Decolonizar a historiografia medieval: Introdução à ‘História da Historiografia Medieval – Novas Abordagens’
“Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião.”
Hans-Georg Gadamer, 1963
“Há muito tempo acredito que as formas medievais e pós-modernas de consciência histórica são similares, de modo que a narrativa fundamental da ruptura modernista com o passado medieval encontra pouco crédito e que, em realidade, é o modernismo que representa o momento estranho da concepção ocidental de história”.
Gabrielle Spiegel, 2016
“Os passados subalternos são indicações dessa fronteira [temporal]. Com eles atingimos os limites do discurso da história. A razão de ser disto reside, como afirmei, no facto de os passados subalternos não fornecerem ao historiador um princípio de narração que possa ser racionalmente defendido na vida pública moderna”
Dipesh Chakrabarty, 2000
Nossa relação com o período medieval é ambígua. Por vezes, a Idade Média é negada, distante e estrangeira. Por outras, é muito próxima, senão presente, um passado vivo que nunca se furta aos mais criativos usos. Dentro dessa oscilação entre identidade e alteridade, nesse jogo entre a imagem de uma “origem” e o papel de um “outro ausente”, alguns desejam conhecê-la, outros querem sê-la (SPIEGEL 1997, p. 59; ANKERSMIT 2005, p. 327; CHAKRABARTY 2005, p. 227). O passado, afinal, não costuma aflorar sem a agência humana. Para tanto, é preciso que se organize, na esteira das políticas do tempo, toda uma série de “práticas de sincronização” (JORDHEIM 2014). As mais vulgares dessas práticas utilizam o procedimento clássico dos paralelos: vociferam Deus Vult e inundam a internet com releituras da “descoberta” do Brasil no âmbito de uma “Última Cruzada” (PACHÁ 2019; LANZIERI JÚNIOR 2019; COELHO; BELCHIOR 2020). As mais sofisticadas argumentam sobre a permanência de estruturas de longa duração, relegando-nos, ainda assim, à condição de débito eterno para com a Europa. Outras perspectivas abrem contra as primeiras um combate de morte, e em seu lugar performam os símbolos dos excluídos, das bruxas em luta e dos camponeses em jacquerie. Nelas, alegorias mobilizadas pelos feminismos decoloniais chegam a questionar as consequências políticas da própria sincronização (Cf. OLIVEIRA 2020). No centro dessas tensões, e tentando atravessar tais fenômenos como problemas históricos, estão os dois sentidos tradicionalmente atribuídos ao termo historiografia: o estudo da escrita da história pelos medievais, interessado pela pesquisa de um conjunto limitado de fontes narrativas que permitam a problematização de uma “operação historiográfica” êmica; e os estudos historiográficos que discutem modelos interpretativos, fazem análises de recepções, identificam apropriações, registram efeitos e simultaneidades entre tempos heterogêneos, chegando a denunciar usos e abusos ético-políticos que da Idade Média são feitos desde o mundo contemporâneo (GUENÉE 1980, p. 11-12). Em suma, continuamos a encontrar o presente no passado e o passado no presente.
As contribuições apresentadas neste número da revista História da Historiografia evidenciam e entrelaçam esses dois planos da experiência do tempo.
Em nosso país, a história da historiografia, como subdisciplina acadêmica, preocupou-se, sobretudo, com a formação da historiografia moderna. Sua vertiginosa ascensão foi acompanhada por um olhar que não raramente deslizou dos antigos aos modernos, deixando de lembrar que a querela, ela mesma, nasceu de um topos medieval (MATEUS 2013). Isso talvez tenha ocorrido porque a “memória disciplinar” (GUIMARÃES 2003; TURIN 2013) encontrou dificuldades em acessar correlatos da escrita da história, para não falar de figurações do historiador, no período medieval. A sensibilidade histórica moderna foi alimentada por uma epistemologia realista, a qual tendia a julgar a verdade do conhecimento desde a eficiência técnica de sua enunciação. Assim, passou a limitar o depósito da fé em “duas fontes possíveis: a memória e a evidência” (DE CERTEAU 1981, p. 370). Criou um código para o qual muito da escrita da história medieval encontraria difícil tradução. Caracterizados pela convergência entre o que iríamos chamar de realidade e ficção, os gêneros literários compósitos que davam conta de narrar os acontecimentos na Idade Média seriam recebidos com crescente estranhamento na medida em que a História se disciplinava (AURELL 2013, p. 97-106). Investidos por uma tradição compilatória alheia às características da função autoral contemporânea (CHENU 1927 p. 81-86; TEEUWEN 2003, p. 222-223; AURELL 2012, p. 155-175), aliados ainda a uma particular exemplaridade desde a qual o passado administrava relação tipológica direta com os eventos contemporâneos (SPIEGEL 1997, p. 92), os modos de fazer crer próprios à historiografia medieval receberam da modernidade global os signos nada provectos de uma identidade exótica, confusa e irracional.
