HISTÓRIA DA JUSTIÇA: Das independências aos Estados americanos | Outros Tempos | 2022

Com toda a evidência do Poder Judicial na regulação da política brasileira atual, a discussão sobre justiça, judiciário e ordem social ganhou grande importância e evidência. A historiografia oferece ao assunto instrumental heurístico de grande valia. Destacam-se, especialmente, as investigações sobre a organização das justiças durante as revoluções atlânticas quando as antigas colônias na América iniciaram o processo de autonomia política. Embora o liberalismo consista ainda em uma das chaves interpretativas mais importantes dos estudos sobre o Oitocentos, a renovação ocorreu no campo de pesquisas que recusaram a inadequação das sociedades ibero-americanas ao novo ideário. A mudança conceitual preceitua, no lugar do “liberalismo na América”, “a versão americana do liberalismo em escala atlântica” (PAQUETTE, 2009).

Da nova concepção teórica, verificou-se o “tournant jurique” nos estudos sobre os espaços políticos de construção dos estados nacionais da América (LEMPÉRIÈRE, 2017). As fronteiras entre a história jurídica e a história política estreitaram-se na abordagem dos movimentos políticos de formação da administração pública, do constitucionalismo, da cidadania, entre tantos outros temas que iluminam de modo específico os liberalismos e a formação dos estados nacionais nas Américas.

Neste dossiê, pretendeu-se apresentar ao público o desenvolvimento e a articulação de pesquisas sobre a hierarquização da justiça por meio da estruturação de tribunais e procedimentos judiciais no contexto de transformações políticas. O debate, portanto, reveste-se do caráter interdisciplinar da Outros Tempos, periódico aberto a contribuições de diferentes especialidades das ciências humanas e sociais. Desde 2004, portanto há quase duas décadas, a Outros Tempos constituiu-se como arena de debates, que, do Maranhão, encarna a dimensão heterogênea dos “arranjos políticos” nas diferentes unidades políticas do país (GOUVÊA, 2008).

Os artigos submetidos e aprovados neste dossiê oferecem interpretações desafiadoras sobre a ordem jurídica em meio às transformações políticas. O acolhimento da proposta das coordenadoras pelos autores mostra o vigor do campo e as abordagens possíveis. Os objetos de investigação discutidos consistem na evidenciação do papel de juízes eleitos, promotores de Justiça; corpos policiais provinciais; júri e ouvidoria.

É significativa a escolha dos autores por problematizar o papel das autoridades judiciais na resolução de conflitos políticos e sociais. O estudo sobre o papel de juízes de paz e do júri provocou inquirições acerca da organização judiciária brasileira ao longo do século XIX. E mais especificamente, os historiadores interessaram-se pelo judiciário como lócus de arbitramento das dissensões do Estado, inclusive, os conflitos entre as soluções judiciais e as deliberações políticas de caráter administrativo.

Confirmou-se, com efeito, o interesse de investigação da participação dos cidadãos na administração da justiça (CARVALHO, 1996). Instituída na Constituição de 1824, a magistratura leiga ganhou delineamento eleitoral em 1827 e avantajado poder de ordenação social no Código de Processo Criminal de 1832. No artigo intitulado Um campo de conflitos: o presidente da província e os juízes de paz na investigação sobre a Rusga em Mato Grosso, Patrícia Figueiredo Aguiar problematizou rebelião ainda pouco conhecida na historiografia, mas com alcance para a reflexão do papel das justiças de paz diante de desinteligências políticas no Império, especialmente durante a Regência. A “Rusga do Mato Grosso” eclodiu em Cuiabá, capital da província, na noite de 30 de maio de 1834, com violências, saques e mortes. A conflagração colocou em questão não apenas os problemas de caráter local, mas as dissensões internas da elite regional e também o desenho institucional do Estado brasileiro.

