática, principalmente abordando sua experiência de adoecimento, a escolha se dá pela observação de participação dos doentes no combate à epidemia de HIV / Aids, e ao preconceito a ela relacionado. A narrativa sobre a experiência do adoecimento de Abreu possibilita a contraposição nos discursos de culpabilização e preconceito presentes no contexto epidêmico.

Com o recorte nos anos de 1980, Leonardo Carnut e Aquilas Mendes nos apresentam, Matrices teórico-políticas del pensamiento de Sonia Fleury y la economía política de la salud en los años 1980 en Brasil. Sônia Fleury foi uma pesquisadora e militante brasileira que se envolveu profundamente na elaboração da constituição de 1988, por sua importância na luta pela democratização da saúde ela é o foco deste trabalho. Os autores se propõem a analisar as matrizes teórico-políticos da pesquisadora para pensar a economia política e a saúde concentrando-se em duas obras do período a que chamam pósconstituinte: Reforma Sanitária – em busca de uma teoria (1989) e Estado e Políticas Sociais na América Latina (1992).

É possível perceber que as trajetórias dos textos que compõem o dossiê apontam para diversas perspectivas de análises, cada pesquisadora e pesquisador construíram seus recortes na busca de compreensão de contextos sobre uma diversidade riquíssima de relações entre doenças e sociedade.

Essas diferentes abordagens descortinam vieses de compreensão do mundo, de como as relações de poder legitimam discursos que produzem práticas e, estas, passam a constituir não apenas parte da vivência, mas a representação das realidades dos indivíduos.

Para além dos questionamentos possíveis a se fazer sobre a medicina é preciso também compreender os aspectos de avanços que abraçam a História da Ciência, neste sentido, ter uma visão crítica com o objetivo de conhecer e pensar a própria trajetória. Construir um reconhecimento de como um saber pode ser utilizado para a manutenção de visões colonialistas, conservadoras e que lutam por sobrevivência mesmo diante das transformações sociais no tempo.

A temporalidade deste dossiê abarca reflexões do século XVI ao século XX, provocando elucubrações acerca de como um saber perpassou / perpassa a História de um país com diversas possibilidades de sentido. É um convite ao contentamento por constituir um múltiplo diálogo com leitores, ao provocar opiniões e abrir as portas para o debate através da pesquisa.

Desejo a todas e todos que se interessam ou que tenham curiosidade sobre a temática da saúde e das doenças, uma excelente leitura e que muitas reflexões e indagações possam povoar as mentes, porque as certezas nos acomodam.

Éder Mendes de Paula – UFJ / Brasil. Organizador.


PAULA, Éder Mendes de. Editorial. História – Debates e Tendências, Passo Fundo- RS, v. 21, n. 1, jan / abr, 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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