História da saúde e da doença: da lepra a hanseníase | Dimensões | 2021
A cura dos Dez Leprosos | Imagem: IPMC
As doenças e suas implicações sociais foram, durante muito tempo, um capítulo negligenciado pela História. Pode-se dizer que foi a partir do fim da década de 1950 e início da década de 1960, que os primeiros historiadores, de origem francesa e inglesa vieram a se debruçar sobre o tema. Ocorre então, uma renovação nos estudos dessa temática, em especial a partir dos estudos dos pesquisadores da história da medicina como Louis Chevalier e Asa Brigges. É possível inferir, então, que estes estudos passaram a abordar não mais apenas os aspectos médicos e demográficos das doenças, mas, buscavam enxergá-las e entendê-las como fenômenos sociais1.
É possível afirmar que a historiografia, a partir dos anos 1980, passou a evidenciar os significados socioculturais das doenças, uma vez que, as respostas e os impactos gerados por estas, podem assumir formas diversas em diferentes grupos sociais2. Assim, os estudos da História das Doenças e da Saúde se tornaram mais complexos e abrangentes, onde por meio destes a “[…] vida social, política e cultural dos grupos humanos pode ser percebida e analisada pelos historiadores a partir da ocorrência de enfermidades individuais ou coletivas”3.
No Brasil, o estudo das temáticas que envolvem o binômio saúde/doença e seus desdobramentos, são ainda mais recentes. Pode-se afirmar que estes tenderam a crescer a partir da vinda de Michel Foucault, para o Brasil, onde lecionou na Universidade de São Paulo, na década de 1970. A partir de então surgiram as primeiras publicações compreendidas no âmbito da História da Saúde e das Doenças como a de Roberto Machado, A danação da norma e o de Jurandir Freire Costa, Ordem médica, norma familiar.
Daí em diante, muitos outros trabalhos aparecem e os estudos sobre essas temáticas se avolumam em especial a partir da criação dos cursos de Pós-Graduação Strictu Sensu que se espalharam pelo país, possibilitando dessa forma, a que os estudos dessas temáticas não ficassem mais restritos aos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro, permitindo visibilidade aos chamados estudos regionais sobre o tema, que cresceram significativamente a partir dos anos 1990.
Na esteira desses estudos, merece menção especial as pesquisas sobre a lepra/ hanseníase. As reflexões no campo da história abordando tal enfermidade despontaram por todo o país, principalmente a partir do ano 2000. A partir de então inúmeras dissertações, teses, livros e artigos apresentando as várias faces desta doença podem ser observados
Algumas enfermidades conseguiram gerar substantivos que identificavam o paciente com a doença tais como epilético, sifilítico, tuberculoso, leproso, numa identificação “automática” da doença com o doente para o conjunto da sociedade. No caso do leproso, a história dramática de uma doença como a lepra, revelou, através dos tempos, uma enfermidade que aliou o horror dos sintomas e o pavor do contágio a uma etiologia difícil que conectava tal doença à ausência de cura.4 E, em nossos dias, embora a hanseníase seja uma enfermidade com tratamento eficaz e gratuito no Brasil e completamente curável, desinformações e estigmas ainda rondam a sociedade e até os próprios atingidos pela doença.
Historicamente, fomos um país que desde o século XIX, praticou o isolamento compulsório de leprosos quando ainda não havia políticas claras, definidoras de tal prática sanitária. Em vários estados, grupos envolvidos com a filantropia desempenharam esforços hercúleos na construção e manutenção de Asilos e leprosários. Tais instituições tem sido objeto de estudo de muitos historiadores e outros cientistas sociais nos últimos anos sob várias óticas: desde a história desses espaços segregadores no sentido do seu cotidiano, dos tratamentos médicos ali aplicados, da memória dos que remanesceram e seus conviventes e descendentes até as iniciativas no campo da museologia que procuram incorporar tais sujeitos no processo curatorial de grupos frequentemente silenciados.5
Fundamental informar que até a década de 1960, em diferentes regiões do país, a internação era ainda uma prática usual bem como o apartamento dos doentes de seus familiares. Crianças que foram separadas de seus pais durante este processo, hoje idosos, pleiteiam a reparação financeira em virtude das perdas e traumas adquiridos por essa política de estado.
É importante também enfatizar que somos ainda o primeiro país em incidência de hanseníase e o segundo em prevalência no mundo. Proporcionalmente, somos também o país mais atingido pela doença perfazendo um índice de 93 a 94% dos casos de hanseníase em toda a América Latina. Desse modo, acredita-se, que algumas reflexões que incorporem essa temática são ainda muito necessárias no escopo do tema da Saúde e da Doença.