Em relevante pesquisa documental, Patrícia Aguiar discute a complexa repressão ao movimento por autoridades locais sob constante pressão da presidência da província. A tensão resultou no aprisionamento de cinco líderes encaminhados ao Rio de Janeiro para julgamento de supostos crimes de revolta. O envolvimento de um deputado obrigou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça. A investigação claramente demonstra a reserva de poder dos juízes de paz, que podiam contornar as ordens de repressão de revoltas e diluir a força dos dirigentes imperiais na prevenção de sedições. Como a Cabanagem, a Farroupilha ou a Sabinada, os juizados de paz não se transformaram em porta-vozes da elite imperial na repressão de movimentos locais. A autora não sugere, porém, conivência ou simpatia dos juízes leigos com agitações, mas esclarece a posição frágil e dependente dos presidentes de província na direção da disciplina social em relação às forças da ordem investidas de ampla autonomia, como era o caso dos juízes dos distritos de paz, chefes de quarteirão e guardas municipais.

Eduardo da Silva Júnior, no artigo Sobre as dúvidas quanto à inteligência da palavra – magistrado: os enquadramentos dos juízes de paz na cultura jurídica do Brasil Império (1827-1841), reflete, igualmente, sobre o enquadramento dos juizados de paz no ordenamento jurídico brasileiro. Ele explora as divergências sobre a natureza da nova magistratura a fim de iluminar os objetivos da elite imperial em relação ao papel da Justiça. O autor relaciona a instituição de juízes eleitos localmente com a afirmação do vocabulário de autonomia política em oposição à presumida “opressão dos povos” por “governos arbitrários”. Vinculados e saídos das elites locais, os juízes de paz representaram, consoante Silva Júnior, o artefato de oposição à antiga magistratura togada associada ao “despotismo” e à “violação de direitos”.

Ainda que exigidos os mesmos atributos de escolha de eleitores, o juiz de paz transformou-se na primeira autoridade judiciária eleita localmente. Silva Júnior, porém, não se restringiu à instalação dos juizados de paz, pois verificou certa inovação institucional, que deu aos juízes regimento eleitoral idêntico ao dos vereadores, escolhidos diretamente em assembleias primárias por votantes que incluíam homens libertos, posseiros, barbeiros, enfim, gente que cumpria requisitos mínimos para votar. Da exaltação dos juízes eleitos contra os governos “arbitrários”, a experiência e a prática das justiças de paz suscitaram redirecionamentos que transformaram a instituição em quase uma quimera do previsto nas primeiras décadas do Império.

O artigo de Patrícia Aguiar articula-se às conclusões de Eduardo Silva Júnior sobre o lugar dos juízes de paz na construção da ordem no país. O autor demonstra a crescente preocupação com o controle dos procedimentos dos juízes de paz, especialmente na investigação das desordens políticas. Como bem identificou o autor, o parlamento foi a arena em que a crítica aos juízes de paz mais se avolumou e ensejou diversas reformas para a contenção de autoridades que passaram ao lugar de “despóticos”, incompetentes e inúteis.

No artigo João Soares Lisboa contra a Bonifácia: a experiência hispano-americana durante o exílio contra o “Despotismo Togal”, Paula Ferreira Caricchio Botafogo articula o imaginário liberal com o lugar das magistraturas liberais na oposição aos juízos tradicionais. A autora discute, contudo, outro artefato liberal instituído nos primeiros anos do Império sob o ímpeto do combate ao “despotismo” e ao “arbítrio” – o tribunal do júri. Com visada inovadora, o artigo aborda as estratégias de defesa do redator Correio do Rio de Janeiro no processo conhecido como Bonifácia. A investigação constata a circulação não apenas de conceitos liberais em nível atlântico como em trânsito na América, rejeitando a natureza insular da independência brasileira.

Em número extraordinário do Correio, de 24 de maio de 1823, a historiadora identifica a estratégia de homologia, formulada por Soares Lisboa, entre imprensa, como “Supremo Tribunal da opinião pública”, e júri, como tribunal popular. O redator defendia enfaticamente a participação dos cidadãos em instituições formais e judiciais e associava os conceitos de “despotismo” e “arbitrariedade” aos juízes togados. Para o redator, apenas os jurados possuíam a virtude necessária para o julgamento dos acusados por “abuso de liberdade de imprensa”.