Consequentemente, não é raro que o problema da experiência do tempo na Idade Média seja até hoje “resolvido” por algumas menções a Agostinho. Por sua vez, se a história da historiografia (quase) alienou a Idade Média, dada a forma particular como os domínios da História se organizam no Brasil, os estudos medievais terminaram por se deslocar parcialmente do diálogo com abordagens teoricamente orientadas. A obscura relação que passou a cercar nossas percepções a respeito da historiografia medieval é testemunha desse não diálogo que tornou ainda mais atrativo a uma subdisciplina centrada na modernidade operar graves esquecimentos. Raramente lembramos que Hayden White começou sua carreira como medievalista (PAUL 2008). É conveniente esquecer que a história dos conceitos surge desde a necessidade de imprimir fidelidade ao exame dos universos conceituais medievais (BRUNNER 1992). Apenas muito recentemente assistimos ao primeiro comentário nacional sobre o quanto o desdobramento da virada linguística em uma história da historiografia teoricamente orientada, atenta às metanarrativas e ao exame de unidades de sentido metonímicas, deve à análise dos complexos modos de significação elaborados nas crônicas e histórias eclesiásticas (ANHEZINI 2019; Cf. SPIEGEL 1997). Deixamos de lado que os estudos de performance, saudados como uma alternativa ao esgotamento dessa mesma virada linguística (DOMANSKA 2011), têm origens ligadas à análise de sagas islandesas (TURNER 1971).
Além das menções supracitadas, recordemos os nomes mais presentes de Marc Bloch e Jacques Le Goff, mestres de uma nova história, para formalizar um argumento de partida: o período medieval atuou no último século como um dos grandes laboratórios para a inovação teórico-metodológica na escrita da história. Chegou a ser saudado como uma espécie de “carrochefe da historiografia contemporânea”, pois tomou a frente propondo temas, métodos, conceitos e diálogos com outras ciências humanas (FRANCO JÚNIOR 2001, p. 14). Sustentamos, em contrapartida, que existe muito a resgatar e construir em um diálogo mutuamente frutífero entre os estudos medievais e a história da historiografia. Os artigos aqui reunidos são evidência de que a criatividade e a diversidade dos estudos de história da historiografia medieval nunca foram tão robustas. Neles, abordagens teoricamente orientadas convivem com estudos de profunda erudição e análise das fontes. Em todos observamos o esforço em tensionar os limites do conceito de história, de forma a abarcar expressões de experiências do tempo não redutíveis às sensibilidades nem instruídas pelos conceitoschave da modernidade. Ademais, o conjunto dos artigos aqui apresentados fazem referência, em sua constituição, a algumas das características da operação historiográfica na Idade Média, as quais foram apresentadas através de publicações de autores que são referência neste campo de estudos (AURELL 2005; AURELL 2006; AURELL 2013, p. 95-142; AURELL 2016; SPIEGEL 1975; SPIEGEL 1983; SPIEGEL 1990; SPIEGEL 1995).
