O NOSSO CHAMADO
O nosso conhecimento da linguagem, sobretudo quanto ao modo como Wittgenstein (1979) a estudou desde Investigações filosóficas, responde por regras de usos das palavras que vão bem além da semântica. Dessa maneira a comunicação se apresenta como um jogo em uma dada comunidade linguística e constrói, inconscientemente da parte dos sujeitos falantes, sua gramática ou as regras de usos das palavras e dos sinais comunicativos. As regras, entretanto, não são fixas, estão em processo contínuo de alteração e ataques sem que nenhum sujeito determinado tome essa decisão (CARVALHO, 2006).
Ora, a expressão ‘História da loucura’, que nomeia o presente Dossiê da Revista Mosaico, é recente e tem regras de uso ainda em processo de invenção. A própria construção do Dossiê foi um laboratório dessa construção. Razão pela qual esta apresentação requer cuidados teóricos especiais. O primeiro desses cuidados é a retomada do texto de Chamada do Dossiê.
A Revista Mosaico está reunindo artigos para o Dossiê História da Loucura que tem por referência principal a obra homônima de Michel Foucault. O significado principal disso é que a loucura é, em primeiro lugar e acima de tudo, um acontecimento cultural pelo qual atravessam os vieses do poder. A loucura aconteceu, no Ocidente, como uma das principais maneiras de apartação dos sujeitos em apenas dois lados. Daí que a loucura seja um dos principais temas numa história dos modos de constituição da subjetividade. Mas é importante destacar que uma das principais heranças dessa obra de Foucault aconteceu com uma publicação de Robert Castel, A Ordem Psiquiátrica: a Idade de Ouro do Alienismo, seguida por uma obra em coautoria com Françoise Castel e Anne Lovell, Sociedade psiquiatrizada avançada, o modelo norte-americano. Nessas duas obras, o conceito de psiquiatrização da sociedade permite ver que a história da loucura da contemporaneidade alcança a sociedade global na mesma direção que a psiquiatria avança sobre o social, muito para além dos muros do hospício. Tomadas essas referências principais, estamos chamando textos que se ocupem não apenas com a história das instituições asilares, mas também da filosofia, dos saberes, da sociedade, da arte (a música, a literatura, a poesia, o cinema, a fotografia, a pintura, o teatro, a arquitetura etc) enquanto desafiados pela loucura. Temas muito caros seriam também a psiquiatrização da criança, sobretudo na e pela escola; e a psiquiatrização da adolescência, sobretudo pela socioeducação, pelo policiamento, pela institucionalização punitiva. Por fim, também merecem grande interesse as pesquisas atentas à história regional, na medida em que aterrissam a história da loucura nos problemas da sociedade local e na tal modernização de nossos territórios.
Em segundo lugar, se o leitor ainda não leu o sumário deste fascículo, pedimos-lhe que nos acompanhe quanto ao modo como agrupamos os artigos. Não quanto a uma simples listagem, mas pela explicitação das razões do agrupamento deles, que é indicativo do modo como propomos sua relação com a história da loucura.
Num primeiro bloco, reunimos os estudos ligados às representações literárias e cinematográficas da loucura. São os artigos Os Henriques de Lima Barreto e as experiências com a loucura: um destino inexorável? de Magali Gouveia Engel; Lima Barreto, o hospício e a loucura como lugar de fala de Sílvio Camargo; Essa estranha vizinhança da loucura com a literatura de Joyce Rodrigues Silva Gonçalves; e História e cinema: as representações da loucura no filme Loucura de amor (2021) de Luana Barbosa Miranda Souza, Lorena Danielle Santos. Agregamos a isso uma elaboração de representações da loucura na literatura filosófica, com o artigo A experiência trágica da loucura em Nietzsche e Foucault de Ronivaldo de Oliveira Rego Santos. Finalizamos o bloco com o artigo Veio o tempo em que a terra pergunta de Erica Franceschini e Luciano Bedin da Costa, que nos pareceu uma reelaboração filosófica a fazer tremer as representações da normalidade pelo próprio exercício de um discurso desterritorializado.
O segundo nucleamento foi o de textos que apertam o dedo nas dores surdas a que a loucura é submetida na sociedade brasileira atual. São textos em que os enfrentamentos políticos da nossa modernidade entre a loucura e a normalidade incidem sobre a construção da subjetividade, onde há uma luta aberta. Primeiro, um texto atinente ao trabalho da psicologia social nas bases das políticas públicas da assistência social: Corpos insubmissos: a produção do sujeito anormal e a resistência das juventudes nas instituições e periferias de Kellen Maria Sodré Machado e Lílian Rodrigues da Cruz. Depois, um artigo fortemente contextualizado na atualidade e sua relação com a loucura: A pandemia do desespero de Jorge Monteiro de Lima. Por fim, os artigos que refletem sobre o problema da lida escolar brasileira com a diferença: Sobre globalização, educação, inclusão. Possibilidades? de Adelmar Santos de Araújo e Deficiência intelectual: ecos da loucura que a escola inclusiva não apreende de Ana Beatriz Machado de Freitas Correio.
