É fato que o pensamento brasileiro de relações internacionais conhece já há mais de duas décadas uma renovação que não encontra paralelos em outras áreas das ciências sociais, tocado de perto pela importância crescente do Brasil no cenário internacional mas, especialmente, arejado pelo dinamismo de uma produção científico-acadêmica que mostrou-se muito mais pujante do que a criação de programas de formação de recursos humanos para a área. Com efeito, ao longo desse período, a existência de duas únicas experiências de capacitação de quadros para a pesquisa e para o ensino (na forma dos programas de pós-graduação da Universidade de Brasília e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), poderia indicar que a reflexão especializada continuaria sendo por bom tempo ainda negócio entregue a diplomatas ociosos, a acadêmicos deslocados e a militares dedicados. Nesse sentido, não há dúvidas de que tal dinamismo é fruto especialmente da realização de visões estratégicas que se adiantaram ao surgimento de uma demanda que não era tão facilmente percebida, e que somente ganhou formas complexas no adiantar dos anos noventa.
Esse foi o caso da área de história das relações internacionais no Brasil, que tem o seu mais importante centro na Universidade de Brasília, cujos pesquisadores dedicaram-se longamente a consolidar as bases de um pensamento autenticamente nacional e, especialmente, de implementar uma completa revolução teórica e conceitual que permitisse o abandono das visões oficialistas e laudatórias da desusada História Diplomática e avançasse para explicar os desafios históricos da inserção internacional do país e as razões da dependência e das parcas margens de autonomia de que padecem não apenas o Brasil, mas todos os países da América Latina. Durante muito tempo, entretanto, sentiu-se a falta de um compêndio que sistematizasse tal evolução, desafio que foi magistralmente vencido com a publicação em 1992 da primeira edição da História da Política Exterior do Brasil, de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, livro que ganhou nova edição apenas dez anos depois, por iniciativa do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais IBRI e da Editora da própria Universidade de Brasília.
Rompendo com a abordagem clássica da história diplomática do Brasil, a obra monumental de Cervo e Bueno marcou definitivamente o pensamento brasileiro de relações internacionais, e emprestou contemporaneidade aos esforços de formação que se repetem nos bancos universitários. Com efeito, quando foi lançada em sua primeira edição a História da Política Exterior do Brasil já ultrapassava de muito os limites da interpretação Estado-cêntrica e da história oficial, estabelecendo um novo paradigma para a reflexão especializada.
Cuidam os autores de evidenciar os processos de natureza estrutural que se inserem na longa duração e que deram sentido às escolhas da Nação, como também estabelecem as responsabilidades assumidas pelos diferentes segmentos sociais e pelo Estado na conformação dos rumos seguidos pelo país, desde o processo de independência aos nossos dias. Essa história é construída para sustentar a trama complexa das relações internacionais do Brasil, demonstrar os seus objetivos de longo prazo, e como se produziram as resultantes de interesse nacional que impulsionaram os brasileiros na sua aventura internacional, que foram da busca do reconhecimento da nacionalidade, passando pelas demandas da consolidação do Estado nacional, pela promoção egoísta e auto-centrada dos interesses da agroexportação, até a conformação de interesses mais complexos, ligados à busca de insumos para sustentar o processo de modernização econômica. Nessa perspectiva, explicam a natureza supletiva da ação internacional, que se presta a buscar no meio internacional condições para a realização do interesse nacional no plano interno, sejam maiores margens de manobra, apoios políticos, mão-de-obra, capitais ou tecnologias, adquirindo todo o sistema de relações internacionais do país (onde se incluem relacionamentos bilaterais, mas também a atuação nos foros multilaterais) um caráter francamente instrumental.
A visão da ação internacional do Brasil na longa duração, conforme proporcionada pela História da Política Exterior do Brasil, permite que se vislumbre os erros e os acertos nas interações do país com o meio internacional, mas, especialmente, pela função supletiva demonstrada, que se conclua que tais vínculos podem ser o fator que impulsionou o desenvolvimento nacional em determinadas conjunturas, ou que o obstruiu, em outras.
A nova edição do livro de Cervo e Bueno chega em bom momento. A turbulenta década de noventa impôs um novo desafio para a análise da história da política exterior do Brasil, na medida em que se assistiu à reversão de paradigmas tradicionais, processo no qual perderam-se a clareza e a objetividade que vinham caracterizando a ação internacional do país desde a década de trinta. Enquanto tentavam adaptar-se à “ordem global”, não apenas o Brasil, mas outros países da América Latina, ensaiaram novas prioridades e formas de ação. Privilegiou-se a abertura incondicional, sacrificaram-se conquistas históricas do período anterior e reverteram-se prioridades e formas de ação tradicionais em nome da adequação às expectativas dos grandes parceiros. Também foram criados novos eixos uns há muito esperados, como aconteceu com a Argentina e com o Mercosul, e outros que impõem cautela, como a negociação da ALCA. Essa é a lição da principal incorporação da edição de 2002 da História da Política Exterior do Brasil, que em seu capítulo final examina as linhas gerais desse processo, onde se faz um julgamento circunspecto das reorientações estratégicas impressas desde o advento do governo Collor, da sua confirmação pelos que lhe seguiram, mas especialmente das improvisações a que foi submetida a ação internacional do país desde então.
Os autores trazem a lume em 2002, quando a comunidade de especialistas assumiu uma outra dimensão e se alastraram os cursos de graduação em relações internacionais, um livro que tem um impacto muito mais importante para a reflexão e para o ensino de relações internacionais no Brasil do que a primeira edição teve há dez anos atrás. Tem-se agora uma obra que, além de confirmar os acertos da revolução teórica e metodológica consolidada em 1992, chega para ensinar e alertar uma geração de quadros especializados numericamente muito superior jovens profissionais que se situarão no mercado de trabalho nas interfaces entre o público e o privado e que atuarão formulando políticas e defendendo interesses justamente dos atores sociais que perdem e ganham com os erros e acertos das interações do Brasil com o meio internacional. Que aprendam, pois, a ter em conta a magnitude desses interesses com o jovem clássico da historiografia brasileira de relações internacionais no qual se transformou o presente História da Política Exterior do Brasil.
Resenhista
Antônio Carlos Lessa
Referências desta Resenha
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; Editora da Universidade de Brasília, 2002. Resenha de: LESSA, Antônio Carlos. Revista Brasileira de Política Internacional, v.45, n.1, 2002. Acessar publicação original [DR]
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