Partindo então de algumas novas possibilidades de abordagem do tema da hanseníase, este dossiê apresenta algumas reflexões atinentes às propagandas do combate à lepra pelo estado; às intervenções e tratamentos pautados nas dietas e medicina naturais; a enfermidade vista sob a ótica do cinema e documentários; a assistência e filantropia aos atingidos pela doença por grupos protestantes e espíritas; as memórias do sofrimento e soluções museológicas entre outras experiências conectadas aos estudos acerca da hanseníase.
Nosso objetivo foi trazer ao debate algumas temáticas consideradas de interesse para o aprofundamento de pesquisas sobre a história da doença e do doente como também permitir novas abordagens e perspectivas de análise sobre tópicos pouco estudados como o da importância da filantropia e da participação de grupos religiosos na mitigação das agruras do isolamento, da estigmatização dos filhos sadios dos hansenianos como também dos reflexos da política isolacionista o quotidiano do doente e de seus familiares em nossos dias. Procurou-se privilegiar a diversidade de fontes, tais como a imprensa, fotografia e o cinema, e importância destas na elaboração da pesquisa científica, tanto como complementares aos documentos escritos como seu papel como fonte privilegiada que permite novos olhares e perspectivas de análise tanto sobre a história da hanseníase como também para os estudos sobre estigmatização e marginalidade.
Esse Dossiê é composto por sete textos de pesquisadores com grande familiaridade com o tema, provenientes de diferente estados da Federação do Brasil, o que nos evidencia que a temática lepra/hanseníase é discutida e analisada em diferentes centros acadêmicos do país.
Em “A intermediação da Justiça: a Procuradoria Jurídica do Departamento de Profilaxia da Lepra de São Paulo”, Yara Nogueira Monteiro, analisa a criação e o funcionamento da Procuradoria Jurídica do Departamento de Profilaxia da Lepra instituída especialmente para prestar assistência judiciária os pacientes de hanseníase paulistas e de seus familiares. A análise da legislação profilática, processos judiciais, prontuários clínicos e jornais tornaram possível o estudo das características de funcionamento da Procuradoria e, em especial, verificar como que a prestação de um serviço tão essencial se revelou capaz de resultar em diferentes restrições, inclusive a do direito de livre de acesso à Justiça.
No artigo “Isolar e assistir: desafios do tratamento dos doentes de lepra na colônia de Itanhenga”, Sebastião Pimentel Franco e Tania Maria de Araujo, analisam a assistência prestada aos doentes submetidos ao isolamento compulsório em decorrência do mal de Hansen e a percepção dos pacientes sobre o tratamento que receberam, utilizando como fontes documentais (Prontuário, Livro de Termos e Causas Criminais, Correspondências Recebidas e Expedidas da Direção da Colônia) relacionadas à antiga Colônia de Itanhenga – Espírito Santo e depoimentos orais de ex-internos. Os autores apontam que a assistência aos doentes encontrou dificuldades institucionais como descontinuidade dos serviços, ausência de suprimentos e superlotação do estabelecimento. Além disso, evidenciam que os doentes demonstraram percepções distintas sobre a assistência, pois, ainda que alguns nutrissem expectativas de cura, havia também desilusão e desânimo com o sucesso do tratamento e incertezas de retomada da vida social.
Discutindo o tratamento dos enfermos da hanseníase, no texto Tratamento/medicação no combate à lepra/hanseníase: das ervas à sulfona, Zilda Maria Menezes Lima apresenta o debate em torno das práticas de tratamento no combate à lepra/hanseníase, apresentando alguns procedimentos e medicamentos experimentais utilizados pela medicina científica nos longos anos de luta contra a doença, até a descoberta da droga que finalmente promoveria a cura dos enfermos.
O artigo intitulado As Ongs no campo da hanseníase e a Agência do Paciente” de autoria de Zoica Bakirtzief da Silva Pereira e Ricardo Mayer, analisam as condições de agentividade e de reconhecimento do paciente de hanseníase a partir de um recorte institucional mobilizando os conceitos de campo científico, bens simbólicos e habitus da sociologia de Pierre Bourdieu. O referente empírico da análise se baseia em fontes discursivas relacionadas nos Index Medicus e Catalogue, PUBMED, artigos e registros da historiografia da lepra publicada pela FIOCRUZ em 2003 e em fontes primárias sobre os congressos e simpósios nacionais e internacionais da hanseníase desde 1897. O artigo apresenta a configuração do campo institucional e científico que se constitui em torno da hanseníase e descreve as diversas organizações envolvidas na hanseníase e suas relações de influência na produção de conhecimentos, práticas e técnicas do campo. Por fim, discutimos as condições de agência do paciente e de reconhecimento nesse campo.