No artigo Pelo controle da força: administração das polícias(s) em São Paulo, Bruna Prudêncio Teixeira analisa a alteração que coloca o eixo da ordem social sob o escrutínio do poder central do Império brasileiro. A autora apresenta o caráter paradoxal da reorganização dos corpos policiais em substituição aos antigos corpos de milícias, guardas municipais e de ordenanças. Prevista a transição inicial apenas com a criação da Guarda Nacional, conforme lei de 18 de agosto de 1831, o governo instituiu a atividade policial, em 10 de outubro de 1831, com a exclusiva função de tranquilidade pública e auxiliar da justiça, com direito a vencimentos ou ordenados. A proposta de criação das guardas devia partir, de acordo com a normativa, dos presidentes em reunião dos conselhos provinciais. Em 7 de outubro de 1833, no entanto, o Decreto n. 55 atrelou a nova força policial à iniciativa das câmaras e a subordinou aos juizados de paz, dando-lhe contornos de autoridade sob tutela das localidades. Assim, a força policial emergia nos quadros do Estado brasileiro, nos anos de 1830, com forte inclinação liberal e localista.

Bruna Prudêncio Teixeira, porém, apresenta o redirecionamento proporcionado pelo Ato Adicional quando autorizou a fixação de força policial pelas recém-criadas Assembleias Provinciais. Surgiram, assim, duas estruturas paralelas de força policial, uma sob tutela provincial e outra da municipalidade. Enquanto a força policial provincial vinculava-se mais fortemente às autoridades imperiais, a municipal mantinha-se sob influência direta das autoridades locais. A investigação da historiadora atesta a tentativa permanente da elite provincial em interferir no destino das guardas policiais municipais, mesmo que instituísse guarda própria. O artigo dedica-se ao estudo de caso da província de São Paulo, onde diversos expedientes legislativos resultaram na intervenção e controle das guardas municipais, despindo as localidades da antiga autonomia camarária e da independência dos distritos de paz.

Coincidentemente, Patrícia Aguiar, Eduardo Silva Júnior, Paula Botafogo e Bruna Teixeira discutem a preservação da unidade nacional como prevenção da “anarquia” e do separatismo, mesmo ao custo dos direitos civis, das liberdades locais e da justiça social (BARMAN; BARMAN, 1976, p. 435). É o ponto de viragem que, nas palavras de Bernardo Pereira de Vasconcellos, representou o “regresso” com clara orientação conservadora. Neste ponto, apostou-se na reorganização institucional de caráter centralizador em que o judiciário se converteu no principal elemento catalisador da política piramidal administrativa.

Em marcha, a centralização da administração judiciária deu-se no cerceamento do corpo de policiais a serviço dos juízes de paz até que a reforma de 1841 solapou completamente a autoridade local, entregando os distritos a servidores submetidos diretamente ao Chefe de Polícia, cujo titular era nomeado pelos ministros da justiça. Completava-se, assim, a nova hierarquia de disciplina social do país, que esvaziou de poder os magistrados eleitos localmente e entregou à magistratura togada a cimeira da nova ordem social.

Luiz Mário Dantas Burity, no artigo Um magistrado na Primeira República: José Américo de Almeida e os esforços jurídicos, intelectuais e políticos para reformar o poder judiciário na Paraíba, oferece a oportunidade de reflexão sobre a proposição de reforma judiciária encetada na instauração da República. Focando na trajetória do jurista José Américo de Almeida, o artigo discute a participação do jurista como divulgador da cultura legal positivista na Paraíba. Para o autor, portanto, a justiça centrada na lei constituía-se em processo ainda incompleto na Primeira República, que merecia de intelectuais como José Américo a organização de veículos periódicos para a difusão de regras positivistas de interpretação jurídica.

Devido à pujança das análises historiográficas sobre processos judiciais e direitos nas duas últimas décadas, não poderia faltar a este dossiê a perspectiva de gênero e afro brasileira. Os artigos A posse da liberdade nas ações cíveis de escravos e libertos na justiça em São Paulo, século XVIII, de autoria de Felipe Garcia de Oliveira, e “Não valia a pena nos incomodar por tão pouco”: os assassinatos de mulheres na Primeira República percebidos como crimes “passionais”, de Ângela Maria Macedo Oliveira, oferecem interpretação da diversidade nas análises sobre as justiças.