As contribuições apresentadas ultrapassam, ainda, os três momentos da sensibilidade histórica expressos nas epígrafes que selecionamos. Com Gadamer, assistimos à captura precisa da experiência moderna, captura que ocorre no instante em que essa mesma tradição ocidental, no pós-guerra, passa a ser questionada, possibilitando que a consciência histórica pudesse dimensionar os efeitos do passado. Com Gabrielle Spiegel, o relato de um momento pós-moderno faz a historiadora ocidental se reconhecer no espelho de um passado cujo reflexo fora ofuscado pela luz da razão instrumental. Por fim, com Chakrabarty, em capítulo que dialoga diretamente com a imaginação histórica medieval e seus efeitos no presente, temos o reconhecimento do outro com o outro, a solidariedade entre passados subalternos, do Sul Global com a Europa préiluminista. Esse é nosso segundo argumento: asserção que se abre ao momento no qual nos encontramos, um momento no qual demandas sociais pela decolonização das formas de pensar são exacerbadas como efeito de políticas de ações afirmativas nas universidades brasileiras. Um momento no qual pululam propostas de uma “história (in)disciplinada” (AVILA; NICOLAZZI; TURIN 2019), no qual abordagens que nos preparam para um “futuro sem precedentes” (SIMON 2019) parecem cada vez mais urgentes. Como é urgente, também, que valorizemos não apenas a representatividade espacial da América Latina nas narrativas cada vez mais globais da história, mas, igualmente, sua projeção teórica e cognitiva sobre outros espaços, manifesta pela aplicação de inovações metodológicas e conceituais desenvolvidas desde o continente sul-americano (GRECCO; SCHUSTER 2020, 429). É desse modo que o potencial disruptivo de uma historiografia medieval analisada desde o Sul Global tem em disputar, decolonizar e dissociar o passado dos medievais de identidades atualmente hegemônicas tornase sedutor demais para ser ignorado (Cf. SILVEIRA 2019).
Hoje entendemos os estudos medievais como uma heterologia. Sabemos que, nesse período, a Europa era uma das mais remotas províncias do mundo. E que as histórias, crônicas, livros de feitos e genealogias que desse tempo restaram seriam investidos, ao longo do processo de esclarecimento, do estatuto de registros subalternos, expulsos para os “limites do discurso da história”, incapazes como eram de oferecer à ciência da história qualquer “princípio de narração que possa ser racionalmente defendido na vida pública moderna” (CHAKRABARTY 2005, p. 227). Reconhecemos que a historiografia medieval é o grande Outro da historiografia disciplinada. É objetivo deste dossiê, no entanto, sugerir que esse fato, paradoxalmente, talvez nos coloque muito próximo dela (Cf. SPIEGEL 2016, p. 21; AURELL 2016, p. 143-156). Pois antropologizar e historicizar, para seguir o argumento de Chakrabarty, é apenas metade do caminho. De fato, para exercitar tais operações, precisamos antes reconhecer que passados subalternos – como aqueles representados pela escrita da história medieval – nos oferecem possibilidades à compreensão de nosso próprio presente.
O questionamento da identidade da escrita da história medieval como negação determinada da historiografia disciplinar é precisamente o tema abordado pelo artigo de Rodrigo Prates de Andrade. Em diálogo com Jean-Claude Schmitt, Justin Lake, Bernard Guenée e Alain Guerreau, o autor assinala as dificuldades que categorias cognitivas modernas têm em compreender a Idade Média. A partir daí, o texto estrutura seus argumentos desde o chamado “giro antropológico” nos estudos medievais. Esse deslocamento permite ao autor identificar, de forma experimental, o pré-moderno com o não ocidental. O resultado é a formulação de um argumento que entende o eurocentrismo não apenas como uma questão de posicionalidade espacial. Categoria espaço-temporal, ele configura, para além da representatividade, formas de conhecer e produzir mundos. Dessa maneira, a questão central a respeito da possibilidade de uma história da historiografia medieval se volta rumo ao estudo dos modos de historicização próprios às tradições medievais de raciocínio (SETH 2013). Modos plurais que – em diálogo entre a história do conceito de história com o pensamento pós-colonial, Prates considera não redutíveis às expectativas estabelecidas pela sensibilidade histórica moderna.