Em “Preventório Educandário Afrânio de Azevedo: o isolamento de crianças estigmatizadas pela hanseníase em Goiás na década de 1940”, Kalyna Ynanhiá Silva de Faria, afirma que em Goiás a partir da década de 1930, o isolamento e controle dos doentes de lepra/hanseníase, iniciou-se com as construções do leprosário Colônia Santa Marta, do preventório Educandário Afrânio de Azevedo e do dispensário na cidade de Anápolis. No preventório Educandário Afrânio de Azevedo, os internos recebiam a assistência e educação necessária até a maioridade. No artigo a autora enfatiza os discursos construídos sobre a necessidade do isolamento e na “prevenção” do contágio da lepra/hanseníase aos filhos nos preventórios, a partir das legislações e documentações que estabeleciam as normas a serem seguidas por tais instituições, bem como dos discursos modernistas, higienistas e eugênicos.
No artigo “Protagonismo feminino na filantropia contra a lepra no sertão (Goiás, 1929-1942)”, Leicy Francisca da Silva e Ordália Cristina Gonçalves Araújo, analisam a atuação de mulheres protestantes na filantropia e organização de leprosários em Goiás entre as décadas de 1920 e 1940. Observam as autoras esse processo através do acompanhamento do trabalho de duas mulheres, Helen Gordon/Helena Bernard e Henrietta Buchan Wilding, conhecida como Rettie Wilding (1889-1926), missionárias da União Evangélica Sul-Americana, que atuaram na construção das primeiras instituições sanitárias de assistência aos hansenianos no estado, o Leprosário Helena Bernard de Catalão, e o Leprosário Macaúbas na Ilha do Bananal. Problematizamos as estratégias de inviabilização do protagonismo feminino nas notícias veiculadas nos jornais, e como nas escritas dessas mulheres expõem-se faces e nomes de outras que com elas empreenderam as atividades assistenciais filantrópicas no sertão.
No artigo “Educar para (in)formar: a educação sanitária do Serviço Nacional da Lepra na década de 1940”, Laurinda Rosa Maciel, apresenta algumas estratégias de educação sanitária utilizadas pelo Serviço Nacional de Lepra (SNL), notadamente filmes e palestras com propaganda das atividades desenvolvidas pelas autoridades sanitárias em relação à doença que atualmente é chamada de hanseníase. A autora analisa cinco filmes, produzidos entre 1939 e 1946, por órgãos governamentais, e seis palestras proferidas pelos leprologistas brasileiros, entre 1944 e 1945, que enfocam cuidados e atividades de controle para tratar a doença. Estas ferramentas foram utilizadas pelo SNL para mostrar as estratégias usadas de combate à doença, esclarecer a população sobre os cuidados necessários e sobretudo positivar o papel de instituições criadas para isolar e tratar os pacientes e seus filhos.
Em “História da Lepra no Brasil – álbum das organizações antileprosas”: Souza-Araújo em defesa da política isolacionista para o combate à lepra no Brasil”, Silvia D. Schneider, evidencia o papel do médico paranaense Heráclides César de Souza-Araújo (1886-1962) como destacado leprologista brasileiro e defensor do modelo isolacionista de combate à lepra no Brasil, evidenciando que o referido médico ao longo de sua carreira médica publicou cerca de 200 trabalhos sobre a enfermidade, conferindo um papel de destaque para as imagens, as quais contribuíram para reverberar seu discurso. Podemos dizer que este artigo tem por objetivo discutir de que forma o corpo doente e os espaços que estes ocupavam foram compreendidos por Souza-Araújo, a partir do diálogo entre alguns escritos do médico e fotografias publicadas no segundo volume da obra “História da Lepra no Brasil” – Período Republicano (1889-1946), álbum das organizações Antileprosas”
Notas
1 EVANS, Richard J. Epidemics and revolution: cholera in nineteeth century Europe. In: RANGER, Terence; Slack, Paul. Epidemics and ideas: essays on the territorial perception os pestilence. Cambridge/Inglaterra: Cambridge University Press, 1995, p. 149-173.
2 NASCIMENTO, Dilene Raimundo do; SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. O método comparado em história das doenças. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo do; CARVALHO, Diana Maul. Uma história brasileira das doenças. Brasília/DF: Paralelo, 2004.
3 WITTER, Nikelen Acosta. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). 2007. 276 f. Tese (Doutorado em História)- Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, 2007.
4 OBREGON, Diana Torres. Batallas contra la Lepra: Estado, Medicina y Ciencia en Colômbia. Medellín: 2002, Fondo Editorial/Universidad Eafit, p. 21.
5 ALMEIDA, Rafael Antunes. Dos museus e suas armadilhas: considerações sobre a construção de um memorial da hanseníase no Ceará. Anuário Antropológico. Vol I – 2021
Organizadores
Sebastião Pimentel Franco – (UFES)
Yara Nogueira Monteiro – (USP)
Zilda Maria Menezes Lima – (UECE)
Referências desta apresentação
FRANCO, Sebastião Pimentel; MONTEIRO, Yara Nogueira; LIMA, Zilda Maria Menezes. Apresentação. Dimensões. Vitória, n. 47. p. 7-11. 2021. Acessar publicação original [DR]