Felipe Garcia de Oliveira discute os procedimentos judiciais de reescravização de afrodescendentes em São Paulo no século XVIII. Interessou ao historiador discutir o argumento de posse da liberdade mobilizado por libertos e escravos nas instâncias judiciais para se defenderem do retorno ao cativeiro. Destacam-se, igualmente, a inclusão dos atores jurídicos para a defesa da vida em liberdade como a formalização do direito nos tribunais. Dentre as alegações, a posse emerge como conceito, embora disciplinado nas normativas lusitanas, com conteúdo forjado no cotidiano de embates judiciais na sociedade escravista americana.

Ângela Oliveira, por sua vez, avalia o papel da justiça com a diferença de quase um século e sob o viés do gênero. Importa demarcar a afinidade do tema com a decisão do Supremo Tribunal Federal, neste ano de 2021, que julgou inconstitucional a tese da legítima defesa da honra por contraditar princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Outro destaque pode ser aferido no artigo com relação à conformação do júri popular aos crimes contra a vida, bem diferente do congênere no Império, quando se tentou entregar uma gama ampliada de crimes à decisão dos magistrados de fatos. O artigo avalia, assim, a instituição do júri na legitimação da violência contra as mulheres por meio da aceitação da tese de excludente de ilicitude nos casos de réu e vítima envolvidos por enlaces matrimoniais. A crítica da autora à instituição do jurado demonstra a insuficiência dos conceitos de liberdade e igualdade projetados pelo ideal liberal, quando não se considera a diversidade de gênero ou a desigualdade social.

Organizado por seções, neste número da Outros Tempos, além de artigos livres e temáticos, intitulado dossiê, consta o estudo de caso sobre a (re)criação da Ouvidoria do Espírito Santo em 1732, em que Getulio Marcos Pereira Neves apresenta a transcrição do registro do evento e a análise em conjunto com dois outros documentos já conhecidos. Inclui- se, ainda, a entrevista realizada por Renata Fernandes Silva ao professor catedrático em História do Direito da Universidade del Pais Vasco, Dr. Carlos Acosta Garriga, cuja trajetória acadêmica comporta longa reflexão sobre a temática explorada neste número. Por meio das diferentes seções, a expectativa do periódico concentrou-se na motivação de diálogo transdisciplinar sobre História das Justiças.

Referências

BARMAN, Roderick; BARMAN Jean. The role of the Law Graduate in the political elite of imperial Brazil. Journal of Interamerican Studies and World Affairs, Miami, v. 18, n. 4, p. 423-450, 1976. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/174990. Acesso em: 2 dez. 2021.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: tipos e percursos. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 18, p. 337–360, 1996. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2029/1168. Acesso em: 2 dez. 2021.

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias: Rio de Janeiro (1822-1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

LEMPÉRIÈRE, Annick. Constitution, juriction, codification: le Libéralisme HispanoAméricain au miroir du Droit.” Almanack, Guarulhos, n. 15, p. 1–43, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/alm/a/WzYqPMvfmJJZQgmGH88pJrF/?lang=fr. Acesso em: 2 dez. 2021.

PAQUETTE, Gabriel. Enlightened Reform in Southern Europe and Its Atlantic Colonies, C. 1750-1830. Burlington, EUA: Ashgate, 2009. Disponível em: https://www.taylorfrancis.com/books/edit/10.4324/9781315579825/enlightened-reformsouthern-europe-atlantic-colonies-1750%E2%80%931830-gabriel-paquette Acesso em: 2 dez. 2021.

Organizadores

Adriana Pereira Campos – Docente permanente dos Programas de Pós-Graduação em História e Direito Processual da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora produtividade do CNPq. Pesquisadora vinculada por meio de projeto de pesquisa à Fundação de Amparo à Pesquisa e à Inovação do Espírito Santo – FAPES Vitória/Espírito Santo/Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2563-4021  E-mail: acampos.vix@gmail.com

Andréa Slemian – Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo e docente colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora produtividade do CNPq. Pesquisadora vinculada por meio de projeto de pesquisa à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP Guarulhos/São Paulo/Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2745-7073  E-mail: andrea.slemian@gmail.com

Referências desta apresentação

CAMPOS, Adriana Pereira; SLEMIAN, Andréa. HISTÓRIA DAS JUSTIÇAS: os paradoxos da administração e da disciplina social da América portuguesa ao Brasil. Outros Tempos, v. 19, n. 33, p. 139-145, 2022. Acessar publicação original [DR]

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