O debate sobre a pertinência de reunirmos certos gêneros literários medievais sob a nomenclatura historiográfica aparece em outra contribuição do presente dossiê, dessa vez aplicada a um estudo de caso. O artigo de Rodrigo Bonaldo problematiza o conceito de história na obra de Alfonso X, em virtude das apresentações corporais das histórias nas cortes do Rei Sábio. Para isso, mobiliza um diálogo entre a história dos conceitos e os estudos de performance, cruzando a análise das Estorias alfonsinas com a leitura de fontes que legislavam sobre a maneira correta de apresentá-las. O autor compreende a noção de performance em dois planos: no âmbito microanalítico, remete-a à tensão criativa entre rituais e jogos cortesãos; no âmbito macropolítico, faz menção ao processo de guerra civil que se estabelece ao longo do recorte temporal assinalado (1272-1284). A partir da noção de “drama social”, emprestada da antropologia, Bonaldo entende as reuniões bianuais das cortes como momentos liminares dentro dos quais a performance das Estorias era projetada como veículo de conciliação simbólico-afetiva e reestruturação da ordem do tempo. Constituindo um clima de imersão e de produção de efeitos de presença do passado, essas performances abrem-se à disputa e negociação de sentidos conceituais estratificados em tempos “não simultâneos”. Essa tarefa de sincronização do não simultâneo ajuda não apenas a compreender a racionalidade do “anacronismo” das fontes como também indica que – nesses momentos liminares de mudança social, operam-se igualmente mudanças conceituais que alimentavam cognitivamente a realidade política. Se o conceito de história não se fazia central na Idade Média, o artigo termina sugerindo que o papel político da contagem das histórias talvez ainda esteja sendo subestimado pela história da historiografia.
Tão longe, tão perto: o contraste entre perspectivas que se aproximam e se afastam do período medieval talvez seja tão antigo quanto a invenção, ainda no século XIV, do próprio conceito de Idade Média. É esse o percurso crítico seguido por Maria Eugenia Bertarelli e Clínio de Oliveira Amaral. Seu texto reconhece essas duas formas de se abordar o passado medieval, mas vai além, assumindo uma postura crítica à tese da “longa Idade Média” importada às américas através de trabalhos recentes. Segundo o artigo, a transposição do argumento de uma longa Idade Média para nosso continente teria como epifenômeno ressaltar a permanência de estruturas europeias em nossa identidade. Isso tornaria as sociedades americanas herdeiras incontestes do Velho Mundo. Promoveria uma espécie de colonização do imaginário por meio de representações do passado em um momento no qual grupos de ódio usam politicamente a Idade Média nesse mesmo sentido. Seguindo a chamada “teoria do Medievalismo”, Bertarelli e Amaral propõem, em compensação, não o estudo de “reminiscências medievais”, mas a análise de processos de invenção, recriação e apropriação do passado que tem nas disputas ideológicas do tempo presente seu referente mais concreto. O objetivo do artigo não poderia ser mais pertinente a este dossiê: decolonizar a Idade Média.
Com a contribuição de Igor Salomão Teixeira, passamos da análise de passados presentes ao exame erudito de fontes medievais desde suas características historiográficas. O artigo apresenta Jacopo Gaetano Stefaneschi (1260-1343) como um “cardeal-historiador” e analisa os textos De centesimo seu Iubileo anno liber e o Liber Cerimoniarum Curiae Romane. A partir do registro do Jubileu de 1300 e da descrição de cerimoniais litúrgicos, Teixeira questiona os métodos do cardeal. Entende-os a partir da inserção de Stefaneschi nas redes de sociabilidade da corte papal, também com a familia cardinalis, relações que abriam ao clérigo a possibilidade de ver por si mesmo os acontecimentos que registrava. Ao inserir a pesquisa dentro do universo de estudos recentes, Teixeira não deixa de ressaltar sua originalidade: mergulhar na obra de um personagem cuja produção textual se destacava em comparação com outros cardeais de sua época (em sua excepcionalidade como historiador) é oferecer luz a respeito da atuação dos cardeais em um momento chave da história da Igreja. Mas pensar as fontes como historiografia traz desafios que começam aquém da figuração do historiador. A escrita da história na Idade Média, alerta Igor Salomão Teixeira, é difusa, espalhada por diferentes gêneros, o que nos traz a necessidade de atentar a um amplo universo de textos e de práticas.
A família dos cardeais, comunidade doméstica que faz companhia aos papas, mais do que qualquer família, é fundamentalmente patriarcal. Pensar modulações da escrita feminina da história dispersa nos gêneros literários medievais, em contrapartida, é o desafio encarado por André Luis Pereira Miatello. Com uma prosa leve e ritmada, o autor ressalta o bom número de escritoras de história no período, ao lado da presença de scriptoria e centros de circulação livreira nos conventos. Seu objeto, no entanto, é mais específico e original. Busca estudar, a partir de duas obras, a Vida de la Benaurada Sancta Doucelina mayre de las Donnas de Robaut e o Liber Lelle, de que maneira a linguagem mística instigou novas formas de narração histórica. Mais do que isso: apresenta evidências de como a mística e sua escrita foram veículos do protagonismo feminino no mundo das letras ocidentais a partir do século XIII. Miatello destaca as relações entre os gêneros biográficos e autobiográficos que marcam suas duas fontes e os critérios de veracidade da historiografia, demonstrando, a partir das trocas com os relatos místicos, o caráter compósito, diversificado e inovador da escrita da história medieval e de suas autoras.