O terceiro bloco é aquele dos artigos que, à primeira vista, poderiam ser alocados numa chave geral de história regional ou de história das instituições. Porém, essa não é a melhor chave porque a história da loucura não consegue ser apenas uma história regional dado o caráter civilizacional da confrontação, assim como também não pode esgotar-se em uma história das instituições e absolutamente não se trata de uma história institucional. A loucura só pode ser aprisionada nos lugares e instituições porque a nossa civilização da mais extorsão do trabalho está, enquanto disciplinar e panóptica, em continuidade com o grande internamento geral da modernidade clássica. Quando a história da loucura atenta para as localidades, os territórios e as instituições, ela o faz para mostrar os atravessamentos nas concretudes dos territórios, dos muros, dos sujeitos. Assim, neste núcleo de artigos, começamos com os textos mais ligados ao posicionamento territorial da Revista Mosaico, o Estado de Goiás: A Reforma Psiquiátrica em Goiânia: discursos e poderes nas políticas de saúde mental de Larissa Arbués Carneiro e Eduardo Sugizaki; O leprosário de Anápolis: da origem ao fim do isolamento compulsório (1932-1986) Andreia Marquezan e Roseli Martins Tristão Maciel; Desvio social, obsessão ou doença mental? um estudo sobre a institucionalização da loucura em Jataí-GO; Rita de Cássia Andrade Martins e Adailton da Silva, Izabela Assis Rocha; O sanatório psiquiátrico da “Cidade Espírita” de Palmelo (Goiás, 1937-1970) de Leicy Francisca da Silva. Depois, avançamos para os artigos que dão conta de outras regiões do país: Os alienados da Santa Casa de Misericórdia e do Hospício Eduardo Ribeiro: exclusão e normatização do corpo e da cidade de Manaus (1880-1927) de Maria Carmo de Jesus; Suspiros no silêncio: loucura e experiência em Salvador (1912-1914) de Patrick Moraes Sepúlveda; Loucura, higiene mental e diagnóstico: uma breve história do Hospital de Alienados De Natal/RN (1930-1957) de Thaise Gabriella de Almeida Rodrigues.
O quarto e último agrupamento é o dos artigos que dizem respeito à história das representações da loucura nos saberes psiquiátrico e jurídico-legal: Uma breve história da histeria de Erik Dorff Schmitz; Louco ou criminoso: discursos sobre os marginalizados no I Congresso Médico de Pernambuco (1909) de Beatriz Chianca Macario e Vicentina Maria Ramires Borba; O louco interditado: o Dr. Nina Rodrigues e os embates entre o saber médico e o poder judiciário de Rafael Santana Bezerra; Investigando categorias: a loucura em dispositivos legais brasileiros de Bárbara Rodrigues do Espirito Santo.
A LOUCURA E A FUGA DO QUE É DADO
Não só pelo agrupamento dos textos, mas também pela formação e origem acadêmica dos autores e pelo conteúdo do que escreveram, o leitor irá logo inferir que a loucura não é propriamente um objeto de estudo como não é um tema unívoco. O que se agrupou aqui não é uma especialidade em uma disciplina, uma ciência ou saber determinado. Essa negatividade, entretanto, não é reativa. Antes, ela pode ser lida como o ativo construir de uma nova discursividade.
Em primeiro lugar, é uma discursividade na experiência e no empreendimento do desdisciplinar-se. Como a palavra não é usual, cumpre dizer-lhe a história. Depois da publicação de Vigiar e punir, ocorreu um encontro entre os historiadores e Michel Foucault. Era um evento mormente francês, mas também estava presente Carlo Ginzburg. Coube a um historiador da medicina, Jacques Leonard, fazer o papel de provocador do debate, fazendo-se porta-voz das insatisfações dos historiadores a propósito de Vigiar e punir. O texto da conferência responsiva de Foucault a J. Leonard foi a conferência intitulada A poeira e a nuvem. Ao encerrar sua fala, Foucault respondia à crítica de Leonard sobre a questão das relações entre verdade e realidade e o problema do que vem a ser ideologia, e finalizou com um convite aos historiadores: “Parece-me que é este conceito [ideologia] e sua possível utilização o que poderia permitir não um ‘encontro interdisciplinar’ entre ‘historiadores’ e ‘filósofos’, mas sim um trabalho comum de pessoas que procuram ‘desdisciplinar-se’.” Não só na língua francesa, também na nossa, ‘desdisciplinar-se’ é um neologismo e essa explicação preliminar pareceu necessária por pretendermos fazer dessa palavra uma chave de possível inteligibilidade do Dossiê História da Loucura da Revista Mosaico.
O mais provável é que nosso leitor familiarizado com Deleuze e Guattari (2010) associe ‘desdisciplinar-se’ com ‘desterritorialização’, e estará correto nisso. A loucura tem sido, desde o século XVII até nossos dias, o alvo principal tanto da disciplina quanto da territorialização. Os opositores políticos do absolutismo régio estiveram entre as figuras que foram alvo do grande internamento. Os opositores da nossa ditadura militar foram alvos da construção social da loucura (PAULA, 2021).