É possível que algumas generalizações didáticas tenham um papel silenciador na história da historiografia. A história entre os gregos como organizada em ciclos; a historiografia romana limitada ao topos de mestra da vida; a oitocentista como unicamente centrada na nação: essas linhas gerais são responsáveis por constituir um padrão que, como se sabe, não corresponde à riqueza das fontes. No caso do período medieval, limitarmos a história à história eclesiástica implica praticar o esquecimento de documentos de potencial interesse à teoria da história. É partindo dessa crítica que Dominique Santos resgata a tradição Seanchas, conjunto de narrativas fixadas no início do período medieval e transmitidas aos compiladores das histórias da Irlanda do século VII. Santos analisa duas obras contemporâneas, a Vita Sanctii Patricii e a Collectanea, tratando seus autores, ou Seanchaidhean, como historiadores de pleno direito. Seus conhecimentos, no entanto, eram atravessados por toda uma gama heterogênea de saberes, das leis às genealogias, da poesia à hagiografia, passando pelos anais e registros paroquiais. A contribuição problematiza as estratégias de historicização dessa tradição e, buscando preservá-las de juízos modernos, compreende a coerência de seus modos de pensar. Dominique Santos, por fim, advoga que a incorporação da tradição Seanchas nos cânones da história da historiografia pode nos ajudar a dialogar melhor com outras formas de escrita da história pré-modernas.
O último artigo que apresentamos mergulha na compreensão de uma racionalidade que combinava expectativas escatológicas, alegoria e filosofia natural. Dmitri Starostin é responsável por evidenciar como as políticas do tempo histórico nas cortes carolíngias dependiam da execução conjunta da exegese bíblica com observações celestes. Sua fonte principal é a Vita Caroli Magni de Eginhardo, entendida em diálogo com a tradição das histórias universais. Starostin desenvolve o sofisticado argumento segundo o qual o biógrafo de Carlos Magno foi capaz de aproximar o “tempo da criação”, representado pelo passado profundo do Antigo Testamento, com o “tempo de hoje” através de uma ciência exegética que combinava o cálculo da história sagrada com a manipulação do simbolismo escatológico. Segundo o autor, a necessidade de revisar os calendários de páscoa abre a oportunidade de trabalhar as expectativas escatológicas com vistas ao ano 800, ano que correspondia ao fim do Sexto Milênio da criação. A hipótese final parte da crítica da concepção do tempo cristã como meramente linear. Para Dmitri Starostin, o interesse nos temas e datas da história universal aumenta de acordo com a observação de efemérides celestes; sua tese indica que a discussão sobre o fim dos tempos é sincronizada com a observação dos nodos lunares. Fim de um ciclo lido como um começo: é com base nessa lógica que Carlos Magno, coroado Imperador em 25 de dezembro de 800, pôde se apresentar como um novo Davi. Esse fenômeno é despertado pela performatividade real e pela função temporal que a transpassa: a presença. Para aqueles que conhecem os símbolos, para aqueles que entendem os números em sua dupla dimensão, matemática e exegética, a relação entre Carlos e Davi não é metafórica. Carlos Magno é Davi. Foi assim que a historiografia carolíngia estabeleceu um sistema de comunicação simbólica entre o rei, os magnatas e seus súditos, garantindo a função de legitimidade do poder.