A conflagração entre loucura e razão que teve início nesse momento, mas ainda não teve fim, foi poeticamente expressa por Foucault nessa metáfora: a loucura é prisioneira da passagem numa encruzilhada infinita, no rio de mil braços, no mar de mil caminhos. Há um momento no capítulo Stultifera Navis em que Foucault (2004, p. 12) fala do costume, que vem de algum lugar do passado e ganha imagens na arte renascentista, de entregar os loucos da cidade às embarcações. É sobre o louco que a Renascença entrega às águas que o autor diz: “É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada” (id. ib.). É sobre o louco que se entrega à nau, “entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo”, que é possível declarar: “É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem” (id. ib.).
Essa narrativa sobre a trágica condição da loucura na Renascença, entretanto, cumpre o papel de olhar estendido sobre o caminho civilizacional do Ocidente. Se o louco “não pode e não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar da passagem. Ele é colocado no interior do exterior, e inversamente. Postura altamente simbólica e que permanecerá sem dúvida a sua até nossos dias…” (id. ib.).
Esse lugar trágico que nunca deixou de ser o da loucura, entretanto, foi capturado como lugar tragicômico quando dela se começa a constituir um saber. A comédia, Foucault (2004) a apresenta destilada no capítulo O nascimento do asilo ao traçar o paralelismo moral entre o Retiro quacre de Samuel Tuke e o Hospital Geral de Bicêtre, que a Revolução medicalizou pelas mãos de Philippe Pinel. Comédia simultânea da religião e da ciência, na medida em que ambas se rendem ao serviço de polícia, no sentido que os séculos XVII e XVIII vinham chamando de polícia à governança política da vida da população, a medizinische Polizei do cameralismo alemão (SUGIZAKI, 2020).
Trágico e cômico, o destino histórico da loucura, entretanto, resiste a tornar-se objeto de especialidade científica justamente porque nunca foi possível fazer da loucura um objeto puro, restrito e restritivo de saber; e isso por uma razão bem simples: um objeto exige o tracejado dos limites, mas, quanto à loucura, nossa civilização a pôs no limiar, na passagem, no interior do exterior.
Se os 21 artigos reunidos no presente Dossiê História da Loucura são tão díspares quanto às proveniências de formação de seus autores e a multiplicidade dos seus discursos, e não busque e não crie o interdisciplinar ou o transdisciplinar, é justamente porque a loucura, margeando, acontece em cada texto como comparecimento e desaparecimento. A história da loucura é um acontecimento tão desdisciplinar quanto a loucura vem resistindo historicamente à disciplinação e a territorialização forçadas. Daí que os textos aqui reunidos não se perfilem em uma especialidade.
É da totalidade do processo comunicativo aqui em jogo que se poderia levantar a hipótese: a loucura não é um tema e muito menos um objeto. Não se buscou também adquirir perspectivas do Mesmo. A loucura nunca foi mesmidade, mas fuga da identidade, mesmo que certos saberes venham fazendo muitos esforços para identificar, tipificar, classificar os loucos e a loucura, e vários dos artigos do Dossiê apresentam rasgos históricos disso.
Tudo isso nos faz pensar que talvez seja possível admitir que a história da loucura, para além de ser o nome de uma obra de Foucault, tenha se tornado um campo discursivo que essa obra de alguma forma inaugurou (SUGIZAKI, 2020b).
Referências
CARVALHO, Marcelo Silva de (2006). Imagem e dissolução. Entre as Investigações e Da certeza. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Tese).
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Ed. 34, 2010.
FOUCAULT, Michel. El polvo y la nube. In: La imposible prisión: debate con Michel Foucault. Barcelona: Editorial Anagrama, 1982, p. 37-53.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
PAULA, É. M. de. Os sons do silêncio. A construção do louco e da loucura. Caruaru: Mnemosine, 2021.
SUGIZAKI, E. Do nascimento da saúde pública à saúde coletiva: reativar a contra-história. Revista História: Debates e Tendências, v. 21, p.79 – 99, 2020. S
UGIZAKI, E. O campo discursivo da história da loucura. Expedições: teoria da história e historiografia, v.11, p. 1 – 18, 2020.
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção ‘Os pensadores’).
Organizadores
Eduardo Sugizaki – Docente no PPG em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Doutorado em História, Mestrado em Filosofia e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás; Doutorado em Filosofia pela Universidade da Picardia Júlio Verne (cotutela); Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisa La Folie – História da Loucura. E-mail: eduardosugizaki@gmail.com
Eder Mendes de Paula – Graduado em História pela Universidade Estadual de Goiás, Mestre (2011) e Doutor (2016) pela mesma instituição. Atualmente, professor efetivo da Universidade Federal de Jataí. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Nise da Silveira. E-mail: edermendes@ufg.br
Referências desta apresentação
SUGIZAKI, Eduardo; PAULA, Eder Mendes de. Desdisciplinar-se pela História da Loucura. Revista Mosaico. Goiânia, v. 14, n.2, p. 3-7, 2021. Acessar publicação original [DR]
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