Qual o sentido em mobilizar os passados do medievo em meio à catástrofe global? Essa pergunta nunca poderia ter sido prevista em toda sua pertinência. Ela foi se tornando mais e mais relevante aos organizadores deste dossiê na exata medida em que o evento pandêmico começou a traduzir e fazer aflorar as ansiedades de uma emergente sensibilidade histórica. Uma historicidade, se assim preferimos, modulada diante da possibilidade concreta de mudanças radicais, da ultrapassagem de (mais um!) limiar crítico que promete desafiar toda compreensão do passado como experiência e toda tentativa de domesticação do novo pela narrativa. Caso o preço que teremos de pagar pela “nova normalidade” seja a completa dissociação com a experiência do passado (SIMON 2019, p. 52-78), isso significaria também que nosso desejo de compreender a Idade Média fará companhia ao desejo de se abrir a novas formas de habitá-la afetivamente? Como já assinalamos, “práticas de sincronização”, significação e expressão da existência temporal dependem da articulação entre os passados e nossas angústias, esperanças, temores e planos. O tempo histórico, passado, presente e futuro, é aglutinado como um singular através da capacidade humana em anexar emoção as suas dimensões. Em outras palavras, não existem efeitos sem afetos, nem história efetiva sem história afetiva. A Idade Média, tão presente no imaginário, nas artes, nas produções literárias contemporâneas, nas redes sociais e no cinema, na televisão e nos passatempos eletrônicos, evocada e concorrida em meios políticos e religiosos, é outro desses palcos globais no qual encenamos “várias emoções humanas, incluindo essas de esperança e desespero” (CHAKRABARTY 2018, p. 17). A presença do medievo nos lembra que a temporalidade é sempre plural, que os passados nunca são totalmente passados: afinal, “tornar visível essa disjunção é aquilo que os passados subalternos nos permitem fazer” (CHAKRABARTY 2005, p. 225).
Seria possível “(des)atualizar” a historiografia medieval para, a seguir, configurá-la em virtude de um futuro que seja “próprio” às angústias do Sul Global? Não estamos longe, como se vê, de sugerir que a decolonização dos passados medievais passa pela crítica da submissão de sua escrita da história a formas “de se relacionar com o tempo histórico como atualização repetidora” (PEREIRA; ARAUJO 2020, p. 126). A dissociação do passado dos medievais com as identidades nacionais europeias, com o cristianismo conservador, com a monumentalização dos grandes homens e com a genealogia das elites globais, assim poderia dialogar com a emergência de formas mais progressistas de figurar e performar afetivamente os espaços de conhecimento do medievo? É esperança dos organizadores que as virtudes epistêmicas demonstradas pelas contribuições deste dossiê – o engajamento ético e crítico com as fontes, ao lado da reflexão teórica a respeito dos instrumentos para sua interpretação, contribuam para o estabelecimento de um passado, ao passo que autêntico, ao mesmo tempo próprio às demandas de nossa “geopolítica do conhecimento” (GRECCO; SCHUSTER 2020, p. 444). Essa tarefa não começa nem se encerra, no entanto, com este dossiê. Essa é a tarefa de uma geração.
Decolonizar passados subalternos, como o Itihasa indiano, as Seanchas da Hibérnia ou as Estórias castelhanas é fazer da consciência histórica, antes um “privilégio do homem moderno”, um direito humano universal? Não pagaríamos, com isso, o custo de reforçar o velho universalismo, submetendo formas contingentes de experiência temporal ao guarda-chuvas eurocentrado do gênero “história”? Ou, quem sabe, podemos pluralizar os significados da consciência histórica, ampliando seu campo semântico de modo a abarcar a diversidade das formas de se sentir e testemunhar a mudança e a permanência em função do tempo? Essas perguntas expressam a tensão que o presente dossiê carrega como pano de fundo. Tratase, ainda, do problema do lugar da historiografia medieval na história da historiografia (e na teoria da história). A respeito de tais questionamentos, longe de fixar um ponto final, fazemos um convite ao diálogo, a uma conversa amigável, a um debate que, enfim, se instaura entre os estudos medievais e as historiadoras e historiadores da historiografia.
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Rodrigo Bragio Bonaldo – Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de História, Florianópolis, SC, Brasil https: / / orcid.org / 0000-0002-3938-5169 E-mail: rodrigobonaldo@yahoo.com.br
Otávio Luiz Vieira Pinto – Universidade Federal do Paraná, Departamento de História, Curitiba, PR, Brasil https: / / orcid.org / 0000-0001-5628-3263 E-mail: rocha.pombo@hotmail.com
REZAKHANI, Khodadad; VIANNA, Luciano José; BONALDO, Rodrigo Bragio; PINTO, Otávio Luiz Vieira. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.13, n.33, mai. / ago., 2020. Acessar publicaçaõ original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
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